sexta-feira, 5 de maio de 2023

A NOVELA DA VEZ

Depois do escândalo da muamba das arábias, os primeiros capítulos da novela da vez têm como roteiro a visita da PF à casa de Jair Bolsonaro na última quarta-feira, durante o cumprimento 16 de mandados de busca e apreensão e seis de prisão preventiva no escopo da Operação Venire, que apura suspeitas de fraude em dados do certificado de vacinação contra a Covid do ex-presidente, da ex-primeira-dama, da filha do casal e de familiares do tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens do capitão, preso preventivamente nesta quarta-feira. 

Segundo a PF, Cid teria conspirado para emitir cartões falsos de vacinação para sua esposa e filhas, e depois para o presidente e sua filha Laura, então com 11 anos. As investigações foram baseadas nas quebras de seu sigilo telefônico e telemático em outro inquérito que investiga uma live em que Bolsonaro associou a vacina contra a Covid à contaminação por AIDS. Durante o depoimento, Cid permaneceu em silêncio.

Ao autorizar a ação, o ministro Alexandre de Moraes escreveu que não há qualquer indicação nos autos que conceda credibilidade à versão de que o ajudante de ordens de Bolsonaro pudesse ter comandado relevante operação criminosa, destinada diretamente ao então mandatário e sua filha sem, no mínimo, conhecimento e aquiescência daquele, circunstância que somente poderá ser apurada mediante a realização da medida de busca e apreensão requerida pela autoridade policial. 

As inserções falsas sob suspeita se deram entre novembro de 2021 e dezembro de 2022, e tiveram como consequência a alteração da verdade sobre fato juridicamente relevante, qual seja a condição de imunizado dos beneficiários. O objetivo do grupo seria "manter coeso o elemento identitário em relação a suas pautas ideológicas, no caso, sustentar o discurso voltado aos ataques à vacinação contra a Covid".
 
O relatório da PF atribui aos investigados crimes de infração de medida sanitária preventiva, associação criminosa, inserção de dados falsos em sistemas de informação e corrupção de menores, mas o relatório enviado ao ministro Alexandre atribui especificamente a Bolsonaro os crimes de uso de documento falso e de corrupção de menores, além de dizer que há indícios consistentes de que o então presidente tinha conhecimento da alteração fraudulenta dos dados no sistema do Ministério da Saúde. Bolsonaro seria ouvido pela PF na própria quarta-feira 3, mas se recusou a depor. O advogado Fabio Wajngarten afirmou que seu cliente só se manifestará após a defesa ter acesso aos autos. 
 
Observação: A eventual entrada de Bolsonaro nos EUA com certificado de vacinação falso configuraria crime federal naquele país, com pena de até dez anos de prisão, mas vale lembrar que quando desembarcou na Flórida, no final de dezembro passado, ele ainda era presidente e tinha passaporte diplomático. 
 
Além de jamais ter informado se tomou ou não a vacina, Bolsonaro impôs um sigilo de até cem anos aos dados — um dos mais de mil temas colocados em sigilo durante sua gestão —, mas as suspeitas de que havia algo de podre em Pindorama surgiram depois que um integrante do grupo interdisciplinar Infovid rastreou o cartão de vacinação vazado à imprensa por um funcionário da CGU e descobriu dados estranhíssimos de vacinas aplicadas num posto do município fluminense de Duque de Caxias em datas coincidentes com motociatas realizadas no Rio de Janeiro.

Inicialmente, um médico bolsonarista lotado na prefeitura do município goiano de Cabeceiras teria preenchido os cartões de vacinação que o grupo tentou registrar no sistema eletrônico do SUS em Duque de Caxias. Mas o lote das vacinas tinha sido enviado para Goiás, de modo que o sistema rejeitou as informações, o que ensejou a troca de mensagens entre Cid e seus ajudantes, a partir das quais a PF descobriu que o grupo havia conseguido um outro número de lote, desta vez do Rio, para fazer o registro, imprimir os cartões e remover os arquivos digitais do sistema.
 
O portal Metrópoles informou que Bolsonaro manterá a versão de que desconhecia esquema dos cartões de vacina. Já o g1 publicou que uma servidora do SUS de Duque de Caxias que foi coagida a fornecer a sua senha de acesso ao sistema do Ministério da Saúde. Registros dão conta de que duas doses da vacina da Pfizer foram aplicadas em Bolsonaro e na filha, e a PF apurou que sua inserção no sistema foi feita pelo secretário municipal João Carlos de Sousa Brecha. No dia seguinte, o ConecteSUS emitiu o certificado de vacinação — que, ainda segundo a PF, foi solicitado do Palácio do Planalto. Uma semana depois, novo acesso foi feito a partir do mesmo dispositivo, solicitando a emissão do segundo comprovante de vacinação. 
 
