segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

AINDA SOBRE O PAÍS DO ACHINCALHE



Sobre o caso da vestal ofendida que mandou deter o advogado Cristiano Acioli por expressar sua opinião sobre o Supremo, o jornalista Mario Sabino escreveu revista digital Crusoé: “Rebuscar a linguagem jurídica, não só em contratos e testamentos, mas em sentenças e julgamentos, remonta aos tempos da Roma Antiga, e que, nos desvãos do jargão e nos labirintos das frases, moram o sofisma e o seu coroamento: o casuísmo.”

A linguagem jurídica rebuscada adultera a clareza da língua e, portanto, é uma forma de corrupção. Embrulhado no universo corrompido pela linguagem rebuscada, em que as prosopopeias se fazem acompanhar por rapapés mais ou menos republicanos, Ricardo Lewandowski, ao ouvir de um cidadão comum, embarcado no mesmo voo de São Paulo a Brasília, que o STF é “uma vergonha”, mandou prender o insurgente (Acioli foi levado para a PF, onde prestou depoimento e foi liberado em seguida)

A pergunta que não quer calar é: por que diacho o cidadão acha o STF “uma vergonha”? Só porque Lewandowski manteve os direitos políticos de Dilma Rousseff, depois de ela sofrer impeachment, em desacordo com a Constituição? Só porque esse mesmo magistrado queria que o condenado Lula desse entrevista antes da eleição, para atacar a Justiça que o prendeu e o proibiu de se candidatar? Só porque Gilmar Mendes é sócio de uma faculdade que recebe patrocínios oficiais e nem tanto? Só porque Dias Toffoli recebe — ou recebia — uma mesada de 100 mil reais da mulher advogada e o COAF não foi informado pelo banco? Só porque ministros vão a convescotes patrocinados por bacharéis com causas em tribunais superiores? Só porque Luís Roberto Barroso desabafou que havia gabinetes no Supremo “distribuindo senha para soltar corruptos”?

Se Acioli tivesse dito que o STF é “deontologicamente questionável”, talvez a vestal ofendida não se sentisse ultrajada. Talvez pudesse ter entabulado uma discussão cordial com o indignado da fileira ao lado, entre snacks veganos e Coca Zero oferecidos pela Gol (pagos com verba de viagem, evidentemente). Mas não. O ministro disse que ia mandar prender o cidadão e, quando desembarcaram em Brasília, lá estava a PF esperando o ofensor, como se os agentes não tivessem mais nada que fazer.

Sem abandonar o jargão que lhes é ferramenta, os juízes da Suprema Corte Americana não corrompem a língua com o juridiquês e literatices encobridoras. Obrigam-se a que as suas sentenças sejam cristalinas e, portanto, inteligíveis a qualquer cidadão americano com instrução média. E, em 2014, passaram a exigir que as petições dos advogados também fossem em “plain terms” — objetivas, diretas, sem trololós. Quando é clara, a linguagem traduz posições límpidas; como forma é conteúdo, ela também produz comportamentos transparentes.

Um cidadão americano pode até não concordar com as decisões da Suprema Corte, mas jamais poderá dizer que ela é “uma vergonha”. Os juízes seguem um código de conduta rigoroso, estejam eles à direita ou à esquerda no espectro político. O conservador Antonin Scalia, que morreu em 2016, protagonizou um episódio exemplar no Brasil. Convidado para um jantar no Copacabana Palace, organizado por ex-alunos de Harvard, Scalia, ao saber que um advogado brasileiro com uma causa na Suprema Corte americana estaria presente, pediu que ele fosse tirado da lista. O pedido não foi atendido, e Scalia não foi ao jantar.

Ricardo Lewandowski, togado ministro do STF pelo deus pai da Petelândia, preside a segunda turma do STF, conhecida como Jardim do Éden pelos criminalistas estrelados, pagos a peso de ouro para livrar o rabo de corruptos milionários.  Que respeito merece uma corte em que ‘juízes’ são gestados e paridos em gabinetes de presidentes amigos — alguns suspeitos por denúncias sólidas de corrupção, e um até condenado e preso por corrupção e lavagem de dinheiro?

O magistrado injuriado é um petista de coração e colaboração incondicional. Já na Ação Penal 470, que ficou conhecida como “processo do Mensalão”, ele se destacou como fiel escudeiro da bandidagem vermelha. Perguntado pela imprensa sobre quando liberaria o relatório do ministro Joaquim Barbosa, o ministro Lewandowski, revisor do processo, respondeu que era preciso primeiro receber o relatório em questão — que já estava disponível na rede local do STF, de acesso restrito aos ministros, havia seis meses. Segundo se noticiou na época, a estratégia de Lewandowski era dar tempo ao tempo para que alguns crimes prescrevessem. 

Observação: Lewandowski só liberou o processo para julgamento depois de receber uma “prensa” do ministro Ayres Britto, mas mais constrangedor foi o fato de ele ter tramado com o advogado Márcio Thomas Bastos o fatiamento do processo, remetendo às instância estaduais a parte referente aos réus que não tinham direito ao foro privilegiado, como era o caso de José Dirceu. Se a maracutaia tivesse prosperado, muitos bandidos teriam saído impunes por obra e graça da prescrição.

Ao longo do julgamento, Lewandowski atuou mais como defensor do réus do que como juiz, e teve atritos memoráveis com o ministro Joaquim Barbosa. Mas o ministro-cumpanhêro é mais conhecido como “flagelo da Constituição” devido à sua atuação no processo de impeachment de Dilma. Eu relembrei esse fato no post anterior, mas vale a pena dedicar-lhe mais algumas linhas.

Reza o artigo 52 da Constituição, em seu parágrafo único: (...) Funcionará como Presidente (do processo de impeachment) o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.” Não é difícil inferir que “com”, no caso, exerce a função de conjunção subordinativa aditiva, relacionando o que vem depois dela (inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública) com o que vem antes (perda do cargo). Basta fazer esta singela análise gramatical para concluir que a deposição de Dilma sem a suspensão de seus direitos políticos ofendeu a Constituição, e que, ao permitir que isso ocorresse, o ministro supremo cometeu crime de prevaricação.

Dizer que “O Supremo é uma vergonha e eu tenho vergonha de ser brasileiro quando eu vejo vocês”, como fez Acioli, é exercer o direito à da liberdade de expressão, conquista maior das democracias, e, portanto, não configura crime algum. O Estado de São Paulo noticiou que o gabinete de Lewandowski, em nota, informou que o magistrado “ao presenciar um ato de injúria à Corte, sentiu-se no dever funcional de proteger a instituição a que pertence, acionando a autoridade policial para que apurasse eventual prática de ato ilícito, nos termos da lei”. 

Além de desconhecedor da gramática portuguesa, sua excelência fala em “ato de injúria à Corte”. Seria providencial que alguém explicasse ao ministro-fatiador que crime de injúria é PESSOAL — portanto, inexiste crime de injúria contra instituições.

Talvez um dia venhamos a ter juízes no STF como os da Suprema Corte americana. Até lá, se você encontrar um desses ministros que despertam seus instintos mais primitivos, contenha-se. Se for impossível evitar a reprimenda, diga apenas que o tribunal é deontologicamente questionável.