O epigrama que intitula esta postagem é atribuído a
Abraham Lincoln, mas a frase completa é outra — e não foi dita por Lincoln, mas sobre Lincoln: “Se quer descobrir a verdadeira natureza de um homem, dê-lhe poder. Quase todos os homens conseguem enfrentar a adversidade — apenas um grande homem consegue superar a prosperidade. É a glória de Abraham Lincoln que nunca abusou do poder a não ser para a misericórdia. Ele era absolutamente honesto. Quando teve poder, usou-o para ser misericordioso”.Durante décadas, os elogios feitos ao antigo presidente por Robert G. Ingersoll foram largamente citados e corretamente atribuídos ao escritor na imprensa norte-americana. Contudo, a partir da década de 1930, a citação foi sendo cada vez mais resumida, e acabou atribuída indevidamente a Lincoln. Questões de autoria à parte, o poder desperta paixões. Na visão de alguns, ele corrompe; na de outros, ele revela. Machado de Assis poetizou o tema em A Mosca Azul.
Tanto Bolsonaro quanto Lula precisam do poder como do ar que conspurcam com sua pútrida respiração. O petralha foi eleito em 2002, exerceu o poder por mais de 13 anos e agora quer voltar à cena do crime. O sociopata foi eleito em 2018 e quer permanecer na cena do crime. Ao que tudo indica, um deles realizará seu intento graças ao despreparo do eleitorado tupiniquim, composto majoritariamente por gente incapaz de perceber que políticos não devem ser endeusados, mas cobrados, e que, como as fraldas, devem ser trocados regularmente, e pelos mesmos motivos.
Em seu penúltimo despautério eleitoreiro, Bolsonaro deu mais uma prova de sua total incompatibilidade com o exercício do cargo que ainda ocupa graças à leniência do Legislativo e do Judiciário. Como derrubar os presidentes da Petrobras não funcionou, ele subiu o tom e o status, demitindo o próprio ministro de Minas e Energia. Seria mais sensato utilizar os dividendos bilionários distribuídos pela empresa aos acionistas (entre os quais o governo brasileiro, que é o acionista majoritário) para criar um fundo de amortização que minimizasse os impactos do preço do barril do petróleo no mercado internacional (causado pela invasão da Ucrânia) e da alta do dólar (causada pela instabilidade gerada pelo atual governo). Mas a Bolsonaro interessa jogar para a plateia (leia-se sua bolha de apoiadores), sinalizando que ele fez sua parte; se não deu certo, não foi por culpa dele.
Dirigindo-se à imprensa numa "entrevista sem direito a perguntas", o novo ministro deixou claro que Bolsonaro trocou um almirante por um comediante. Esperava-se que Adolfo Sachsida dissesse meia dúzia de palavras sobre a política de preços da Petrobras e a trama do centrão para destinar R$ 100 bilhões do pré-sal à construção de uma rede de gasodutos que se ajusta às conveniências do empresário Carlos Suarez, o “rei do gás”. Em vez disso, ele citou Deus, família e Bolsonaro, enalteceu a iniciativa privada e falou que o Brasil é um “porto seguro” para investimentos das “democracias ocidentais” (que, não sem razão, andam assustadas com o que ocorre por aqui). Sobre combustíveis, inflação, soluções possíveis, nem uma palavra.
De acordo com Josias de Souza, o mais novo integrante da trupe ministerial preferiu contar duas anedotas para anunciar o que chamou de “primeiro ato”. Numa, disse que será incluída no programa de privatização do governo a PPSA, estatal criada para explorar o pré-sal. Na outra, disse ter encomendado estudos para privatizar também a Petrobras. Tudo isso a cinco meses da eleição e a sete meses do final deste governo. O ministro desceu do palco sem responder a perguntas, mas esclareceu que suas anedotas são 100% avalizadas pelo presidente da República.
Paulo Guedes, ex-chefe de Sachsida, prometeu arrecadar R$ 1 trilhão com a venda de estatais no primeiro ano da gestão Bolsonaro. Não privatizou nenhuma empresa. O governo havia fixado esta sexta-feira 13 como data-limite para a venda da Eletrobras. O processo está travado no TCU. Ao fazer graça com privatizações sem dizer coisa alguma sobre os planos para frear os reajustes dos combustíveis, o ministro nos faz pensar em Bolsonaro como aqueles vira-latas de antigamente, que corriam atrás de carros, tentando lhes morder os pneus. A diferença é que o “mito” corre atrás de um carro parado. Ele passa a impressão de que vai enterrar os caninos na estatal a cada novo aumento dos combustíveis, mas acaba sempre mordendo o próprio rabo.