No dia 30 de dezembro próximo passado, horas antes de Bolsonaro embarcar rumo à Flórida, um novo acesso ao ConecteSUS foi feito a partir do celular de Mauro Cid, que obteve um terceiro certificado de vacinação em nome de Bolsonaro no qual constava a dose única da vacina da Janssen. O relatório da PF diz ainda que o email vinculado à conta foi alterado neste período, passando a ser o do assessor Marcelo Costa Camara, que acompanhou o capitão na terra do Pateta.

A PF prendeu Mauro Cid, Max Guilherme e Sérgio Cordeiro, que acompanharam Bolsonaro em seu autoexílio na Flórida, e João Carlos de Sousa Brecha, secretário de Governo em Duque de Caxias. Marcelo Câmara — outro que viajou para os EUA com o ex-presidente — foi alvo de busca e apreensão. O deputado Gutemberg Reis, irmão do ex-prefeito de Caxias, e o ex-vereador carioca Marcello Siciliano são investigados por suposta participação no esquema. De acordo com o g1, todos os detidos optaram pelo silêncio no primeiro depoimento tomado após suas prisões. Bolsonaro e Michelle tiveram seus celulares apreendidos, mas o ex-presidente não informou a senha do seu aparelho.
 
Quanto ao restante do Clã, a ex-primeira-dama teria sido vacinada em setembro de 2021, em Nova Iorque (EUA). Segundo a Secom informou à época, quando fez o teste PCR ela foi indagada pelo médico se gostaria de aproveitar a oportunidade para ser vacinada e aceitou a oferta. Flávio Bolsonaro publicou em meados de 2021 um vídeo em que ele aparece sendo vacinado pelo então ministro da Saúde Marcelo Queiroga. No mês seguinte foi a vez de Eduardo Bolsonaro, que também postou um vídeo dando conta do fato.
 
Observação: Em dezembro de 2021, Bolsonaro afirmou categoricamente que sua filha, então com 11 anos, não tomaria a vacina, a despeito da resolução da Anvisa que autorizava a imunização de crianças de 5 a 11 anos. "Eu espero que não haja interferência do Judiciário. Espero, porque minha filha não vai se vacinar, estou deixando bem claro."

Diante da informação de que teria furado a fila para se vacinar, Carlos Bolsonaro disse: "A única coisa que devo ter furado deve ter sido a mãe de quem divulga mais uma fake news de nível global e diária! A escória não vive sem mentir e manipular! Não tomei vacina alguma!". Jair Renan teve Covid em 2020; na ocasião, ele disse que foi só uma "gripezinha" e que tomou cloroquina durante o período em que apresentou os sintomas (não há registros de que ele tenha sido vacinado).
 
Moraes determinou a apreensão do passaporte do ex-presidente que se mostrou desgostoso com a ação policial e questionou o motivo de os agentes terem ido a sua casa quando poderiam ter feito as perguntas diretamente a ele, além de destacar que a pressão sofrida por sua família é “desumana”. Na sua avaliação, tudo está sendo feito para criar fatos contra sua pessoa e prejudicá-lo politicamente.
 
Novos desdobramentos dessa tragicomédia surgem a cada minuto, mas eu preciso concluir este texto em algum momento. Antes, porém, vale acrescentar que a CNN Brasil noticiou no final da tarde de ontem que o ex-major Ailton Barros (mais um que foi preso na última quarta-feira) discutiu em dezembro último um golpe de Estado com Mauro Cid. De acordo com a PF, ele também integrou o grupo que teria forjado os registros de vacina.
 
CNN teve acesso a três áudios nos quais o ex-major descreve o "conceito da operação". No dia 15 de dezembro, ele diz: “É o seguinte, entre hoje e amanhã, sexta-feira, tem que continuar pressionando o Freire Gomes [comandante do Exército] para que ele faça o que tem que fazer". Até amanhã à tarde, ele aderindo… bem, ele faça um pronunciamento, então, se posicionando dessa maneira, para defesa do povo brasileiro. Se ele não aderir, quem tem que fazer esse pronunciamento é o Bolsonaro, para levantar a moral da tropa. Que você viu, né? Eu não preciso falar. Está abalada em todo o Brasil".
 
Barros ressalta a necessidade de Gomes ou Bolsonaro realizarem o pronunciamento comentado no áudio, dando preferência ao comandante do Exército, de modo que fique "tudo dentro das quatro linhas". A CNN entrou em contato com Bolsonaro, Cid, Barros e Gomes, mas ainda ainda aguardava retorno quando eu concluí este texto.
 
Detalhe: Um longo histórico de transgressões levou à expulsão de Ailton da corporação. Documentos do Superior Tribunal Militar obtidos pela CNN revelam que ele foi preso pelo menos sete vezes entre 1997 e 2006. Naquele ano, reportagens mostraram sua participação em um caso de desvio de armas do Exército para traficantes do Rio de Janeiro. O ex-major se identificava como "o 01 do Bolsonaro" em sua campanha para deputado federal em 2022, e teve quase 7 mil votos.

Triste o país onde o povo não tem capacidade para votar.