O foro privilegiado (ou foro especial por prerrogativa de função,
que é o nome correto desse troço) existe em outros países além do Brasil. Só que em nenhum lugar do mundo é estendido a tanta gente quanto por aqui, onde, além do presidente da República, do vice e dos presidentes dos Poderes Legislativo e Judiciário, também são
julgados por cortes superiores ministros
de Estado, senadores, deputados federais, embaixadores, membros dos Tribunais
de Contas e dos Tribunais Regionais, desembargadores, governadores, prefeitos, juízes,
integrantes do Ministério Público e por aí segue a quase interminável
procissão de cidadãos “mais
iguais perante a lei que os demais” (não se sabe ao certo quantos são, mas o número fica entre 50 mil e 70 mil).
O benefício em questão foi instituído para proteger o
exercício de função ou mandato público; não à toa, seus efeitos são suspensos quando o
beneficiário deixa de exercer o cargo que o assegura. No entanto, se alguém que
já responde a processo se elege senador, por exemplo, a ação é remetida
ao STF; findo o mandato, se ainda não tiver sido julgada (situação
nada incomum), ela retorna à instância de origem, e volta novamente para o Supremo se o fulano se reeleger, o que
também é bastante comum. Como as cortes superiores não têm estrutura para receber
denúncias e analisar provas processuais penais, até porque isso é atribuição da
primeira instância da Justiça, o foro privilegiado resulta em morosidade na tramitação
dos processos, fomenta a prescrição (*)
dos crimes e alimenta a inarredável sensação
de impunidade que estimula os privilegiados a delinquir.
Entre os protegidos pelo foro especial, casos se acumulam
sem julgamento por até 20 anos. Foi
somente em junho de 2013 que o STF
expediu o primeiro mandado de prisão contra um parlamentar na história ― o
ex-deputado Natan Donadon, condenado por desvio de dinheiro público.
Mesmo no caso do mensalão, veloz para os padrões do STF, o julgamento
levou oito anos para ser concluído. Segundo levantamento feito em 2015 pela
revista Exame, de 500 parlamentares que foram alvo de investigação
ou ação penal no STF nos últimos 27 anos, apenas 16 foram condenados; destes, 8 foram presos, e destes, apenas um
continua no xadrez (os demais ou recorreram ou se beneficiaram da prescrição
para se livrar dos processos).
Observação: Segundo o próprio Supremo, cerca de 30% dos processos contra parlamentares perduram
dez anos sem julgamento e outros 40% estão há mais de seis anos à espera de ser
apreciados. Grande é o número de feitos que têm extinta a punibilidade pela
prescrição. A morosidade se dá não apenas no âmbito daquela Corte, mas na
atuação da PGR e da própria Polícia Federal no exame dos inquéritos policiais e
no cumprimento de diligências requeridas.
Existem no Congresso dezenas de propostas que visam por fim ao foro privilegiado, sendo que a mais
antiga, de 2005, ficou parada por mais
de uma década à espera da designação de um relator! O assunto voltou à
baila com a Lava-Jato, depois que Dilma nomeou Lula ministro-chefe da Casa Civil
para tirá-lo do alcance do juiz Sérgio Moro. Com o impeachment da
anta, o pulha deu com os burros n’água, e hoje é réu em 7 processos, já foi
condenado a 9 anos e meio de prisão e aguarda para breve sua segunda sentença.
Considerando o número assustador de parlamentares investigados,
denunciados e/ou processados no Supremo,
não seria de se esperar que partisse do antro em que se tornou o Congresso uma
ação moralizadora. No entanto, diante da possibilidade de o Judiciário avocar
para si a missão de colocar ordem no galinheiro, suas insolências não tiveram
alternativa senão jogar para a plateia, aprovando uma PEC que visa restringir a prerrogativa de foro aos presidentes dos 3 poderes (e ao vice-presidente da república).
Mas tudo não passou de mise-en-scène, conforme eu
detalhei na postagem anterior. O que os parlamentares fizeram foi, matreiramente, buscar uma maneira de aproveitar o inevitável para vender uma imagem de
lisura, de sintonia com os anseios de quem já não suporta mais tanta corrupção.
Como a PEC em trâmite no Congresso alcança também os integrantes do Judiciário ―
dos ministros do STF aos juízes de
primeira instância, promotores, procuradores e assemelhados ― é nítido que a
intenção dos congressistas é retaliar seus virtuais algozes.
Na última quinta-feira, depois de se ter reunido com Michel Temer, o virtuoso, o ministro Dias Toffoli, o sábio ― que passou de
advogado do PT a assessor de José Dirceu e acabou promovido a
ministro do Supremo por obra e graça
de Lula, o criminoso ―, valeu-se de
um suspeitíssimo pedido de vista para suspender o julgamento da moção do ministro Luis Roberto Barroso, que, também como já foi dito no post anterior, limita o foro
privilegiado dos deputados e senadores a crimes cometidos no exercício de seus
mandatos parlamentares e relacionados aos cargos que ocupam.
Ainda que a maioria tenha seguido o voto do
relator, além do próprio Toffoli faltam votar os ministros Mendes e Lewandowski ― ou seja, o famoso trio assombro do STF. Na prática, não há prazo para que Toffoli devolva os autos, e até a
proclamação do resultado final do julgamento continuam valendo as regras
atuais que regem o foro privilegiado.
A postura desses magistrados compromete a
imagem do Judiciário, que até
recentemente era visto como a única esperança do povo num cenário em que o Executivo carece de apoio popular e o Legislativo, de confiabilidade. Embora
a solução para a crise política exija credibilidade do Judiciário, esses
ministros parecem mais empenhados em chafurdar a imagem da Corte no pântano das
suspeitas, das chicanas e dos acordões.
(*) No jargão do
direito, o termo prescrição designa a perda da pretensão punitiva estatal em razão do decurso do lapso
temporal previsto em lei (entenda-se por pretensão o poder de exigir de outrem, em juízo, uma
prestação).
Por hoje é só. O resto fica para a próxima postagem.
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