Ainda no início desta pavorosa gestão, um ato falho levou Bolsonaro a dizer em alto e bom som que “não nasceu para ser presidente, mas para ser militar”. Mas sua carreira no Exército terminou devido a acusações de indisciplina e insubordinação. A história começou em 1986, quando o então integrante do 8º Grupo de Artilharia de Campanha publicou na revista Veja um artigo intitulado “O salário está baixo” — e foi agraciado com 15 dias de prisão. No ano seguinte, a própria Veja denunciou a “Operação beco sem saída”, na qual Bolsonaro e o também capitão Fábio Passos da Silva pretendiam explodir bombas de baixa potência em várias unidades da Vila Militar, da Academia Militar das Agulhas Negras e em diversos quartéis caso o reajuste do soldo ficasse abaixo de 60%.
De acordo com o general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército à época, os capitães “negaram peremptoriamente, da maneira mais veemente, por escrito, do próprio punho, qualquer veracidade daquela informação”. Mas provas testemunhais e documentais — entre as quais um croqui desenhado pelo próprio Bolsonaro — levaram o general a apresentar um pedido de expulsão dos envolvidos. Em 1988, já desligado do Exército, o ex-capitão (que sempre balizou sua atuação política em assuntos caros aos fardados) foi eleito vereador com o apoio das Forças Armadas. Dois anos depois, levou sua bandeira da Câmara Municipal para a Federal, onde passou 27 anos, aprovou dois míseros projetos e colecionou mais de trinta ações criminais.
Em 1991, no primeiro de seus sete mandatos consecutivos, Bolsonaro defendeu o retorno do regime de exceção e o fechamento temporário do Congresso, mas a ação penal por crime contra a segurança nacional, ofensa à Constituição e ao regimento interno da Câmara deu em nada. Em 1994, disse que “preferia sobreviver no regime militar a morrer naquela democracia”. Em 1999, a Mesa Diretora da Câmara propôs um mês de suspensão ao parlamentar por defender o fechamento do Congresso e afirmar que “a situação do país seria melhor se a ditadura tivesse matado mais gente” — entre os quais o então presidente Fernando Henrique —, mas a pena aplicada não passou de uma simples advertência. Meses depois, quando ele voltou a defender o fuzilamento de FHC, o então líder do governo na Câmara chegou a pedir sua cassação, mas a proposta sequer chegou ao plenário da Casa. Em 2016, ao votar a favor do impeachment de Dilma, a inesquecível, Bolsonaro fez uma homenagem ao coronel torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra e foi denunciado ao Conselho de Ética da Câmara por apologia à tortura, mas, mais uma vez, nada aconteceu.
Durante a campanha presidencial de 2018, circulou na Web a informação (falsa) de que Bolsonaro teria deixado o quartel por “insanidade mental”. A assessoria de imprensa do Exército divulgou uma nota afirmando que ele havia sido transferido para a reserva automaticamente ao se eleger vereador, conforme determina o Estatuto dos Militares. Balela. O então capitão só não foi expulso do Exército porque a denúncia que o levou às barras da Justiça Militar partiu de Veja, e os episódios que a embasaram aconteceram durante a ressaca da ditadura — época em que ninguém tinha mais aversão à imprensa do que os militares. Fala-se, inclusive, que o STM teria condicionado a absolvição favorável à reforma do acusado.
Declarações polêmicas sempre foram (e continuam a ser) a marca registrada de Bolsonaro. A exemplo de Ciro Gomes, o presidente diz o que pensa antes de pensar no que vai dizer. Ciro é mais um populista que aspira ao Planalto (que ora disputa pela quarta vez), mas sua oratória é admirável, ao passo que a de Bolsonaro obreia com a de Dilma, que era incapaz de juntar cré com lé numa frase que fizesse sentido.
