quarta-feira, 3 de junho de 2020

DECIFRA-ME OU TE DEVORO



Quando ouvimos falar em “esfinge”, logo nos vem à mente a estátua faraônica (literalmente), com corpo de leão e rosto humano, que espreita há mais 40 séculos as pirâmides de Quéops, Quéfren e Mikerinos, em Gizé. ("Gizé" vem do árabe al-Jizzah e significa “o vale” ou “o platô”).

Para os propósitos desta abordagem, porém, interessa dizer que na mitologia grega as esfinges têm pernas de leão, asas de pássaro e rosto de mulher, e são tidas como traiçoeiras e impiedosas.

A versão que integra o elenco da tragédia Édipo Rei, do dramaturgo Sófocles (496-406 a.C.), foi enviada para Tebas pela deusa Hera, e propunha a todos que passavam pela estrada que levava a Tebas o seguinte enigma: "Que criatura tem quatro pés de manhã, dois ao meio-dia e três à tarde?

Quem não soubesse a resposta era prontamente estrangulado — e muitos o foram, até que Édipo decifrou a charada: "É o ser humano! Engatinha quando bebê, anda sobre dois pés quando adulto e recorre a uma bengala na velhice". 

Furiosa, a esfinge se suicidou, atirando-se de um despenhadeiro.

Édipo ficou mais conhecido entre nós porque o neurologista e psiquiatra Sigmund Freud batizou de Complexo de Édipo o conjunto de desejos amorosos e hostis que meninos podem alimentar em relação à própria mãe. Isso porque, na tragédia de Sófocles, nosso herói matou o pai, Laio, para se casar com a própria mãe, Jocasta.

A telenovela Mandala, exibida pela Rede Globo em 185 capítulos (entre outubro de 1987 e maio de 1988) foi inspirada na tragédia retrocitada, e tinha como tema a luta do homem contra o próprio destino. A trama foi ambientada no Rio de Janeiro, e os primeiros 16 capítulos tinham como pano de fundo a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, e a Campanha da Legalidade, organizada para assegurar a posse de João Goulart

Na sequência, uma estudante de sociologia filiada ao partido comunista chamada Jocasta (personagem de Giulia Gam) se apaixona por um colega de faculdade chamado Laio (Taumaturgo Ferreira), que vivia a custas da mesada do pai e não fazia nada sem antes consultar o guru Argemiro (Marco Antônio Pâmio). Os dois se envolveram, a moça engravidou. Argemiro jogou os búzios e previu que o filho de Laio odiaria o pai e teria uma relação amorosa com a mãe. Laio tentou convencer Jocasta a abortar, mas não teve sucesso, e com a ajuda do guru urdiu um plano envolvendo a enfermeira da maternidade, que concordou em raptar a criança e... enfim, basta clicar aqui para ler uma breve resumo do desenlace.

No âmbito da Filosofia, o termo enigma (do vocábulo latino aenigma, que provém do grego ainíssesthai de ainos, que significa "falar com sentidos ocultos") designa um "problema impossível de resolver" — não por exceder nossos meios de conhecimento nem por razões unicamente lógicas, mas por estar mal colocado. Segundo o filósofo austríaco Ludwig Joseph Johann Wittgenstein, o enigma não passa de um jogo ou uma ilusão, existindo apenas para os que se deixam enganar por ele. 

Findo este (não tão) breve preâmbulo, a ideia era traçar um paralelo entre o Enigma da Esfinge e Jair Messias Bolsonaro, que não tem corpo de leão nem cara de mulher, mas desafia mandalas, búzios e cartas de tarô com sua sociopatia, egolatria e pitadas de narcisismo e messianismo — que, nunca é demais lembrar, não implicam déficit cognitivo; o presidente sabe muito bem o que faz e, portanto, pode e deve ser responsabilizado por seus atos.
   
Pensei também em embasar esta matéria com exemplos pontuais, e para isso revisitei centenas de postagens publicadas desde o primeiro turno das eleições de 2018, quando a parcela desinformada e descerebrada do eleitorado descartou o bebê junto com a água da bacia, ou seja, varreu da disputa, juntamente com o bizarro elenco de feira de horrores travestido de postulante à Presidência, duas ou três opções que talvez fizesse mais sentido a gente experimentar.

