Depois de compartilhar um texto sobre o Brasil ser um país ingovernável sem conchavos e
dizer que o problema é a classe política (o
que é uma piada, vindo de quem foi deputado por 28 anos e tem três filhos
exercendo diferentes mandatos), Jair Messias Bolsonaro, fiel a seu estilo “morde-e-assopra”, disse que “se o Congresso tem uma proposta melhor de
reforma da Previdência, que a ponha em votação”, atribuiu a culpa pelas
dificuldades do seu governo à imprensa, incitou sua legião de bolsomínions a convocar a população a sair às ruas em apoio a ele no próximo domingo e,
cereja do bolo, prometeu participar da manifestação.
A estratégia é temerária, pois, se não houver adesão popular, pode prejudicar ainda mais a governabilidade.
Collor, acuado
por denúncias de corrupção dois anos e meio após ter sido empossado, convocou
seus apoiadores a ocupar as ruas com camisas verde-amarelas. Não me lembro se
ele próprio teve o desplante de participar do protesto, mas todos que têm mais
de 30 anos devem se lembrar que as ruas foram tomadas por multidões vestindo
camisas pretas e que o caçador de marajás de araque renunciou três meses
depois, às vésperas de ser deposto, mas o Congresso cassou seus direitos
políticos mesmo assim.
O circo de horrores não para por aí: na segunda-feira 20, o
presidente compartilhou um vídeo em que o pastor congolês Steve Kunda o apresenta
como um “estabelecido por Deus” para comandar o Brasil, levando Janaína Paschoal a questionar a
“plenitude” de suas faculdades mentais (a deputada foi prontamente hostilizada
pela também deputada estadual pesselista Alana Passos, que a chamou de
desequilibrada).
A ala radicalizada do bolsonarismo, não raro com o aval
(ainda que por vezes indireto) do próprio Bolsonaro,
vem minando a credibilidade do governo. Convencido pelo filho tuiteiro e por
seu guru esotérico de que o protagonismo do vice e dos superministros Guedes e Moro o enfraquece — afinal, quem se arrisca a regar uma sementinha
que, plantada no terreno do vizinho, tem tamanho potencial de fazer sombra em
seu próprio quintal? —, o capitão atua para conter a ascensão política de seus
principais aliados e dos generais que fazem parte do governo. Aliás, para surpresa
de quem receava que tantos militares juntos favoreceriam o famoso “autogolpe”, o que se vê é o contrário: é o justamente o
núcleo militar que demonstra mais comedimento e atua como garantidor das
liberdades democráticas.
Moro, candidato
natural à sucessão presidencial, vem deglutindo batráquios enquanto aguarda uma
vaga no STF. Os parlamentares o
atacam porque o veem como perseguidor de políticos, e no Planalto há quem não
gosta da ideia de que sem ele e Paulo
Guedes o governo implodiria. Para a
ala radicalizada do bolsonarismo — uma espécie de militância petista com sinal
invertido e fadada a terminar falando sozinha —, a liderança política do “mito”
dispensa avalistas; o único “super” é o presidente, cujo aval vem das ruas (ou
de Deus, a julgar pelo que afirma o candidato a hospício congolês).
Segundo Ricardo
Noblat, ou falta inteligência política a Bolsonaro, ou ele é louco, ou — como disse o José Sarney em entrevista no último fim de semana ao Correio Braziliense —, ele está “no
olho de um furacão e joga todas as suas cartas no caos”. De Sarney pode-se dizer tudo, menos que
lhe falte experiência aos 89 anos de idade, 52 dos quais vividos como deputado
e senador, fora os quatro anos como governador do Maranhão e os cinco como
presidente da República. O furacão a que ele se refere foi provocado por Bolsonaro, que, em vez de governar,
dedica-se a desatar crises (a maioria criada pelos filhos à razão de quase uma
por semana).
A um presidente responsável e bem-intencionado, caberia
desinflar crises e debelar furacões criados à sua revelia; a um ex-deputado
federal alçado ao Palácio do Planalto, caberia demonstrar que aprendeu alguma coisa
nos quase 30 anos que passou na Câmara. Mas, eleito por “milagre”, como ele próprio
reconhece, Bolsonaro não se preparou
para tal e tampouco parece interessado em se preparar. Mas de golpe ele entende:
defendeu o golpe de 64; defendeu o governo militar que se arrastou por 21 anos;
defendeu a tortura a opositores do regime; lamentou que a ditadura tenha matado
menos gente do que deveria e jamais se penitenciou por ter dito tais descalabros.
