Minuta de golpe, gravação de reunião ministerial golpista, troca de mensagens comprometedoras, tramoia visando à prisão de Alexandre de Moraes, tudo que foi extraído (incluindo o que ainda não foi revelado) da delação de Mauro Cid e exposto pela operação Tempus Veritatis não deixam dúvidas de que Bolsonaro e seus comparsas articularam uma intentona antidemocrática que só não foi bem sucedida por falta de apoio das FFAA, nem de que os atos terroristas de 8 de janeiro foram mais uma tentativa de anular o resultado das urnas. Mas nada disso chama à razão os apoiadores do "mito".
As redes sociais estão coalhadas de postagens que vão de "estão inventando uma prisão a qualquer custo para Bolsonaro" a "vai ter guerra civil", passando por "ninguém sairá de dentro do Congresso até que todos sejam presos", "o PT mandou tornar inelegíveis todos os deputados do PL", "vamos parar o país" e "encostem no Bolsonaro e é isso que terão", além de fake news como a de que Donald Trump e Javier Milei estarão presentes na manifestação de hoje.
Bolsonaro — que se autodefiniu como "um fodido, um deputado do baixo clero, escrotizado dentro da Câmara, sacaneado, gozado, uma porra de um deputado" e disse que chegar à Presidência foi "uma cagada do bem" — moveu montanhas para vender a ideia de que as urnas haviam sido manipuladas em prol de seu adversário. Sua fala durante a discussão do golpe — diante do silêncio dos inocentes de sempre — foi de uma frieza assustadora: "Será que eles esqueceram que sou o comandante em chefe das Forças Armadas?, perguntou o chefe de Mauro Cid — que, antes de ser promovido a delator, lamentou que os militares estivessem "muito disciplinados" para aceitar comandos golpistas.
Observação: Os comentários do então ajudante de ordens do capetão indicam que, naquele período, não havia mais hierarquia. A começar pela própria filmagem da reunião, feita por ele à sorrelfa, a mando do chefe. Perguntado por um participante, Bolsonaro respondeu que autorizara apenas a filmagem de suas intervenções para possível uso posterior. Cid atuava como pau-mandado, superando os demais fardados de patentes mais elevadas que participaram da reunião.
A alturas tantas da reunião, o general Paulo Sergio Nogueira, então ministro da Defesa, disse que o TSE era "um inimigo a ser vencido", e o também general Augusto Heleno, então chefe do GSI, que era preciso agir efusivamente antes das eleições: "Não vai ter VAR"; o que tiver que ser feito tem que ser feito antes, se tiver que dar soco na mesa, se tiver que virar a mesa, é antes das eleições." Anderson Torres (o ministro da Justiça que se tornou secretário de Segurança Pública do DF, foi preso após o 8 de janeiro e solto em maio) anunciou que, se Lula ganhasse a eleição, todos que estavam na reunião se dariam mal.
O principal defensor da postura do devoto da cloroquina foi o cardiologista Marcelo Queiroga, que sucedeu ao general Eduardo Pazuello no comando do ministério da Saúde: "O presidente é um democrata. Veja quantas eleições ele participou (sic). Veja que ele pediu que se gravasse a fala dele. [...] Não havia intenção de golpe; havia um descontentamento público com o tratamento desequilibrado do processo. Mas isso já foi superado. Vamos à frente!".
Em linha semelhante, Wagner Rosário (o controlador-geral da União que foi nomeado controlador-geral do Estado de São Paulo pelo governador bolsonarista Tarcísio de Freitas) defendeu que as declarações do chefe não fugiram da normalidade. "Aí já não é mais (sic) as Forças Armadas falando. São três instituições. E a gente tem que se preparar para atuar em força-tarefa nesse negócio."
Quando um general manda outro ir às redes sociais "foder seus companheiros", está quebrada a cadeia de comando. E quando usa linguagem de botequim para definir um adversário militar como "petista desde criancinha", promove a anarquia a mestre de cerimônias do circo.
Procurados pela Folha, 31 participantes da efeméride, 29 optaram pelo silêncio, 13 não quiseram se manifestar, 7 não responderam aos contatos e outros 6 não foram localizados. Talvez por ser difícil negar o inegável e defender o indefensável. Mesmo assim, as hordas bolsonaristas insistem na narrativa de que seu "mito" é alvo de perseguição política (nada muito diferente do que alegavam os petistas quando Lula foi condenado e preso). Para esse tipo de gente, a verdade é apenas um detalhe.
Observação: Na última quinta-feira, 16 dos 23 investigados intimados a prestar esclarecimentos permaneceram calados, e o rosário de evasivas e mentiras desfiado pelos que falaram não contribuiu para a investigação. Bolsonaro deixou o local do depoimento após 15 minutos de silêncio. Seu advogado disse que ele prestará todos os esclarecimentos quando tiver total acesso ao conteúdo da delação premiada de Mauro Cid e dos celulares apreendidos dos outros investigados. Disse ainda que seu cliente "não cometeu nenhum delito" e (pasmem!) "nunca foi simpático a qualquer tipo de movimento golpista". Também por meio de nota, a defesa de Costa Neto informou que ele "respondeu todas as perguntas que lhe foram feitas". Nas pegadas de seu ex-comandante-em-chefe, os generais Braga Netto, Augusto Heleno, Paulo Nogueira e Mário Fernandes informaram, através de seus advogados, que prestarão os devidos esclarecimentos quando tiverem acesso integral aos autos da investigação. A defesa do almirante Almir Garnier alegou que "não houve tempo hábil para ler as 4 mim páginas que compõem os autos do processo".
Preferências político-partidárias e bandidos de estimação à parte, quem observa o quadro de longe fica com dificuldade em distinguir quem é quem nesse balé que mistura sujos e mal-lavados. Prevalece a velha máxima segundo a qual "em política nada se cria, nada se transforma, tudo se corrompe".
Ninguém jamais se empenhou tanto para transformar essa republiqueta de bananas num imenso esgoto a céu aberto do que Bolsonaro (não que a situação fosse muito melhor antes dele). Para piorar, o circo de horrores continua a todo vapor: nem bem vestiu a faixa, Lula começou a trabalhar pela volta do bolsonarismo.
Além de enxovalhar e rebaixar ainda mais as instituições democráticas e o que sobrou de decoro presidencial, o petista desperdiçou mais uma oportunidade de levar um mínimo de esperança àqueles que não têm nenhuma pelo país. Lula é o ovo, a galinha e o Tostines do bolsonarismo, que, por sua vez, se alimenta do excremento que o petismo produz. Já vimos esse filme antes, e sabemos como ele termina.
O Brasil "naturalizou" a impunidade de poderosos, independentemente da ideologia política e das barbaridades que eles cometem. Num país que se desse minimamente ao respeito, Bolsonaro e seus cúmplices seriam punidos exemplarmente; nesta banânia, o cenário que se descortina evidencia que o eleitorado não aprendeu nada com os erros do passado.
Ivan Lessa dizia que o brasileiro esquece a cada 15 meses o que aconteceu nos últimos 15 anos. Se fosse vivo, ele certamente reduziria o lapso temporal para 15 dias. Ou 15 minutos.