sexta-feira, 29 de março de 2019

O FANATISMO, O CONSERVADORISMO, O REACIONARISMO E A REVOLUÇÃO DE 64


Dicionaristas definem o fanático como alguém que segue de forma cega uma doutrina ou um partido, e associam o termo “fanatismo” ao culto excessivo de alguém ou de alguma coisa, ao zelo religioso excessivo, paixão políticaintolerância religiosa, sectarismo, exaltação exagerada, facciosismo

Alguns afirmam que essas conotações remetam a um culto pagão a divindades primitivas (como Cibele e Belona), mas, a meu ver, a melhor definição em linguagem coloquial é: o fanatismo é uma merda. A militância petista é um bom exemplo de gente fanática, mas os bolsomínions não ficam atrás — o fanatismo desbragado é o mesmo, o que muda é o lado do espectro político.

Deixando de lado a patuleia ignara (vade retro, Satanás!) e focando apenas nos defensores incondicionais do atual governo, chama a atenção o fato de que, com a aproximação do dia 31 de março, as postagens alusivas (e laudatórias) à revolução de 64 se multiplicam em progressão geométrica. E o pior é que não partem apenas de reacionários incorrigíveis e saudosistas sem causa, mas também de jovens (com idade entre 20 e 30 anos) que nasceram depois de 1985, ano em que a democracia foi restabelecida neste projeto de banânia, e, portanto, só conhecem da ditadura o que ouvem falar.

Observação: Os termos “conservador” e “reacionário” não são sinônimos, ainda que não raro sejam usados (impropriamente) como tal. O conservadorismo é uma ideologia de imperfeição humana, não de arrogância epistemológica — em outras palavras, os conservadores procuram preservar o que é válido no presente recorrendo aos instrumentos desse presente, e não a fantasias do passado. Já os reacionários defendem a volta de um passado (de proteção econômica, fechamento nacional e isolamento internacional) que nunca existiu como perfeição — são “reacionários” porque não são capazes de pensar os problemas do presente sem recorrer ao “era uma vez…” que é típico de crianças, não de adultos.

Voltando à revolução de 64, tem-se ouvido com indesejável frequência, inclusive de gente que transita nos altos escalões governamentais, que não houve ditadura no Brasil. Alguns sustentam essa balela por cegueira doutrinária; outros, por má-fé, e outros, ainda, por pura e simples ignorância. Mas convenhamos: ao exortar as comemorações alusivas à "data histórica", nosso presidente flerta com a irresponsabilidade. Tanto é que os generais da reserva que integram o primeiro escalão do Executivo lhe pediram cautela.

ObservaçãoEnquanto Bolsonaro se preocupa em comemorar 1964, em 2019 a articulação política do seu governo é o caos absoluto, como se viu pela aprovação da PEC do Orçamento Impositivo, que engessa a atuação da equipe econômica — que, por sua vez, achou a princípio que a PEC era uma boa coisa, por incrível que pareça, para fortalecer a “federalização”. Deixe 1964 e volte para 2019, Bolsonaro. O país precisa urgentemente de um presidente.

Num governo que reúne o maior número de ministros militares desde o período da ditadura — o que já gerou insatisfação de parlamentares —, a comemoração do golpe militar deixou de ser uma agenda "proibida", ainda que não tenha retornado ao calendário de comemoração das Forças Armadas por meio de um decreto ou portaria que a formalize. Na última terça-feira, a Defensoria Pública da União anunciou que ajuizará ação civil pública para impedir que o 31 de março, data de início do movimento golpista, seja comemorado nas unidades militares. Na contramão dessa via, outros próceres palacianos se alinham ao presidente, como é caso do ministro das Relações Exteriores (falo do chanceler de direito, não do zero três), que afirmou nesta quarta, 27, na Comissão de Relações Exteriores e Defesa da Câmara dos Deputados, que a intervenção militar de 1964 não foi um golpe, mas um movimento necessário para que o País não virasse uma ditadura (?!).

