quarta-feira, 17 de julho de 2024

A ANTESSALA DO CAOS

Na Assembleia Nacional Constituinte pós Revolução Francesa, jacobinos (que apoiavam mudanças radicais e reformas sociais) se sentavam à esquerda e girondinos (que defendiam a manutenção do status quo e uma abordagem mais conservadora), à direita. Assim surgiu conceito que logo foi adotado mundialmente para descrever diferentes visões políticas e ideológicas e continua sendo usado até hoje, a despeito de o contexto político-social ter mudado sobremaneira desde o final do século XVII.  

O crescimento do populismo e do autoritarismo em diversas partes do mundo deu azo ao surgimento de "líderes" (não confundir com "estadistas") "de esquerda", como Lula et caterva, e "de direita", como Bolsonaro et caterva. Da feita que essa dicotomia rasa tende a ignorar as nuances de cada espectro e as transformações que eles sofreram ao longo do tempo, algumas visões e perspectivas acabam não se encaixando em lugar nenhum. 
 
Os EUA eram vistos como paradigma pela maioria dos países mundo afora, mas foram contaminados pela abjeta polarização e vêm dando sinais claros de decadência. Suas instituições não barraram o troglodita que incitou uma invasão do Capitólio (qualquer semelhança com Bolsonaro e o 8 de janeiro na Praça dos Três Poderes não é mera coincidência) e foi condenado criminalmenteBiden está claramente senil, e como nada é tão ruim que não possa piorar, o atentado malsucedido do último sábado (13) empurrou uma das mais cruciais campanhas eleitorais da história americana para beira do abismo. 
 
A menos de quatro meses da eleição, o primitivismo antidemocrático está tinindo nos cascos. O que seria apenas a formalização de uma candidatura ganhou ares de canonização depois que Trump foi convertido pelo fortuito em vítima do ódio político que cultua e estimula. A bala que não o matou feriu mortalmente a já claudicante campanha de Biden, que até o último sábado ralava para convencer financiadores e aliados de que não está gagá. Agora, além de não brigar com a própria língua, o macróbio terá de guerrear contra uma miragem exibida nas redes sociais com sangue no rosto, punho erguido, a bandeira americana como pano de fundo e a trilha sonora "Lutar, lutar, lutar". 
 
Trump não foi o primeiro chefe de Estado ou candidato à Casa Branca a sofrer atentados — foram 16 ao todo, entre os quais Lincoln, Garfield, McKinley e Kennedy morreram no exercício do mandato 
—, mas foi o único que teve a candidatura formalizada menos de 48 horas depois de escapar da morte, o que lhe dá uma aura de "escolhido de Deus" — ou do Diabo, que, pelo visto, não gosta de concorrência. A exemplo de Adélio Bispo — o "lobo solitário" que esfaqueou Bolsonaro em setembro de 2018 —, o sniper sem pontaria Thomas Matthew Crooks teria agido de moto próprio.
 
Observação: Adélio foi considerado inimputável e está custodiado na Penitenciária Federal de Campo Grande (MS), que, segundo ele, está impregnada de "energia satânica". Não se sabe quem bancou sua defesa — segundo os advogados, o dinheiro veio do próprio cliente e de doações de simpatizantes. O napoleão de hospício que não come merda nem rasga dinheiro disse que usou uma faca porque "uma arma de fogo era cara demais para um ex-pedreiro e ex-garçom desempregado", mas viajou para Juiz de Fora com quatro smartphones e um notebook e pagou adiantado (e em dinheiro) duas semanas de hospedagem numa pensão cuja dona e outro hóspede com quem ele teve contato morreram dias depois da facada. 
 
Se Crooks tivesse explodido a cabeça do candidato à presidência de um país onde a base fanática da extrema direita ainda acredita na lorota de que o falastrão derrotou Biden em 2020, mas foi impedido de tomar posse, seria a vitória do caos. Por esse ângulo, o inesperado não impôs o pior à maior democracia norte-americana 
— que, não obstante, está sujeita a graves sortilégios. A Suprema Corte (de maioria reacionária) decidiu que ex-presidentes têm imunidade absoluta na esfera criminal para atos que digam respeito ao exercício do cargo e só podem ser processados no caso de ações não relacionadas ao mandato. A exemplo de seu líder, a parte trumpista dos republicanos no Congresso (a maioria do partido) não reconhece os limites impostos pela democracia.

Observação: No Brasil o TSE e o STF serviram de barreira de contenção ao golpismo, mas nada há na legislação ou na jurisprudência americanas que impeça o presidente de se comportar como um ditador. Um dos limites poderia ser o Congresso, mas a chance de Trump se eleger com maioria nas duas Casas é real.
 
Dizer que Trump está eleito é contar com o ovo na cloaca da galinha, mas a decrepitude chapada de Biden é periclitante para aqueles que se importam com os valores da civilidade democrática. Caso o peruquento vença e conquiste maioria no Congresso, é possível que a ditadura da maioria se instale naquela que já foi 
a democracia mais poderosa do planeta. O jornal britânico The Guardian noticiou que, segundo uma pesquisa realizada em junho, 10% dos norte-americanos apoiam violência contra Trump e 7% apoiam violência a favor dele — ou seja, 44 milhões de pessoas acham natural que alguém mate ou morra por causa de uma eleição. 

A selvageria tomou conta de ambos os espectros da política. A notória decadência do debate público privilegia a eleição de inimigos, o sentimento constante de ameaça e as imagens beligerantes. A imensa maioria não vai passar da ideia à prática, mas basta um para a tragédia. Parafraseando a jornalista filipina Maria Ressa, ganhadora do Nobel da Paz, enquanto nada mudar, a coisa vai piorar antes de melhorar.