quinta-feira, 30 de maio de 2024

O STF E A MALDITA POLARIZAÇÃO


Divergências de opinião e disputas pelo poder sempre fizeram parte da política, mas a polarização como a conhecemos hoje, com a divisão da sociedade em dois grupos opostos e antagônicos, é um fenômeno relativamente recente. Com o fim da ditadura militar e a volta do pluripartidarismo, Lula gestou e pariu seu abjeto "nós contra eles", mas os embates eram mais civilizados quando PSDBPT eram os adversários de turno. 

O advento do "bolsonarismo" e a ascensão das "mídias sociais" levaram água ao moinho das "fake news" e à criação de "bolhas" onde as pessoas, tomadas pelo fanatismo, só tomam em consideração as notícias e opiniões que confirmam suas convicções. E a desconfiança no governo, nos partidos políticos e na imprensa tradicional estimula essa récua a busca fontes alternativas de informação (nem sempre confiáveis) que reforcem sua visão deturpada de mundo. 

As eleições presidenciais de 2018 foram as mais polarizadas da nossa história recente, mas perderam o posto para o pleito de 2022, em que Lula, "descondenado" e reabilitado politicamente por uma sequência de decisões teratológicas do STF, derrotou o "mito" dos descerebrados pela menor diferença de votos válidos desde a redemocratização. 

Com o eleitorado dividido entre "nhô-ruim" e "nhô-pior", não havia como a quimérica "terceira via" prosperar — a menos que, metaforicamente falando, um meteoro como o que extinguiu os dinossauros há 66 milhões de anos varresse do cenário político as duas seitas do inferno. 

Dizem que o sábio aprende com os erros dos outros e os tolos, com os próprios, mas o inigualável eleitorado tupiniquim os repete eleição após eleição, como se essa perseverança tivesse o condão de produzir um resultado diferente. Pelo andar da carruagem, teremos neste ano mais um pleito plebiscitário, com postulantes à prefeitura de quase 5.600 municípios apadrinhados pelo capitão-golpista e pelo aspirante a Matusalém. Parece até coisa de Superman x Lex Luthor ou Coringa x Batman! E ainda dizem que Deus é brasileiro!
 
Na desvaliosa opinião deste humilde articulista, J.R. Guzzo, Augusto Nunes, Dora Kramer, Josias de Souza e Reinaldo Azevedo são "monstros sagrados" do  jornalismo político. Mas o mundo gira, a Lusitana roda, a terra plana capota e, como ensinou o saudoso Vinicius de Moraes, "não há nada como o tempo para passar". 

Dora e Josias continuam produzindo textos isentos, mas Guzzo e Nunes se converteram em bolsonaristas convictos, e Azevedo, que cunhou o termo "petralha" quando o escândalo do Mensalão veio à tona, em lulista de carteirinha. De Rodrigo Constantino, então, nem se fala. Parafraseando um slogan do maior jornal paulista — "Folha: Não dá para não ler —, Constantino: "não dá mais para ler". 
 
Seria exagero dizer que nada se aproveita de tudo que esses "convertidos" escrevem. Afinal, até um relógio analógico parado marca a hora certa duas vezes por dia. Além disso, cabe ao leitor sensato diferenciar fatos das versões e "pesquisas de intenção de voto" das manifestação de torcidas organizadas em prol de seus corruptos de estimação. 
 
Após esta breve introdução, segue uma versão condensada do texto (magistral) que Augusto Nunes publicou na edição de 24 de maio da Revista Oeste:  
 
Que García Márquez, que nada. Muito mais assombroso que o universo fictício criado pelo grande escritor colombiano é o estranho país que vem sendo redesenhado desde o início de 2020 por 11 figuras que, em silêncio e vestindo trajes normais, parecem gente como a gente. As diferenças começam pelo dialeto que elas falam e se acentuam quando vestem a fantasia completa. Versão nativa da capa que promove a Superman o introvertido jornalista Clark Kent, a toga pendurada nos ombros do mais medíocre bacharel em Direito anuncia a entrada em cena de um Doutor em Tudo, um Eminente Superjuiz, uma sumidade a serviço do STF, uma alta patente da tropa que recriou o Poder Moderador — que só existiu na experiência constitucional brasileira na Constituição de 1824, e que era exercido pelo Imperador — para salvar a democracia em perigo com métodos que até um ditador parido pelo realismo fantástico acharia exagerados.
 