Bolsonaro foi eleito presidente graças a uma conjunção de fatores, entre os quais o antipetismo e a competência de Gustavo Bebianno como articulador de campanha, sem falar na providencial facada que levou de um despirocado inimputável (mas que não come merda nem rasga dinheiro). Graças a Adélio Bispo, o então candidato do PSL arrumou uma justificativa para não participar dos debates em que seria fatalmente trucidado pela retórica de Ciro Gomes. Mas a pergunta que não quer calar é: se não nasceu para ser presidente, por que diabos o sujeito fez da reeleição seu único projeto de governo? “Prometo que, se eleito, vou trabalhar noite e dia, durante os quatro anos do meu mandato… para ser reeleito”, teria sido sua mais sincera promessa de campanha, como bem destacou o ex-delegado federal Jorge Pontes.
Bolsonaro percorre a conjuntura que o desfavorece criando crises para desviar a atenção dos graves problemas que não consegue resolver. Entre uma motociata e outra, passeia de jet-ski, participa de atos antidemocráticos, faz discursos golpistas, vitupera o STF, o TSE e as urnas eletrônicas, diz que o lucro da Petrobras “é um estupro”, frita ministros e presidentes da estatal em lives e defende a privatização da empresa. Como sabe que isso não vai acontecer, troca Roberto Castello Branco por Joaquim Silva e Luna, e este por José Mauro Coelho, numa clara tentativa de encontrar um novo Pazuello (um manda e o outro obedece), como fez na Saúde com a nomeação de Marcelo Queiroga.
Mudam as moscas, mas a merda continua rigorosamente a mesma. Com perfis diferentes, os dois degolados e o ministro recém-empossado concordam no principal: reprimir o preço dos combustíveis na marra é burrice (que o diga a ex-gerentona de araque). Eliane Cantanhede escreveu no Estadão que a demissão de Bento Albuquerque serviu de alternativa à já cansativa guerra contra o TSE. Foi como mudar de canal para distrair o país com a ficção da privatização da Petrobras e mais um episódio da série “como jogar almirantes no mar, brigadeiros no ar e generais na terra crua” — o que provocou apenas muxoxos nos grupos de WhatsApp de oficiais da Marinha, deixando a preocupante sensação de que os militares estão anestesiados por salários, privilégios e a falsa sensação de poder. Por outro lado, quem manda no país é o Centrão, e o Centrão, diferentemente dos fardados, defende as eleições e as urnas eletrônicas.
Observação: Na Venezuela, o chavismo corrompeu as Forças Armadas com vantagens salariais e negócios escusos. No Brasil, o bolsonarismo acariciou as forças militares com investimentos orçamentários e mimos previdenciários. Há um ano, editou-se portaria para colocar os contracheques dos generais de estimação do capitão numa laje acima do teto salarial do serviço público. Ali, os comandantes de escrivaninha passaram a receber até R$ 78,6 mil mensais, o dobro do salário dos ministros do Supremo. Na época, até o vice-presidente disse que a medida não era ética, mas o próprio Mourão e seus companheiros de armas Luiz Eduardo Ramos, Augusto Heleno e Walter Braga Netto embolsaram ganhos extras superiores a R$ 300 mil em um ano. O escárnio ajuda a explicar a submissão dos generais ao capitão indisciplinado. Assim como Bolsonaro, Chávez, um coronel golpista, chegou ao poder pelo voto. No início, simulou respeito às instituições. Aos pouquinhos, corroeu a democracia por dentro. Comprou os militares, anulou o Legislativo, calou a imprensa e cooptou o Judiciário. Milícias bolivarianas armadas pelo governo vigiam e amedrontam a população. Qualquer semelhança com o projeto político de Bolsonaro não é mera coincidência. A milícia bolsonarista, por ora, opera apenas em ambiente virtual. Simultaneamente, o governo civil mais militar da história arma a população. Bem pagos, os generais bolsonaristas compartilham com o capitão a mesma aversão à imprensa, ao Judiciário e ao sistema eleitoral. Bolsonaro deve recitar o CPF e o RG diariamente diante do espelho para ter a certeza de que é ele mesmo quem preside o Brasil, não um impostor venezuelano.
Como não costuma erguer a bandeira branca por muito tempo, Bolsonaro já afirmou que o ministro Fachin “foi descortês com as Forças Armadas” ao dizer que “quem trata de eleições são as forças desarmadas”. Aguardemos, pois, os próximos capítulos.