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quarta-feira, 22 de maio de 2019

BOLSONARO DÁ UMA NO CRAVO E DUAS NA FERRADURA — É BOM TOMAR CUIDADO COM O COICE




Depois de compartilhar um texto sobre o Brasil ser um país ingovernável sem conchavos e dizer que o problema é a classe política (o que é uma piada, vindo de quem foi deputado por 28 anos e tem três filhos exercendo diferentes mandatos), Jair Messias Bolsonaro, fiel a seu estilo “morde-e-assopra”, disse que “se o Congresso tem uma proposta melhor de reforma da Previdência, que a ponha em votação”, atribuiu a culpa pelas dificuldades do seu governo à imprensa, incitou sua legião de bolsomínions a convocar a população a sair às ruas  em apoio a ele no próximo domingo e, cereja do bolo, prometeu participar da manifestação. A estratégia é temerária, pois, se não houver adesão popular, pode prejudicar ainda mais a governabilidade.

Collor, acuado por denúncias de corrupção dois anos e meio após ter sido empossado, convocou seus apoiadores a ocupar as ruas com camisas verde-amarelas. Não me lembro se ele próprio teve o desplante de participar do protesto, mas todos que têm mais de 30 anos devem se lembrar que as ruas foram tomadas por multidões vestindo camisas pretas e que o caçador de marajás de araque renunciou três meses depois, às vésperas de ser deposto, mas o Congresso cassou seus direitos políticos mesmo assim.

O circo de horrores não para por aí: na segunda-feira 20, o presidente compartilhou um vídeo em que o pastor congolês Steve Kunda o apresenta como um “estabelecido por Deus” para comandar o Brasil, levando Janaína Paschoal a questionar a “plenitude” de suas faculdades mentais (a deputada foi prontamente hostilizada pela também deputada estadual pesselista Alana Passos, que a chamou de desequilibrada).

A ala radicalizada do bolsonarismo, não raro com o aval (ainda que por vezes indireto) do próprio Bolsonaro, vem minando a credibilidade do governo. Convencido pelo filho tuiteiro e por seu guru esotérico de que o protagonismo do vice e dos superministros Guedes e Moro o enfraquece — afinal, quem se arrisca a regar uma sementinha que, plantada no terreno do vizinho, tem tamanho potencial de fazer sombra em seu próprio quintal? —, o capitão atua para conter a ascensão política de seus principais aliados e dos generais que fazem parte do governo. Aliás, para surpresa de quem receava que tantos militares juntos favoreceriam o famoso “autogolpe”,  o que se vê é o contrário: é o justamente o núcleo militar que demonstra mais comedimento e atua como garantidor das liberdades democráticas.

Moro, candidato natural à sucessão presidencial, vem deglutindo batráquios enquanto aguarda uma vaga no STF. Os parlamentares o atacam porque o veem como perseguidor de políticos, e no Planalto há quem não gosta da ideia de que sem ele e Paulo Guedes o governo implodiria. Para a ala radicalizada do bolsonarismo — uma espécie de militância petista com sinal invertido e fadada a terminar falando sozinha —, a liderança política do “mito” dispensa avalistas; o único “super” é o presidente, cujo aval vem das ruas (ou de Deus, a julgar pelo que afirma o candidato a hospício congolês).

Segundo Ricardo Noblat, ou falta inteligência política a Bolsonaro, ou ele é louco, ou — como disse o José Sarney em entrevista no último fim de semana ao Correio Braziliense —, ele está “no olho de um furacão e joga todas as suas cartas no caos”. De Sarney pode-se dizer tudo, menos que lhe falte experiência aos 89 anos de idade, 52 dos quais vividos como deputado e senador, fora os quatro anos como governador do Maranhão e os cinco como presidente da República. O furacão a que ele se refere foi provocado por Bolsonaro, que, em vez de governar, dedica-se a desatar crises (a maioria criada pelos filhos à razão de quase uma por semana).

A um presidente responsável e bem-intencionado, caberia desinflar crises e debelar furacões criados à sua revelia; a um ex-deputado federal alçado ao Palácio do Planalto, caberia demonstrar que aprendeu alguma coisa nos quase 30 anos que passou na Câmara. Mas, eleito por “milagre”, como ele próprio reconhece, Bolsonaro não se preparou para tal e tampouco parece interessado em se preparar. Mas de golpe ele entende: defendeu o golpe de 64; defendeu o governo militar que se arrastou por 21 anos; defendeu a tortura a opositores do regime; lamentou que a ditadura tenha matado menos gente do que deveria e jamais se penitenciou por ter dito tais descalabros.

