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domingo, 12 de maio de 2019

BILHETE A JAIR



Jânio Quadros implicava com o biquíni; Jair Bolsonaro implica com os gays. Jânio distribuía bilhetinhos e Jair posta tuítes. Jânio não gostava de negociar com o Congresso e Jair também não gosta. Jânio se incomodava com os constrangimentos institucionais. Certa vez lançou uma provocação a seu ministro das Relações Exteriores, Afonso Arinos de Melo Franco: “Creio que a maioria dos ingleses pegaria em armas para defender o seu Parlamento. E o senhor, ministro, pegaria em armas para defender o Congresso brasileiro?”. Bolsonaro, em evento organizado por VEJA na pré-campanha em 2017, disse: “Se o Kim Jong-Un lançasse uma bomba H que só atingisse o Parlamento (brasileiro), você acha que alguém ia chorar aqui?”. Os paralelos entre o efêmero presidente de 1961 e o atual são numerosos. Mais de meio século depois, o fantasma de Jânio continua a assombrar a política do país.

Entenda-se por “fantasma de Jânio” a herança de despreparo, aventureirismo e pouco-caso com as instituições que com indesejável frequência se tem reencarnado nos ocupantes da cadeira presidencial. Fernando Collor foi o primeiro a vestir o modelo. Ao despreparo e ao aventureirismo juntava-se, nele, a mistificação de apresentar-se como “o caçador de marajás”, tal qual o outro empunhava a vassoura que varreria a corrupção. Faltava a Collor, no entanto, o vezo de fiscal de costumes que aproxima o atual presidente de seu remoto antecessor. Bolsonaro proibiu anúncio do Banco do Brasil que apresentava jovens de cores da pele, penteados, trajes e trejeitos diversos, e ainda comentou: “O Brasil não pode ser um país do mundo gay, do turismo gay”. Antes, havia proibido livro didático que expunha desenho da genitália feminina e feito circular, a título de alerta, vídeo com aberração sexual. Jânio, em sete meses de governo, proibiu, ou tentou proibir: biquínis nas praias; maiôs mais atrevidos nos desfiles de miss; anúncios na TV de maiôs e peças íntimas femininas; corridas de cavalo nos dias de semana; brigas de galo; lança-perfume; e — para culminar — espetáculos “de hipnotismo e letargia, de qualquer tipo ou forma, em clubes, auditórios, palcos ou estúdios de rádio e de televisão”.

O Jânio de outrora e o Jair de hoje partilham as tendências: (1) de ocupar-se de coisas pequenas, mais próprias de delegados de polícia, juízes ou, no máximo, prefeitos; e (2) de acreditar que uma canetada muda tendências comportamentais. O biquíni, a despeito de Jânio, prosseguiu sua gloriosa carreira até o fio-dental, e promete ir além. O turismo de homossexuais, consolidado graças ao Carnaval e às paradas gay, não há de ser estancado pela bronca do chefe de governo. Diga-se a favor de Jânio que nunca foi desatinado como Bolsonaro ao acrescentar, quando falou sobre o turismo gay: “Quem quiser vir aqui fazer sexo com mulher, fique à vontade”. Na constrangedora afirmação, o machismo mais tóxico se punha a serviço do mais predador dos turismos sexuais. Em outro plano, Jânio nunca cometeu o despautério de assacar contra o ensino da filosofia e da sociologia, nem a barbaridade de prometer aos fazendeiros licença para matar os invasores (uma inspirada reação na internet perguntou: “Índio também vai poder matar o invasor de suas terras?”).

Jornalistas do período e historiadores registraram as insuficiências do presidente de 1961. “Era evidente a má vontade de Jânio para com o Legislativo. (…) Elegera-se sempre ‘contra os políticos’, ainda que fosse um dos maiores”, escreveu o jornalista Carlos Chagas. O historiador Thomas Skidmore, no conhecido Brasil: de Getúlio a Castelo, afirma que faltavam a Jânio “discernimento e tenacidade para governar”, e, ao comentar suas dificuldades no dia a dia da administração, acrescenta: “Talvez estivesse agindo como alguém que sobe muito depressa e muito alto para sua capacidade”. Um autor de hoje, encarregado de analisar Bolsonaro, pode aplicar a semelhantes considerações um simples “copia e cola”. E com mais razão ainda pode fazê-lo socorrendo-se das brincadeiras que o jornalista Pompeu de Sousa estampava nas páginas do Diário Carioca. Assim como Jânio expedia seus bilhetinhos aos assessores, Pompeu publicava bilhetinhos ao presidente. O do dia 18 de março de 1961 vale para o Jair sem tirar nem pôr: 

“Assim é seu governo, Excelência. Cada dia uma decisão, uma orientação, uma revogação do dia anterior. Uma revogação de si mesmo. Governo, Excelência, é exatamente o contrário disso. Por isso é que continuamos à espera de que Vossa Excelência comece a governar”.

Texto de Roberto Pompeu de Toledo