Depois de considerar o espaço que esse detalhamento ocuparia, quão grande ficaria esta postagem e tão cansativa seria sua leitura, resolvi recomendar a quem interessa possa que faça como eu fiz. Para facilitar a navegação através das quase 5.000 postagens publicadas, recorra ao campo "Arquivos do blog", que fica parte inferior da coluna à direita.

Observação: O despreparo do eleitorado impingiu à parcela pensante da população duas singelas alternativas para impedir que o patético bonifrate que se prestou ao ridículo papel de preposto do criminoso de Garanhuns se aboletasse no Palácio do Planalto: aliar-se aos igualmente patéticos bolsomínions ou engrossar as fileiras dos 42 milhões de brasileiros que anularam o voto, votaram em branco ou se abstiveram de votar. Não dá para dizer como estaríamos se o resultado tivesse sido outro, mas certamente não teríamos um projeto de psicopata no comando desta Nau de Insensatos.

O que foi dito nos parágrafos anteriores explica a vitória do capitão, mas não seu comportamento lunático, suas constantes agressões à imprensa, caneladas nos presidentes da Câmara e do Congresso e boladas nas costas de aliados — que resultaram na substituição, compulsória ou a pedido, de ministros do quilate de Gustavo Bebianno, Floriano Peixoto, Santos Cruz, Henrique Mandetta, Sergio Moro e Nelson Teich, e na ruptura com os deputados federais Joice Hasselmann e Alexandre Frota e a deputada estadual Janaína Paschoal, entre outros. 

Observação: Curiosamente, ministros como a pastora evangélica que viu Jesus na goiabeira — e, na célebre reunião ministerial de 22 abril, defendeu a prisão de prefeitos e vereadores — e o da Educação, que não sabe escrever e não tem educação — e que defendeu na mesma reunião a “prisão de vagabundos, a começar pelos ministros do STF” —, parecem ser “imexíveis”, como diria o sindicalista que o ex-presidente caçador de marajás de araque nomeou ministro do Trabalho e Previdência em sua desditosa gestão (abortada pelo primeiro impeachment presidencial da Nova República), e que foi obrigado a exonerar devido a  pasmem!  suspeitas de corrupção!

Ao longo dos últimos 17 meses, Bolsonaro abandonou uma a uma suas principais bandeiras de campanha  como a do combate à corrupção e punição dos corruptos, fossem eles quem fossem, e a do repúdio à velha política do toma lá, dá cá.

No primeiro caso, relembro a entrevista concedida pelo capitão à Bloomberg, durante o Fórum Econômico Mundial em Davos. Questionado sobre as suspeitas de rachadinha no gabinete do primogênito na Alerj (o célebre Caso Queiroz), o presidente respondeu, litteris: "Se por acaso Flávio errou e isso ficar provado, eu lamento como pai. Se Flávio errou, ele terá de pagar preço por essas ações que não podemos aceitar".

Palpiteiros de plantão aplaudiram a retidão do mandatário, mas eu mantive um pé atrás. No post de 24/01/19 eu disse que “seria bom, só para variar, que não viéssemos a assistir uma reprise do episódio em que Lula, questionado sobre a ascensão financeira do primogênito Lulinha, referiu-se ao pimpolho como ‘Ronaldinho dos negócios”. E foi tiro e queda.

A polarização político-ideológica que o molusco abjeto instituiu com seu nefando "nós contra eles" criou legiões de anormais que acreditam naquilo que querem acreditar. Para os petistas, vale a versão, não o fato, daí a patuleia reverberar narrativas absurdas, sem pé nem cabeça, construídas sob medida pelos marqueteiros dos partidos para fins eminentemente proselitistas. Seu fanatismo é tamanho que até hoje essa caterva acredita que Lula foi condenado sem provas e preso injustamente. O que não chega exatamente a surpreender: se esse bando de pacóvios não consegue achar a própria bunda usando as duas mãos e uma lanterna, tampouco encontrariam provas contra seu amado líder. Nem mesmo se elas saltassem dos autos e lhes mordessem o nariz.

