terça-feira, 9 de abril de 2019

BOLSONARO, LUA-DE-MEL E PALANQUE


Vinicius de Moraes se casou nove vezes, Fábio Júnior, sete, e Jair Bolsonaro, três. Mas Bolsonaro teve quatro luas de mel, pois, no âmbito da política, essa expressão designa os primeiros 100 dias de governo, quando os deslizes do governante são mais facilmente perdoados, e seus defeitos, relevados pela maioria dos que elegeram o mandatário da vez.

É fato que este governo já começou com nuvens negras no horizonte, dada a espúria relação do clã presidencial — notadamente do filho Flávio — com o dublê de ex-policial militar e ex-assessor parlamentar Fabrício Queiroz. Mas uma sequência de intercorrências funestas — como o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho; o incêndio no Ninho do Urubu; a conturbada exoneração de Gustavo Bebianno, as birras pueris entre Bolsonaro e Rodrigo Maia, só para relembrar as mais notórias — fez a mídia mudar o foco. A questão é que a vocação do presidente para se meter em enroscos é inata e não tem limites.

Bolsonaro passou do baixo-clero da Câmara à Presidência da República com o apoio de inúmeros brasileiros que teriam votado até no Tinhoso para impedir a vitória do patético boneco de ventríloquo comandado pelo presidiário mais famoso do Brasil (que completou um ano na cadeia no último domingo; que venham muitos outros). Não obstante, diferentemente dos “bolsomínions” — radicais de direita que, como petistas de sinal trocado, aplaudem tudo que seu líder diz ou faz —, os eleitores "involuntários" do deputado-capitão não estão satisfeitos com sua performance na nova função.

Como na fábula do velho, o menino e o burro, Bolsonaro foi, é e continuará sendo criticado, diga ele o que disser, faça ele o que fizer. O problema é que, enquanto sua tropa de choque se esfalfa para debelar os focos de incêndio, suas estultices põem mais lenha na fogueira. Quando mais não seja, isso contribui para a queda de popularidade deste governo: entre janeiro, 50% dos entrevistados avaliavam-no com ótimo ou bom; em março, eram apenas 38%. E o percentual dos que consideravam a gestão regular e passaram a classificá-la como ruim ou péssima cresceu 5% em relação a janeiro. No frigir dos ovos, cerca de 15 milhões de pessoas que votaram no candidato pesselista deixaram de considerar seu governo de maneira positiva. E não sem razão.

Nos primeiros 100 dias de governo, Bolsonaro enfrentou diversos episódios de desgaste político: a já mencionada investigação sobre milícias envolvendo o gabinete de zero um na Alerj, as candidaturas de laranjas de seu partido, os entrechoques entre militares e a ala do governo sob influência do escritor Olavo de Carvalho, a crise no MEC, a troca de farpas com o Congresso e a dificuldade no encaminhamento da reforma da Previdência. A economia segue em ritmo lento, e a taxa de desemprego cresceu em relação ao trimestre passado — está em 12,4%. Nove dos 22 ministros têm contas a acertar com a Justiça — um foi exonerado, e pelo menos outros três já deveriam tê-lo sido (detalhes na postagem anterior), sem mencionar a absoluta ausência de articulação política do Planalto, evidenciada ad nauseam na última quarta-feira, quando o ministro da Economia foi massacrado por uma caterva de parlamentares de esquerda (para os quais o fracasso daquele que derrotou o bobo-da-corte da Petelândia se apresenta como a única chance de retomarem o poder).

Observação: Bolsonaro ironizou o resultado das pesquisas. Segundo ele, não vale a pena perder tempo comentando os números de um órgão de pesquisas que vaticinou sua derrota no segundo turno, independentemente de quem fosse o adversário. Aliás, também segundo essa pesquisa, Dilma é quem teve numericamente a melhor avaliação a esta altura do mandato, com 47% de ótimo/bom em 2011. Mas não custa lembrar como o segundo mandato da ex-presidanta incompetenta terminou, sem mencionar que, se durar mais alguns anos, essa tragédia em forma de gente corre o risco de ser encarcerada, a exemplo de Lula, que está em cana há um ano, e de Michel Temer, que está em vias de voltar para lá. E a vez de Collor também há de chegar. Pelo visto, de todos os presidentes democraticamente eleitos pelo voto popular desde o fim da ditadura militar (aquela que hoje sabemos não ter existido), somente FHC escapa incólume (Itamar era vice promovido a titular, e já morreu; Sarney idem, embora tenha esquecido de deitar e venha pressionando um seu apadrinhado no STJ a votar favoravelmente ao recurso de Lula

Por mais que seja criticado se montar no burro, puxá-lo pela rédea ou carregá-lo nas costas, o capitão precisa descer do palanque. Uma coisa é a campanha, durante a qual conta a relação do candidato com os anseios, reais ou ilusórios, do eleitorado, e outra, bem diferente, é a tratativa institucional que norteia o funcionamento da interdependência entre os poderes da República. Bolsonaro ainda não subiu a rampa do Palácio do Planalto, e sua lua de mel terminou sem ganhos relevantes no desatamento dos nós da administração que impedem o Brasil de sair do atraso na economia, saúde, educação e segurança. Nenhuma de suas propostas andou — nem mesmo as medidas provisórias, entre as quis a da remodelação do Ministério da Economia e a liberação de auxílio de emergência às vítimas de Brumadinho, e isso num Parlamento que já aprovou até confisco da poupança.

