Sobre o caso da vestal ofendida que mandou deter o advogado Cristiano Acioli por expressar sua opinião sobre o Supremo, o jornalista Mario Sabino escreveu revista digital Crusoé: “Rebuscar a linguagem
jurídica, não só em contratos e testamentos, mas em sentenças e julgamentos, remonta
aos tempos da Roma Antiga, e que, nos desvãos do jargão e nos labirintos das
frases, moram o sofisma e o seu coroamento: o casuísmo.”
A linguagem jurídica rebuscada adultera a
clareza da língua e, portanto, é uma forma de corrupção. Embrulhado no universo corrompido pela linguagem
rebuscada, em que as prosopopeias se fazem acompanhar por rapapés mais ou menos
republicanos, Ricardo Lewandowski,
ao ouvir de um cidadão comum, embarcado no mesmo voo de São Paulo a Brasília,
que o STF é “uma vergonha”, mandou
prender o insurgente (Acioli foi levado para a PF, onde prestou depoimento e foi liberado em seguida)
A pergunta que não quer calar é: por que diacho o cidadão
acha o STF “uma vergonha”? Só porque
Lewandowski manteve os direitos
políticos de Dilma Rousseff, depois
de ela sofrer impeachment, em desacordo com a Constituição? Só porque esse
mesmo magistrado queria que o condenado Lula
desse entrevista antes da eleição, para atacar a Justiça que o prendeu e o
proibiu de se candidatar? Só porque Gilmar
Mendes é sócio de uma faculdade que recebe patrocínios oficiais e nem
tanto? Só porque Dias Toffoli recebe
— ou recebia — uma mesada de 100 mil reais da mulher advogada e o COAF não foi informado pelo banco? Só
porque ministros vão a convescotes patrocinados por bacharéis com causas em
tribunais superiores? Só porque Luís
Roberto Barroso desabafou que havia gabinetes no Supremo “distribuindo
senha para soltar corruptos”?
Se Acioli tivesse dito que o STF é “deontologicamente questionável”, talvez a vestal ofendida
não se sentisse ultrajada. Talvez pudesse ter entabulado uma discussão cordial
com o indignado da fileira ao lado, entre snacks veganos e Coca Zero oferecidos
pela Gol (pagos com verba de viagem,
evidentemente). Mas não. O ministro disse que ia mandar prender o cidadão e,
quando desembarcaram em Brasília, lá estava a PF esperando o ofensor, como se os agentes não tivessem mais nada que fazer.
Sem abandonar o jargão que lhes é ferramenta, os juízes da
Suprema Corte Americana não corrompem a língua com o juridiquês e literatices
encobridoras. Obrigam-se a que as suas sentenças sejam cristalinas e, portanto,
inteligíveis a qualquer cidadão americano com instrução média. E, em 2014,
passaram a exigir que as petições dos advogados também fossem em “plain terms” —
objetivas, diretas, sem trololós. Quando é clara, a linguagem traduz posições
límpidas; como forma é conteúdo, ela também produz comportamentos
transparentes.
Um cidadão americano pode até não concordar com as decisões da
Suprema Corte, mas jamais poderá dizer que ela é “uma vergonha”. Os juízes
seguem um código de conduta rigoroso, estejam eles à direita ou à esquerda no
espectro político. O conservador Antonin
Scalia, que morreu em 2016,
protagonizou um episódio exemplar no Brasil. Convidado para um jantar no
Copacabana Palace, organizado por ex-alunos de Harvard, Scalia, ao saber que um advogado brasileiro com uma causa na
Suprema Corte americana estaria presente, pediu que ele fosse tirado da lista.
O pedido não foi atendido, e Scalia
não foi ao jantar.
Ricardo Lewandowski,
togado ministro do STF pelo deus pai
da Petelândia, preside a segunda turma do STF, conhecida como Jardim do Éden pelos criminalistas
estrelados, pagos a peso de ouro para livrar o rabo de corruptos milionários. Que respeito merece uma corte em que ‘juízes’
são gestados e paridos em gabinetes de presidentes amigos — alguns suspeitos
por denúncias sólidas de corrupção, e um até condenado e preso por corrupção e
lavagem de dinheiro?
O magistrado injuriado é um petista de coração e colaboração
incondicional. Já na Ação Penal 470,
que ficou conhecida como “processo do Mensalão”, ele se destacou como fiel escudeiro da bandidagem vermelha. Perguntado pela imprensa
sobre quando liberaria o relatório do ministro Joaquim Barbosa, o ministro Lewandowski, revisor do processo, respondeu que era preciso primeiro receber o relatório em questão — que já estava disponível na rede local do STF, de acesso restrito aos ministros,
havia seis meses. Segundo se noticiou na época, a estratégia de Lewandowski era dar tempo ao tempo para
que alguns crimes prescrevessem.
Observação: Lewandowski só liberou o processo para julgamento depois
de receber uma “prensa” do ministro Ayres
Britto, mas mais constrangedor foi o fato de ele ter tramado com o advogado Márcio Thomas Bastos o fatiamento do
processo, remetendo às instância estaduais a parte referente aos réus que não
tinham direito ao foro privilegiado, como era o caso de José Dirceu. Se a maracutaia tivesse prosperado, muitos bandidos
teriam saído impunes por obra e graça da prescrição.
Ao longo do julgamento, Lewandowski
atuou mais como defensor do réus do que como juiz, e teve atritos memoráveis
com o ministro Joaquim Barbosa. Mas
o ministro-cumpanhêro é mais conhecido como “flagelo da Constituição” devido à
sua atuação no processo de impeachment de Dilma.
Eu relembrei esse fato no post anterior, mas vale a pena dedicar-lhe mais
algumas linhas.
Reza o artigo 52 da
Constituição, em seu parágrafo único: (...) Funcionará como Presidente (do
processo de impeachment) o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a
condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado
Federal, à perda do cargo, com
inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo
das demais sanções judiciais cabíveis.” Não é difícil inferir que “com”, no
caso, exerce a função de conjunção subordinativa aditiva, relacionando o que
vem depois dela (inabilitação, por oito
anos, para o exercício de função pública) com o que vem antes (perda do cargo). Basta fazer esta
singela análise gramatical para concluir que a deposição de Dilma sem a suspensão de seus direitos
políticos ofendeu a Constituição, e que, ao permitir que isso ocorresse, o
ministro supremo cometeu crime de
prevaricação.
Dizer que “O Supremo é uma vergonha e eu tenho vergonha de
ser brasileiro quando eu vejo vocês”, como fez Acioli, é exercer o direito à da liberdade
de expressão, conquista maior das democracias, e, portanto, não configura crime algum. O Estado de São Paulo noticiou que o gabinete de Lewandowski, em nota, informou
que o magistrado “ao presenciar um ato de injúria à Corte, sentiu-se no dever funcional de
proteger a instituição a que pertence, acionando a autoridade policial para que
apurasse eventual prática de ato ilícito, nos termos da lei”.
Além de
desconhecedor da gramática portuguesa, sua excelência fala em “ato de injúria à Corte”. Seria
providencial que alguém explicasse ao ministro-fatiador que crime de injúria é
PESSOAL — portanto, inexiste crime de injúria contra instituições.
Talvez um dia venhamos a ter juízes no STF como os da Suprema Corte americana. Até lá, se você encontrar
um desses ministros que despertam seus instintos mais primitivos, contenha-se.
Se for impossível evitar a reprimenda, diga apenas que o tribunal é
deontologicamente questionável.