Mesmo que acabe convencido por seus generais de pijama de
que não deve comparecer às manifestações, o fato de o presidente ter cogitado
de ir — atitude mais condizente com um tirante de merda como Nicolás Maduro, que marcha à frente do
pelotão para constranger a oposição — é uma prova de sua insanidade ou de sua
disposição, por enquanto reprimida, de forçar uma ruptura institucional. Só não
enxerga o que se desenha no horizonte quem é cego ou se recusa a ver.
EM TEMPO: No instante em que eu concluía este texto, Veja publicou que Bolsonaro desistiu de participar das manifestações e orientou seus
ministros a não comparecerem. A
grande polêmica está no fato de as primeiras convocações terem tido como
principais alvos o Congresso e o STF. O tom beligerante — falou-se até no
fechamento das duas instituições — dividiu a direita a ponto de movimentos
tradicionais, como o MBL e o Vem para Rua, desistirem de participar.
Os defensores da manifestação popular têm tentado baixar o
tom do protesto, que deve agora focar a defesa do governo e da reforma da
Previdência e centrar fogo no chamado centrão, apontado como o vilão que tem
impedido o governo de avançar. Os “primeiros-filhos” têm defendido as
manifestações, mas
há divergências dentro do próprio PSL. O presidente do partido afirmou
que não vê sentido no movimento, mesmo achando que qualquer ato popular é
“válido”; a deputada Joice Hasselmann,
líder do governo na Câmara, disse não ser contra, mas defendeu que
parlamentares não devem participar do ato, ao passo que o Major Olimpio, líder da bancada no Senado, garantiu que estará na
Avenida Paulista no domingo, “como cidadão”. O governador de São Paulo, João Doria, acha o movimento desnecessário, mas
um dos principais líderes dos caminhoneiros — Wanderlei Alves, conhecido como Dedéco — o apoia enfaticamente.
Merval Pereira compara
Bolsonaro a “um Chacrinha da política” — aquele que veio não para explicar, mas
para confundir. A algaravia presidencial teve palavras animadoras para os
empresários, por exemplo, quando ele os chamou de “heróis” por empreenderem com
uma legislação que se torna um fardo. E foi tão crítico sobre as más condições
de nossa infraestrutura que deu a esperança de que a privatização será tocada
adiante com vigor. Mas, no mesmo discurso na Firjan, o capitão encenou uma
reconciliação com a classe política, ao mesmo tempo em que a considerou a causa
dos problemas brasileiros. “É nóis”, disse, incluindo-se, como
político, entre os responsáveis pelas desditas nacionais. A expressão popular,
usada corriqueiramente hoje em dia, significa adesão a um pensamento ou a uma
atitude, sendo também uma afirmação de identidade comum. Mas o presidente
cometeu um erro, mesmo no português coloquial, pois a expressão tem um sentido
positivo, e ele a usou para fazer um diagnóstico negativo da classe política.
Fato é que, na Câmara, até mesmo os líderes do PSL estão evitando uma aproximação,
receosos de que as manifestações fracassem ou batam de frente contra as
instituições — o que não é nada difícil, a julgar pela maneira como a
convocação está sendo feita. Mas o parlamentares tampouco querem perder esse
momento se, como garantem alguns, ele estiver em sintonia com o sentimento
popular. A maioria quer mesmo dar um toque pessoal à PEC previdenciária — para
retirar do governo os louros pela aprovação, caso ela realmente resulte numa
retomada do crescimento — e ao mesmo tempo ficar com a responsabilidade de
aprovar uma reforma que seja eficaz, pois, do contrário, serão
responsabilizados por não darem condições de governabilidade a Bolsonaro. E é isso que o capitão está
implantando preventivamente nas redes sociais e em discursos como os de anteontem
no Rio. O que ele ganha com esse ambiente conturbado? Motivos para mobilizar o
núcleo duro de seu eleitorado, esse mesmo que está organizando as manifestações.
O PT sobrevive politicamente há anos
com a adesão de cerca de 30% do eleitorado, que se expande eventualmente na
disputa eleitoral. Bolsonaro quer
mobilizar os seus 30%, suficientes para levá-lo com vantagem a um imaginário
terceiro turno.
De novo: a ideia é colocar o verde e amarelo nas ruas. De
novo: outro presidente teve a mesma ideia, mas o povo saiu de preto e ele caiu
três meses depois. O ambiente político era outro, mais degradado do que o de
agora, malgrado os primeiros meses deste governo serem os mais conturbados de
quantos já vivemos.