Em meados da década passada, quando
informática vendia feito pão quente, eu comecei a escrever um manual prático de
hardware ― mas somente nas horas vagas, pois os artigos que publicava nas revistas
especializadas é que pagavam as contas. Por isso, assim que eu concluía um capítulo
do livro ― sobre processadores, placas de sistema, memórias, ou o que fosse ―, novos dispositivos tecnologicamente mais avançados me impunham um círculo vicioso infernal
de atualizações. Faço essa remissão porque, ironicamente, a coisa se repete na esfera da política, onde a rapidez com
que as mudanças ocorrem torna quase impossível acompanhar pari passu seus desdobramentos no caleidoscópico cenário tupiniquim. Dito isso, sigamos adiante.
A decisão unânime dos ministros da
8.ª Turma do TRF-4 deixou
Lula com um
pé na cadeia e outro na casca de banana.
Embargos de declaração se prestam a esclarecer pontos obscuros ou controversos de uma decisão judicial, não tendo,
portanto, o condão de anular ou promover qualquer modificação na condenação. Já a
representação na ONU é mais uma
chicana de
Zanin, cujos efeitos ― isso se ela produzir algum ― seriam eminentemente políticos, pois
o Comitê não é uma instância de julgamento (ele pode até sugerir mudanças para garantir que os direitos reclamados
não sejam mais violados, mas não tem poderes para interromper o processo,
evitar a prisão de alguém ou exigir a troca do juiz responsável pelo caso).
O pedido de
habeas corpus preventivo ao
STJ
eram favas contadas, da mesma forma que seu resultado desfavorável ao postulante. No
âmbito do
STF, a ministra
Cármen Lúcia não só se manifestou
avessa à ideia de voltar a debater a prisão de condenados em segunda instância,
como também reforçou o recado a
Lula e sua defesa no discurso que proferiu durante a cerimônia de reabertura dos trabalhos do Judiciário
(detalhes
nesta postagem).
Observação:
Em artigo publicado na Folha, os ministros Luís Roberto Barroso, do STF, e Rogério Eschietti, do STJ, afirmam que um estudo considerando quase 69 mil decisões do STJ ― monocráticas e de colegiado ― ao longo de dois anos derruba o argumento de que recursos mudam os vereditos da segunda instância. A soma dos percentuais de absolvição e substituição de pena é de apenas 1,64%; portanto, seria "ilógico moldar o sistema em função da exceção, e não da regra (...) e o STF voltar atrás nessa matéria [execução provisória da pena após condenação em segunda instância] traria pouco benefício, já que a redução do risco de ser punido manteria a atratividade do crime, desestimularia a colaboração com a Justiça e, em vez de incentivar empreendedores honestos, continuaria a favorecer quem transgride as leis penais”.
Mudando de pato pra ganso: O
TRF-1 derrubou a decisão do juiz federal
Ricardo Leite,
da 10.ª Vara Federal do DF, que havia
determinado a apreensão do passaporte
do ex-presidente. Em sua decisão, o magistrado disse que a viagem à África, dois
dias depois da condenação de Lula no
TRF-4,
representaria risco de fuga, já que ele poderia pedir asilo político. Já o
desembargador
Bruno Apolinário
classificou os argumentos como “impertinentes” e afirmou que o juiz de primeira
instância agiu com “impulso de extrapolar o próprio âmbito de atuação para
alcançar processos que lhe são estranhos”. No seu entender, tanto o
TRF-4 quanto a 13ª Vara Federal de
Curitiba, responsáveis pelos processos contra
Lula no Paraná, “
detêm
competência legal para dispor sobre medidas assecuratórias de suas decisões e,
ao que se sabe até aqui, nenhum deles ordenou qualquer providência de tal
natureza, nem mesmo após a confirmação recente da condenação suportada pelo
paciente, decerto por não terem vislumbrado a presença de motivos suficientes
para tanto”.
“Lula jamais fugiria; fugir seria
reconhecer sua culpa; ele quer concorrer à presidência”, afirmaram os
seguidores da Seita do Inferno. Mas, de um sujeito que transformou o
esquife da mulher em palanque e o funeral em comício, que um dia depois de ser
condenado pelo TRF-4 conclamou o enfrentamento político para defendê-lo,
mesmo que para isso fossem necessárias ações ofensivas nas ruas, pode-se
esperar qualquer coisa.
Há quem diga que a apreensão
do passaporte foi extemporânea e desnecessária, servindo apenas para
acirrar ainda mais os ânimos da patuleia ignara e embasar sua teoria
estapafúrdia de perseguição política. Nessa linha de raciocínio, somente com
“grande exercício de imaginação” poder-se-ia concluir que Lula trocaria sua candidatura a mártir por uma biografia de fujão. Caberá ao tempo mostrar a quem assiste razão nesse imbróglio.