Para resumir o que poderia se tornar uma longa novela, segue um breve resumo do que foi o golpe militar de 64 e os 21 anos subsequentes, ao longo dos quais generais do Exército se revezaram no poder, chancelados por um jogo de cartas marcadas no Congresso (onde o partido de oposição era meramente figurativo e seus membros, duramente cerceados sempre que ameaçavam incomodar o regime). Como eu tinha 6 anos de idade, o dia da revolução em si não me evoca lembranças, e o que me foi ensinado na escola, nas aulas de História do Brasil e Educação Moral e Cívica, não passou de uma versão deturpada dos fatos. Felizmente, hoje temos a Web e, sabendo separar o joio do trigo, podemos encontrar tudo sobre tudo. O texto a seguir foi baseado num artigo publicado por Carlos Alberto Sardenberg em sua coluna n’ O Globo. Confira:

Partidos e grupos comunistas discutiam qual a maneira de derrubar o capitalismo burguês e implantar a ditadura do proletariado, se pela luta armada ou pelo caminho reformista. Corria o ano de 1964, e a ampla maioria da esquerda era reformista — pelas chamadas reformas de base, processo que começava com a agrária e incluía um amplo cardápio de estatizações.
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O presidente João Goulart, do PTB getulista, no cargo desde a renúncia de Jânio Quadros em 1961, estava claramente no campo da esquerda. Havia comunistas no seu governo e no seu entorno, embora Jango estivesse longe de ser ele mesmo comunista — a exemplo de ilustres membros de seus gabinetes durante o curto período parlamentarista, como os primeiros-ministros Tancredo Neves e Santiago Dantas, que eram, no máximo, social-democratas, trabalhistas ou nacionalistas, preocupados com a distribuição de renda e a proteção social.

Como o grupo comunista era claramente minoritário nessa aliança, o sucesso de Jango levaria o Brasil a uma economia mais estatizada, com o aumento dos gastos públicos em todos os setores, dos sociais à infraestrutura — mais ou menos como aconteceu no governo ditatorial do general Ernesto Geisel, um nacionalista e estatizante da primeira linha, e no governo Lula, mas isso é outra conversa.

Em 1964, o mundo estava em plena Guerra Fria, dividido entre os EUA e a URSS. As plataformas reformistas — aqui, no Chile, na Argentina, em toda parte — procuravam se aproximar não propriamente da União Soviética, mas de um bloco que se declarava independente, o do Terceiro Mundo, que, entretanto, pendia para a esquerda. Ou seja, era adversário dos EUA, que, nessa disputa, patrocinavam ditaduras direitistas para, como se dizia, evitar a ditadura comunista.

Não havia a menor possibilidade de uma vitória comunista, nem pela via reformista, nem pela luta armada. A melhor chance de uma guerrilha no Araguaia ou no Vale do Ribeira era a de ser massacrada, como de fato aconteceu. Mas foi nesse quadro que parte da elite brasileira, representada por partidos e associações civis, bateu às portas dos quartéis. Os militares atenderam rapidamente, pois a doutrina que aprendiam era simplesmente Ocidente versus o Pacto de Varsóvia (a frente militar da URSS). O Congresso chancelou a derrubada de Jango, em abril de 1964, e elegeu presidente o então chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, marechal Humberto de Alencar Castello Branco. Mas só o fez porque a alternativa era o fechamento.

Muitos democratas e liberais apoiaram o golpe, achando que seria um interregno necessário para garantir as eleições presidenciais de 1965, nas quais haveria o embate entre Juscelino Kubitschek (pelo lado reformista democrático) e Carlos Lacerda (conservador, liberal, democrata). Mas não tardaram a se arrepender, e foram abandonando o governo militar à medida que este radicalizava e se transformava numa verdadeira ditadura e dava sinais de que tencionava se perpetuar no poder. Lacerda, apoiador do golpe, terminou cassado e se uniu a JK, também cassado, numa frente pela democracia.

É fato que o Congresso funcionou o tempo todo, menos nos breves momentos em que ousou discordar do regime. O Congresso “elegeu” os presidentes, mas somente depois de eles serem escolhidos entre e pelos generais de quatro estrelas. Partidos políticos foram proibidos, a imprensa, censurada, opositores — fossem democratas ou comunistas —, presos, torturados, mortos. Quando a política econômica finalmente fracassou, com recessão, dívida externa explosiva e inflação, a ditadura caiu e os militares se retiraram, liderados por colegas de bom senso num processo conduzido por políticos habilidosos.

Por essas e outras, não há o que celebrar em 31 de março. Não merece ser comemorada a instalação de uma ditadura que fechou instituições democráticas e censurou a imprensa. Isso seria permitir que ódios do passado envenenem o presente e destruam o futuro. Para o presidente da OAB/RJ, Luciano Bandeira, a determinação do presidente Bolsonaro é inconstitucional. "O princípio democrático da República Federativa do Brasil, que está na nossa Constituição, determina que os cargos do Executivo são alcançados através do voto. Comemorar uma tomada de poder pela força das armas, que contraria esse princípio democrático, é apologia a algo contrário ao que prega a Constituição", diz ele. 

Com a devida vênia dos que pensam de maneira diversa, acho que não há como discordar. E nem o que comemorar.