domingo, 26 de novembro de 2017

O FORO PRIVILEGIADO E O POVO DESPRIVILEGIADO

O foro privilegiado (ou foro especial por prerrogativa de função, que é o nome correto desse troço) existe em outros países além do Brasil. Só que em nenhum lugar do mundo é estendido a tanta gente quanto por aqui, onde, além do presidente da República, do vice e dos presidentes dos Poderes Legislativo e Judiciário, também são julgados por cortes superiores ministros de Estado, senadores, deputados federais, embaixadores, membros dos Tribunais de Contas e dos Tribunais Regionais, desembargadores, governadores, prefeitos, juízes, integrantes do Ministério Público e por aí segue a quase interminável procissão  de cidadãos “mais iguais perante a lei que os demais” (não se sabe ao certo quantos são, mas o número fica entre 50 mil e 70 mil).

O benefício em questão foi instituído para proteger o exercício de função ou mandato público; não à toa, seus efeitos são suspensos quando o beneficiário deixa de exercer o cargo que o assegura. No entanto, se alguém que já responde a processo se elege senador, por exemplo, a ação é remetida ao STF; findo o mandato, se ainda não tiver sido julgada (situação nada incomum), ela retorna à instância de origem, e volta novamente para o Supremo se o fulano se reeleger, o que também é bastante comum. Como as cortes superiores não têm estrutura para receber denúncias e analisar provas processuais penais, até porque isso é atribuição da primeira instância da Justiça, o foro privilegiado resulta em morosidade na tramitação dos processos, fomenta a prescrição (*) dos crimes e alimenta a inarredável sensação de impunidade que estimula os privilegiados a delinquir.

Entre os protegidos pelo foro especial, casos se acumulam sem julgamento por até 20 anos. Foi somente em junho de 2013 que o STF expediu o primeiro mandado de prisão contra um parlamentar na história ― o ex-deputado Natan Donadon, condenado por desvio de dinheiro público. Mesmo no caso do mensalão, veloz para os padrões do STF, o julgamento levou oito anos para ser concluído. Segundo levantamento feito em 2015 pela revista Exame, de 500 parlamentares que foram alvo de investigação ou ação penal no STF nos últimos 27 anos, apenas 16 foram condenados; destes, 8 foram presos, e destes, apenas um continua no xadrez (os demais ou recorreram ou se beneficiaram da prescrição para se livrar dos processos).

Observação: Segundo o próprio Supremo, cerca de 30% dos processos contra parlamentares perduram dez anos sem julgamento e outros 40% estão há mais de seis anos à espera de ser apreciados. Grande é o número de feitos que têm extinta a punibilidade pela prescrição. A morosidade se dá não apenas no âmbito daquela Corte, mas na atuação da PGR e da própria Polícia Federal no exame dos inquéritos policiais e no cumprimento de diligências requeridas.

Existem no Congresso dezenas de propostas que visam por fim ao foro privilegiado, sendo que a mais antiga, de 2005, ficou parada por mais de uma década à espera da designação de um relator! O assunto voltou à baila com a Lava-Jato, depois que Dilma nomeou Lula ministro-chefe da Casa Civil para tirá-lo do alcance do juiz Sérgio Moro. Com o impeachment da anta, o pulha deu com os burros n’água, e hoje é réu em 7 processos, já foi condenado a 9 anos e meio de prisão e aguarda para breve sua segunda sentença.

Considerando o número assustador de parlamentares investigados, denunciados e/ou processados no Supremo, não seria de se esperar que partisse do antro em que se tornou o Congresso uma ação moralizadora. No entanto, diante da possibilidade de o Judiciário avocar para si a missão de colocar ordem no galinheiro, suas insolências não tiveram alternativa senão jogar para a plateia, aprovando uma PEC que visa restringir a prerrogativa de foro aos presidentes dos 3 poderes (e ao vice-presidente da república). Mas tudo não passou de mise-en-scène, conforme eu detalhei na postagem anterior. O que os parlamentares fizeram foi, matreiramente, buscar uma maneira de aproveitar o inevitável para vender uma imagem de lisura, de sintonia com os anseios de quem já não suporta mais tanta corrupção. Como a PEC em trâmite no Congresso alcança também os integrantes do Judiciário ― dos ministros do STF aos juízes de primeira instância, promotores, procuradores e assemelhados ― é nítido que a intenção dos congressistas é retaliar seus virtuais algozes.

Na última quinta-feira, depois de se ter reunido com Michel Temer, o virtuoso, o ministro Dias Toffoli, o sábio ― que passou de advogado do PT a assessor de José Dirceu e acabou promovido a ministro do Supremo por obra e graça de Lula, o criminoso ―, valeu-se de um suspeitíssimo pedido de vista para suspender o julgamento da moção do ministro Luis Roberto Barroso, que, também como já foi dito no post anterior, limita o foro privilegiado dos deputados e senadores a crimes cometidos no exercício de seus mandatos parlamentares e relacionados aos cargos que ocupam.

Ainda que a maioria tenha seguido o voto do relator, além do próprio Toffoli faltam votar os ministros Mendes e Lewandowski ― ou seja, o famoso trio assombro do STF. Na prática, não há prazo para que Toffoli devolva os autos, e até a proclamação do resultado final do julgamento continuam valendo as regras atuais que regem o foro privilegiado. 

A postura desses magistrados compromete a imagem do Judiciário, que até recentemente era visto como a única esperança do povo num cenário em que o Executivo carece de apoio popular e o Legislativo, de confiabilidade. Embora a solução para a crise política exija credibilidade do Judiciário, esses ministros parecem mais empenhados em chafurdar a imagem da Corte no pântano das suspeitas, das chicanas e dos acordões.

(*) No jargão do direito, o termo prescrição designa a perda da pretensão punitiva estatal em razão do decurso do lapso temporal previsto em lei (entenda-se por pretensão o poder de exigir de outrem, em juízo, uma prestação).

Por hoje é só. O resto fica para a próxima postagem.

Visite minhas comunidades na Rede .Link: