sábado, 17 de maio de 2025

A OBSOLESCÊNCIA DO DESEJO

PEDRA QUE ROLA NÃO CRIA LIMO

Houve um tempo em que cada lançamento da Apple reescrevia o futuro. Filas nas lojas, apresentações coreografadas, sussurros em torno de funcionalidades inéditas, tudo contribuía para uma aura de encantamento difícil de replicar. Mas não há nada como o tempo para passar, e o passar do tempo fez o que era mágico perder o encantamento.
 
A empresa criada em 1º de abril 1975 por Steve Jobs, Steve Wozniak e Ronald Wayne sempre se destacou pela excelência de seus produtos, e alguns deles — como o icônico iPhone — definiram rumos para toda a indústria. 

Até pouco tempo atrás, a expectativa por cada novo lançamento era quase um evento cultural, mas, de novo, não há nada como o tempo para passar, e as pessoas passaram a pensar duas (ou três, ou quatro) vezes antes de substituir um celular em perfeitas condições por um modelo novo — sobretudo quando as diferenças são pontuais ou meramente estéticas. Assim, a "obsolescência programada" (mais detalhes nesta postagem) se tornou, de certo modo, "desprogramada".
 
CONTINUA DEPOIS DA POLÍTICA

À primeira vista, a insegurança pública no Brasil parece ser consequência da proliferação das organizações criminosas, mas, na verdade, o Brasil é uma organização criminosa. Da mesma forma, a corrupção e a impunidade dos parlamentares costumam ser atribuídas ao fisiologismo, mas , na verdade, o maior culpado é o eleitorado ignorante e desinformado, que insiste em eleger políticos da pior qualidade, como comprovam os inquilinos que ocuparam o Planalto desde a redemocratização (não que a coisa fosse melhor antes do golpe de 64 ou durante os 21 anos de ditadura militar, mas enfim).
A Câmara Federal, também chamada de "Casa do Povo", nada fez desde o recesso de fim de ano senão eleger seu novo presidente, discutir uma vexatória proposta de anistia a Bolsonaro et caterva e, en passant, criar 18 vagas adicionais — que não custarão ao erário "míseros" R$ 64,4 milhões, como suas insolências afirmam: considerando que deputado dispõe de uma cota de R$ 38 milhões em emendas orçamentárias, as 18 novas cadeiras representarão uma despesa extra de R$ 748,6 milhões por anoMas não é só. Ao arrepio da Constituição e do Código Penal — e numa clara invasão da competência do Judiciário —, as marafonas da Câmara suspenderam a ação criminal contra Alexandre Ramagem por tentativa de golpe de Estado. Isso apesar da clareza do texto constitucional e do aviso do ministro-relator sobre a impossibilidade de sustar o processo no tocante às acusações referentes ao período anterior à diplomação do parlamentar encrencado.
Emparedado por seus pares, Hugo Motta mandou tocar o barco, mesmo sabendo que ele naufragaria mais adiante — como de fato naufragou: a 1ª Turma do STF decidiu, por unanimidade, que Ramagem continuará respondendo por três dos cinco crimes pelos quais foi denunciado. Motta recorreu, mas  tudo indica que o plenário irá chancelar a decisão da Turma.
Com a robustez de 315 votos a favor da artimanha, os deputados mostraram os dentes e deixaram às togas o trabalho de repor as coisas no lugar. Mas não há no horizonte conserto possível para o desarranjo entre os dois PoderesA intenção dos nobres deputados é clara: criar um precedente para driblar futuras decisões que os desfavoreçam — como no caso das cerca de 80 emendas parlamentares sob investigação no âmbito do Supremo, sob o olho vivo e o faro fino do ministro Flávio Dino. 
Será que é para isso que sustentamos essa cambada?

Evoluindo continuamente em conhecimento e tecnologia, as empresas fazem com que seu produtos — e não os da concorrência — sejam os substitutos naturais da geração anterior. No entanto, quando se concentram em aperfeiçoar dispositivos que já dominam o mercado, elas acabam subestimando (ou mesmo ignorando) inovações disruptivas que, num primeiro momento, parecem inferiores, mas amadurecem rapidamente e tomam seu lugar. 
 
Dito com outras palavras, para sobreviver, os fabricantes precisam tornar seus produtos obsoletos — mesmo que ainda funcionem bem e tenham boa aceitação no mercado. Com ciclos de inovação cada vez mais curtos, gigantes como Apple, Google, Microsoft, Amazon, Motorola, Samsung etc. precisam fazê-lo antes que os concorrentes o façam, e isso torna a obsolescência programada uma estratégia de sobrevivência.
 
A Apple, que por anos foi referência em inovação e longevidade, acabou sucumbindo à obsolescência programada de um modo que muitos consideram mal-intencionado. Um bom exemplo é o "batterygate": a pretexto de preservar a estabilidade do sistema, a Maçã reduziu o desempenho dos iPhones com baterias degradadas sem alertar os usuários. Mas falta de transparência a obrigou a oferecer descontos na troca das baterias e criar novas opções de monitoramento de desempenho no iOS.
 
A empresa de Cupertino sempre se destacou pelos saltos perceptíveis de geração em geração. Hoje, no entanto, uma parcela crescente dos usuários vive uma espécie de "obsolescência ao avesso". Não se trata exatamente da sensação de que seus dispositivos ficaram para trás, mas da percepção de que nada novo realmente relevante os está movendo adiante.
 
Ano após ano, os lançamentos parecem cada vez mais previsíveis — até repetitivos. Antigamente, sempre que um novo iPhone deixava o anterior "parecendo velho", havia um impulso natural pela troca — nem sempre racional, mas emocionalmente legítimo. Hoje, a falta de diferenciação tangível entre gerações sucessivas faz com que o usuário não veja razão para gastar dinheiro na substituição de um smartphone que está funcionando bem por um modelo equivalente. Assim, a interrupção do ciclo do desejo faz com que parte da magia que sempre envolveu a marca se desvaneça: o produto continua funcional, mas o encanto que estimulava a troca periódica já não está mais ali. 
 
A Apple ainda é admirada por seu ecossistema coeso, design refinado e estabilidade, mas já não dita o ritmo da inovação como antes. Ironicamente, ao escapar da obsolescência programada tradicional, ela criou a obsolescência do desejo, ou seja, a perda daquela urgência simbólica que sempre motivou seus usuários mais fiéis. O resultado é uma obsolescência menos agressiva, que não é imposta por limitações técnicas, mas pela ausência de provocação criativa, e que não decorre de chips limitados ou baterias sabotadas, mas de ciclos de inovação que deixaram de emocionar. 
 
Depois de décadas como símbolo máximo da antecipação do futuro, a Apple parece acorrentada à manutenção do presente. Não que tenha perdido a relevância — sua engenharia continua admirável, seu ecossistema segue robusto e sua visão de privacidade permanece exemplar —, mas algo se deslocou no terreno da imaginação. Ao escapar da obsolescência programada tradicional, a marca corre o risco de se tornar obsoleta em sua promessa de reinvenção. 

Nesse cenário, a pergunta que se impõe não é apenas técnica ou mercadológica, mas simbólica: quando foi a última vez que um lançamento da Apple fez o mundo parar por um instante?

Talvez o futuro da Maçã esteja garantido por sua solidez técnica, mas o futuro que Jobs nos prometia, feito de encantamento, ousadia e disrupção, parece suspenso. E quando até o futuro entra em modo de espera, é sinal de que algo essencial precisa ser atualizado.