Que Cem Anos de Solidão, que nada. A esplêndida saga do clã que não terá uma segunda chance na face da Terra é coisa de amador se confrontada com o que fazem e desfazem as estrelas (e os roteiristas) do mais longo e intragável faroeste à brasileira. O coronel Aureliano Buendia meteu-se em dezenas de revoluções. Perdeu todas. Numa visita à cidade natal, o filho revolucionário foi impedido de abraçar a mãe pelos soldados designados para garantir-lhe a integridade física. No Brasil controlado pelo STF, o ministro Alexandre de Moraes não dispensa a companhia de oito brucutus, nem para zanzar pelo clube do qual é sócio. O esquema de segurança não permite que os brasileiros ao menos apertem as mãos do homem que os livrou da ressurreição do fascismo ao sufocar o primeiro golpe de Estado orientado por uma minuta, abastecido por um vendedor de algodão-doce e consumado por civis desarmados e sem comandantes com experiência militar. 
 
Se faltam autores brasileiros no ranking dos melhores do realismo fantástico, não é por falta de personagens prontos e acabados. Em O Outono do Patriarca, Márquez criou um ditador de idade indefinida (calcula-se que tem mais de 107 anos e menos de 232). Moraes terá de viver ao menos mais dois séculos, sem aposentar-se, para concluir o julgamento dos casos que o transformaram em gerente da maior e mais vagarosa Vara Criminal do planeta. O Primeiro Carcereiro disse recentemente que são mais de 2 mil. Não é pouca coisa. Mas o sorriso que acompanhou o cálculo avisou que está longe do fim o aumento da população carcerária embutido no recado que fez publicamente ao parceiro Dias Toffoli em outro comício sem plateia: “Tem muita gente pra prendê (sic), muita multa pra aplicá (sic)”, animou-se o carrasco de plurais, direitos e liberdades. 
 
"Os idiotas perderam o pudor e estão por toda parte”, constatou Nelson Rodrigues na década de 1970. Passados 50 anos, sobram imbecis também na cúpula dos Três Poderes. Alguns ajudam a piorar o Judiciário, mas no Supremo prevalece a tribo dos napoleões de hospício sem remédio. Daqui a muitos anos, diante das verdades preservadas por um punhado de jornalistas decentes, todo brasileiro com mais de dez neurônios se perguntará o que aconteceu com o Brasil na primeira metade da terceira década do século 21. 
 
Em cinco anos, o Supremo pariu o flagrante perpétuo, a presunção de culpa, a prisão sem julgamento, a multa com seis zeros, a verdade oficial, a prisão provisória sem prazo para terminar, o criminoso que não descumpriu nenhuma lei em vigor e outras obscenidades chicaneiras. Decidiu que o ônus da prova agora cabe ao acusado, revogou o devido processo local, aposentou o sistema acusatório e o direito de ampla defesa, tornou rotineira a condenação por decisão monocrática de quem não pode ser julgado pelo Supremo. Fora o resto.
 
Nesta semana, o Brasil que pensa e presta foi insultado por outra carga de cavalaria liderada pela mais insolente dupla de coveiros da Justiça, dos direitos democráticos e do Estado de Direito. Indignado com os brasileiros que rejeitaram a meia-liberdade, jogaram tornozeleiras no lixo e partiram para o exílio, Alexandre de Moraes anunciou que vai prender de novo homens e mulheres que soltou por falta de provas para condená-los. 

Perfeitamente afinado com o colega de toga, Dias Toffoli decidiu que o empreiteiro Marcelo Odebrecht não cometeu as ilegalidades que confessou em depoimento eternizado num vídeo. Coisa de doido? Não deixa de ser. Mas há uma lógica por trás dessas loucuras, como provará esta coluna na próxima edição. Mais importante ainda: é uma indignidade inútil. Mesmo enterrada, a verdade segue viva. E logo estará assombrando os que se julgam condenados à eterna impunidade.
 
Volto a frisar que, a meu ver, Nunes se converteu ao bolsonarismo e a destacar que não concordo com muito do que escreveu sobre Alexandre, mas a parte que toca ao Supremo — e a Toffoli em particular — me levou a publicar esta postagem. 
Cabe ao leitor tirar suas próprias conclusões.