Mesmo que acabe convencido por seus generais de pijama de que não deve comparecer às manifestações, o fato de o presidente ter cogitado de ir — atitude mais condizente com um tirante de merda como Nicolás Maduro, que marcha à frente do pelotão para constranger a oposição — é uma prova de sua insanidade ou de sua disposição, por enquanto reprimida, de forçar uma ruptura institucional. Só não enxerga o que se desenha no horizonte quem é cego ou se recusa a ver.

EM TEMPO: No instante em que eu concluía este texto, Veja publicou que Bolsonaro desistiu de participar das manifestações e orientou seus ministros a não comparecerem. A grande polêmica está no fato de as primeiras convocações terem tido como principais alvos o Congresso e o STF. O tom beligerante — falou-se até no fechamento das duas instituições — dividiu a direita a ponto de movimentos tradicionais, como o MBL e o Vem para Rua, desistirem de participar.

Os defensores da manifestação popular têm tentado baixar o tom do protesto, que deve agora focar a defesa do governo e da reforma da Previdência e centrar fogo no chamado centrão, apontado como o vilão que tem impedido o governo de avançar. Os “primeiros-filhos” têm defendido as manifestações, mas há divergências dentro do próprio PSL. O presidente do partido afirmou que não vê sentido no movimento, mesmo achando que qualquer ato popular é “válido”; a deputada Joice Hasselmann, líder do governo na Câmara, disse não ser contra, mas defendeu que parlamentares não devem participar do ato, ao passo que o Major Olimpio, líder da bancada no Senado, garantiu que estará na Avenida Paulista no domingo, “como cidadão”. O governador de São Paulo, João Doria, acha o movimento desnecessário, mas um dos principais líderes dos caminhoneiros — Wanderlei Alves, conhecido como Dedécoo apoia enfaticamente.

Merval Pereira compara Bolsonaro a “um Chacrinha da política” — aquele que veio não para explicar, mas para confundir. A algaravia presidencial teve palavras animadoras para os empresários, por exemplo, quando ele os chamou de “heróis” por empreenderem com uma legislação que se torna um fardo. E foi tão crítico sobre as más condições de nossa infraestrutura que deu a esperança de que a privatização será tocada adiante com vigor. Mas, no mesmo discurso na Firjan, o capitão encenou uma reconciliação com a classe política, ao mesmo tempo em que a considerou a causa dos problemas brasileiros. “É nóis”, disse, incluindo-se, como político, entre os responsáveis pelas desditas nacionais. A expressão popular, usada corriqueiramente hoje em dia, significa adesão a um pensamento ou a uma atitude, sendo também uma afirmação de identidade comum. Mas o presidente cometeu um erro, mesmo no português coloquial, pois a expressão tem um sentido positivo, e ele a usou para fazer um diagnóstico negativo da classe política.

Fato é que, na Câmara, até mesmo os líderes do PSL estão evitando uma aproximação, receosos de que as manifestações fracassem ou batam de frente contra as instituições — o que não é nada difícil, a julgar pela maneira como a convocação está sendo feita. Mas o parlamentares tampouco querem perder esse momento se, como garantem alguns, ele estiver em sintonia com o sentimento popular. A maioria quer mesmo dar um toque pessoal à PEC previdenciária — para retirar do governo os louros pela aprovação, caso ela realmente resulte numa retomada do crescimento — e ao mesmo tempo ficar com a responsabilidade de aprovar uma reforma que seja eficaz, pois, do contrário, serão responsabilizados por não darem condições de governabilidade a Bolsonaro. E é isso que o capitão está implantando preventivamente nas redes sociais e em discursos como os de anteontem no Rio. O que ele ganha com esse ambiente conturbado? Motivos para mobilizar o núcleo duro de seu eleitorado, esse mesmo que está organizando as manifestações. O PT sobrevive politicamente há anos com a adesão de cerca de 30% do eleitorado, que se expande eventualmente na disputa eleitoral. Bolsonaro quer mobilizar os seus 30%, suficientes para levá-lo com vantagem a um imaginário terceiro turno.

De novo: a ideia é colocar o verde e amarelo nas ruas. De novo: outro presidente teve a mesma ideia, mas o povo saiu de preto e ele caiu três meses depois. O ambiente político era outro, mais degradado do que o de agora, malgrado os primeiros meses deste governo serem os mais conturbados de quantos já vivemos.