Voltando à vaca fria, na última sexta-feira a defesa de
Lula ingressou com outro pedido de
habeas corpus preventivo ― desta vez no
STF ― postulando a liberdade de seu cliente até o esgotamento dos recursos em todas as instâncias da Justiça. No
documento de 68 páginas endereçado à presidente
Cármen Lúcia, os advogados voltaram a
citar a “
certeza da iminência” da ordem de prisão e pediram que seu apelo
seja julgado pela
2.ª Turma da Corte.
O recurso foi distribuído ao ministro
Fachin,
relator da Lava-Jato no
Supremo, que
poderá tomar a decisão monocraticamente ou levar o assunto ao colegiado.
Vale lembrar que 4 dos 5 integrantes da 2.ª Turma são contrários
à execução da pena após a condenação em segundo grau, e que a banda de
defensores do petralha rebateu a declaração de Cármen Lúcia ― de que levar as prisões em segunda instância a um
novo julgamento no STF, apenas em
função do caso de Lula, seria
“apequenar” o Supremo.
Uma súmula editada em 2003
estabelece que o STF não pode
analisar recursos ainda pendentes de julgamento em outro tribunal superior. Em
casos assim ― como é o de Lula ―,
diz a súmula que o pedido deve ser indeferido.
Observação: Uma súmula
normatiza no Supremo uma determinada interpretação ― unânime ou majoritária ―
que se torna recorrente em julgamentos de sucessivos casos análogos. Esse
instrumento se destina a tornar pública uma nova jurisprudência e harmonizar a
atuação Corte, uniformizando as decisões de seus 11 ministros.
A súmula que se aplica
ao caso de Lula reza que "
não compete ao STF
conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do relator que, em habeas corpus requerido a tribunal
superior, indefere a liminar". Trocando em miúdos, nos casos em que há apenas
pronunciamento liminar [provisório] de outro tribunal superior, sem decisão
definitiva,
o Supremo não pode
admitir a concessão de habeas corpus
― na verdade, nem deve nem analisar o mérito do pedido, a menos que se
tratasse de uma situação totalmente heterodoxa, o que não parece ser o caso.
Os embargos declaratórios
interpostos contra o acórdão que confirmou a condenação do petralha em primeira
instância ainda não foram julgados. Os três desembargadores do TRF-4 deixaram claro que a execução da
sentença se dará depois que for encerrada a fase de análise do recurso do
condenado naquele Tribunal ― ou seja, sem prejuízo dos apelos que sua defesa
encaminhará aos tribunais superiores, Lula
pode ser preso no complexo-médico penal
de Pinhais, na região metropolitana de Curitiba, que abriga os condenados
da Lava-Jato.
Na 1.ª Turma do STF,
respeita-se a súmula em questão. Excetuando-se o ministro Marco Aurélio Mello, os outros quatro ― Luís Roberto Barroso, Luiz
Fux, Rosa Weber e até Alexandre de Moraes— costumam mandar
para o arquivo recursos ainda sem decisão definitiva do STJ. Ocorre que o relator da Lava-Jato
na Corte, ministro Edson Fachin,
integra a 2.ª Turma, para a qual a súmula 691 só vale até certo ponto. Fachin pensa diferente, mas Gilmar Mendes,
Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e, por vezes, até o decano Celso de Mello são mais concessivos ao julgar pedidos de habeas corpus.
À luz do histórico de suas decisões, Fachin deve indeferir o pedido de habeas corpus de Lula,
mas a defesa do molusco pode solicitar que a decisão seja submetida à 2.ª Turma. Sabendo-se em minoria, o ministro
deve transferir a decisão para o plenário da Corte, como já fez num caso bem
menos rumoroso, envolvendo o ex-ministro petralha Antonio Palocci (adeptos da política de celas abertas, seus colegas
de turma chiaram, mas o regimento interno autoriza o relator a aumentar número
de ministros responsáveis pela decisão).
No caso específico de Lula, Fachin pode argumentar
que um recurso que tem como pano de fundo a prisão de um ex-presidente da
República é tão relevante que não pode ser analisado senão pelo plenário da
Corte. O desenrolar dos acontecimentos mostrará se as decisões do STF se balizam pela justiça ou pelo
compadrio.
Para liberar Lula
antecipadamente da cadeia, o Supremo terá de transgredir o postulado da
hierarquia do grau de jurisdição: além de atropelar o STJ, mandará em definitivo à lata de lixo a súmula 691, uma
jurisprudência de 15 anos. Nessa hipótese, não podendo elevar a própria
estatura, a banda apequenada do Pretório Excelso rebaixará o pé-direito do
plenário.
Com Veja.