ObservaçãoDora Kramer, sempre brilhante em sua coluna, relembra que, se o chefe do Executivo acha que pode atuar em desconexão com o Legislativo, é natural que a recíproca seja verdadeira. Donde os dois “trocos” que os deputados deram a Bolsonaro ao lhe infligir derrotas significativas com a aprovação do Orçamento impositivo e a rejeição do decreto que ampliava o escopo do sigilo a documentos oficiais. O cacoete de parlamentar meramente reativo, livre para provocar em seu nicho de atuação no baixo ­clero, parece ser o que impede Jair Bolsonaro de perceber que o início do período presidencial corresponde à entrada em cena do Congresso, à mudança da natureza do palco e, sobretudo, às demandas da plateia. Na campanha, candidatos falam à arquibancada; na Presidência, governantes precisam lidar com o pessoal das cadeiras e camarotes se não querem ver a partida ser encerrada antes do tempo regulamentar.

Ninguém esperava que o atual governo operasse um milagre que fizesse a economia bombar em três meses. Mas o mercado e o empresariado compraram o projeto liberalizante de Paulo Guedes, que prometeu recolocar o país na rota do crescimento. Seu plano econômico é encabeçado pela reforma previdenciária e complementado com uma série de privatizações, além de uma profunda reforma tributária, e cem dias talvez não bastem nem para começar a fazer isso tudo, mas são suficientes para revelar o engajamento do governo e sua capacidade de articulação para tirar os projetos do papel.

O empresariado ainda ampara o presidente, sobretudo por ter Paulo Guedes à frente da Economia e pelos bons serviços prestados por Tarcísio de Freitas na pasta da Infraestrutura (tais como os leilões de concessão de dois portos e de um novo trecho da Ferrovia Norte-Sul). Isso sem desmerecer a importância de Sérgio Moro, que, infelizmente, ainda não teve jeito de mostrar a que veio. Mas as pastas da Educação, das Relações Exteriores e dos Direitos Humanos são vistas como “caóticas” e “vergonhosas”. Para piorar o cenário, a bizarra queda de braço entre Bolsonaro e Rodrigo Maia, mesmo tendo sido superada, deixou sequelas funestas, como a redução no número de parlamentares que se declaravam favoráveis à reforma da Previdência (que caiu de 69% para 56%).

A exemplo de certo ex-presidente impichado — hoje senador por Alagoas e réu na Lava-Jato —, Bolsonaro iniciou seu mandato sem uma coligação partidária que lhe oferecesse apoio no Congresso (oxalá as semelhanças parem por aí). Seu governo não tem um partido coeso e integrado — o PSL até dispõe da segunda maior bancada da Câmara, com 54 deputados, mas isso é insuficiente numa Casa com 513 cadeiras. Demais disso, a maioria dos deputados pesselistas é estreante, sem traquejo nas dinâmicas do Legislativo, ao passo que os mais antigos se queixam de que a sigla não tem organograma nem regimento interno, e que seus deputados não conseguem entender o que estão votando sem assessoria técnica. 

Para um governo que se propõe a implementar reformas estruturais, é preciso muito mais capacidade de articulação (note que negociação não significa necessariamente corrupção). A retórica para agradar os bolsomínions (para quem o presidente está certíssimo, devendo mesmo esquecer o Congresso e falar diretamente com eles) atrapalha a relação com os demais eleitores, e a única maneira de estancar a perda de popularidade é com a retomada do crescimento. Mas Bolsonaro age com uma versão tupiniquim do seu ídolo norte-americano, que permanece há dois anos disparando mensagens pelo Twitter com o mesmo discurso hostil aos oponentes da época da campanha. Também nesse caso, as realidades são diferentes, a começar pelo fato de o homem da peruca laranja (sem qualquer intenção de fazer trocadilho com o laranjal do PSL) ter assumido o cargo com a economia em crescimento e um governo muito bem estruturado.

Faltam à Bolsonaro a contenção da retórica de palanque, empenho nas pautas fundamentais, disposição para ouvir e negociar, inclusive com opositores. Um governo popular e fraco, sem condições de implementar as medidas de que o país precisa para retomar o crescimento só interessa ao segmento radical e apodrecido da oposição — composto de devotos da seita do inferno cujo sumo pontífice, alvo de 10 processos, condenado em dois e às vésperas de um deles ser julgado pela terceira instância do Judiciário, completou, dias atrás, um ano como hóspede compulsório numa suíte máster da Superintendência da PF em Curitiba.

Que Deus nos ajude.