ObservaçãoNão faltam provas contra o molusco nas ações sobre o triplex e sobre o sítio, como reconheceram, inclusive, os desembargadores do TRF-4 e os ministros do STJ que julgaram os recursos do criminoso.

Por mal dos nossos pecados, os bolsomínions agem da mesma maneira (ou até pior) que a militância vermelha. No que tange à reunião ministerial de 22 de abril, por exemplo, essas toupeiras não veem absolutamente nada que sequer sugira a mais remota intenção do "mito" de interferir na PF. Mas bastaria que tirassem a venda do fanatismo e colocassem os óculos do bom senso para que concluíssem que se alguém está mentindo nessa história, esse alguém não é o ex-ministro Sergio Moro.

Observação: Não sei com certeza o que têm na cabeça os sectários de Lula e os puxa-sacos do capitão sem luz, mas suspeito que seja uma substância de cor amarronzada, consistência pastosa e cheiro bastante desagradável. É certo que as coisas nem sempre são o que parecem. Mas é igualmente certo que, às vezes, elas são. Como dizia o próprio Freud, “às vezes um charuto é só um charuto”.

Da gravação da tal reunião, salta aos olhos que Bolsonaro confunde governar com guerrear e confirma ad nauseam sua disposição de “interferir mesmo” quando ações desagradem a ele, à família e aos amigos. E o louvor ao combate fica patente não só como retórica política, mas também no sentido literal.

O vídeo desnudou um presidente conduzindo uma reunião ministerial com sangue nos olhos, explicitamente temeroso de não concluir o mandato, exortando o povo a “se armar”, a fim de enfrentar os que ele, Bolsonaro, acusa de pretender implantar uma “ditadura” no país. No que tange a seus vassalos, disse o general da banda: “Quem for elogiado pela Folha, pelo Globo, pelo Antagonista, está fora”, deixando claro que a ele não importa a qualidade do trabalho do auxiliar, mas a disposição de servi-lo de maneira cega.

Embora não tenha citado nomes, Bolsonaro fez referências claras ao Congresso e ao Judiciário quando falou, de maneira depreciativa, “esse pessoal aqui do lado” (da Praça dos Três Poderes), e ao dizer que falaria “na linha do Weintraub” logo depois de o ministro da deselegância ter dito que. se dependesse dele, “mandava pôr esses vagabundos todos na cadeia, a começar STF”.

Nem é preciso que o vídeo contenha a tal “bala de prata”, que justifique o processo de impedimento, para que se veja um presidente violento, interessado em impor suas convicções pessoais como políticas de governo, intolerante com o contraditório e bastante indulgente com propostas heterodoxas na administração pública.

Bolsonaro ficou calado quando o ministro Ricardo Salles propôs a derrubada de regulamentações “de baciada” enquanto “a imprensa está ocupada com a Covid-19”, e tampouco se manifestou quando a ministra que viu Jesus na goiabeira disse que seu gabinete pegaria pesado quando terminasse a pandemia, ameaçando mesmo “prender governadores e prefeitos”, devido à aplicação de medidas de isolamento social.

O vídeo pode não ser suficiente para embasar um impeachment formal (embora existam provas e provas, como veremos numa próxima postagem, quando tratarmos do “standard de prova”), mas dá e sobra para provocar seu impedimento moral no ofício de bem governar. O que me leva a encerrar com a seguinte anedota:

Dois amigos iam pela calçada quando se depararam com uma “obra canina”.
— Será que é merda? — perguntou um deles.
— Não sei — respondeu o outro. — Mas que parece, parece.
O primeiro se aproximou do troçulho, examinou-o atentamente e disse:
— Tem jeito de merda.
Tocou levemente o estrabo, levou o dedo ao nariz, fungou e diagnosticou:
— Tem cheiro de merda.
Ainda em dúvida, lambeu o dedo e só então sentenciou:
— Também tem gosto de merda! Então deve ser merda!
E o outro disse:
— Se é assim, ainda bem que não pisamos.