quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

MAIS DO MESMO

 

Imaginou-se que o espetáculo mais constrangedor do desgoverno Bolsonaro seria o golpe fracassado, mas há mais e pior: depois de passar quatro anos fugindo da realidade, o ex-presidente foge da polícia passando-se por turista na terra do Pateta, onde insiste em soar cada vez mais patético. 

No momento em que roça as grades da cadeia, o ex-mandatário que passou os últimos quatro anos repetindo o bordão "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos" revela ao mundo que é italiano, insiste que a eleição de Lula foi uma fraude, e que voltará ao poder, embora nem ele mesmo saiba quando ou se voltará ao Brasil. 
 
Entrementes, o ex-primeiro-ministro Arthur Lira, mantido na presidência da Câmara com a benção de de 91% de seus pares, ganhou poderes monárquicos. Na sua monarquia reina a reciprocidade: é dando que Lula vai receber — ou não — o apoio de que precisa na casa legislativa por onde começam a tramitar todos os projetos do governo. 
 
Observação: Graduado em mumunhas e doutorado em subterfúgios, Renan Calheiros alertou antes da posse que a PEC da transição era "barbeiragem política". Havia outras maneiras de obter verba para o Bolsa Família sem colocar o governo no colo de Lira. Não lhe deram ouvidos. Desde então, Lira marca gols numa trave sem goleiro, forçando Lula a abrir o balcão para evitar que o Senado virasse um enclave bolsonarista. 
 
Apesar da rendição a Lira, da reabertura do balcão de negócios, da condescendência com ministros temerários, de afagos em ditadores companheiros, da ambiguidade palanqueira, do blábláblá que opõe o fiscal ao social e do lançamento prematuro da campanha à re-re-re-reeleição, o primeiro mês do terceiro mandato do desempregado que deu certo proporcionou à maioria dos brasileiros uma sensação de alívio. 

Com fome de normalidade, o país concede ao governo seminovo um salvo-conduto liminar para o tropeço. O futuro é claro como a névoa, mas o deixa-pra-lá preventivo oculta sob uma camada de esperança os erros cometidos pelo governo na largada. A mágica se deve à pergunta que não quer calar: "E se Bolsonaro tivesse vencido?"
 
Quem quiser atiçar os neurônios pode refletir sobre meia dúzia de indagações que até os botões da camisa, que não podem bater três vezes na madeira, têm receio de responder. São elas:
 
1- Que epitáfio descreveria o Brasil se Bolsonaro ganhasse mais quatro anos para jogar terra em cima do buraco em que enfiou a democracia?
 
2 - Em quanto tempo o genocídio seria concluído se o crime organizado continuasse prevalecendo sobre o Estado esculhambado na reserva Yanomami?
 
3 - Que seria do Ministério Público com a re-re-recondução de Augusto Aras?
 
4 - E se o capitão indicasse mais "10%, 20% ou 30% de mim no Supremo", convertendo o tribunal numa Corte de gorjetas?
 
5 - E se figuras como Damares Alves, Marcelo Queiroga, Augusto Heleno e Anderson Torres continuassem na Esplanada?
 
6 - Que seria das Forças Armadas se os militares não parassem de fazer biscates políticos?
 
Presenteado com a ausência de Bolsonaro, o pajé do PT subiu rampa em triunfo para receber a faixa das mãos do povo e foi reempossado na semana seguinte, ao obter dos governadores e dos chefes do STF e do Congresso um aval coletivo ao resultado das urnas em resposta ao Capitólio bolsonarista de 8 de janeiro. A questão é que nenhum governante chega ao sucesso apenas sapateando sobre a ruína do antecessor. 
 
Se o primeiro mês do governo serviu para alguma coisa, foi para mostrar que o novo Lula é o mesmo. Não tem a teimosia e a insanidade delirante de Bolsonaro, mas também cultiva realidades paralelas. O êxito de seu terceiro mandato está condicionado à disposição de colocar os pés no chão. O fenômeno do deixapralaísmo, impulsionado pelo desastre do bolsonarismo, tem prazo de validade. Em menos de 100 dias surgirá uma nova pergunta: E se o governo Lula não der certo?

Com Josias de Souza