terça-feira, 11 de agosto de 2020

DA PRAGA DA CASERNA AO CAPITÃO CAVERNA — NONA PARTE

A título de contextualização, sugiro reler os dois capítulos anteriores desta sequência, começando por este e seguindo por este. Dito isso, vamos adiante.

Nos dias que sucederam ao golpe de 1964, uma violenta repressão atingiu os setores politicamente de esquerda. Centenas de Inquéritos Policiais-Militares para apurar atividades consideradas subversivas foram instaurados, e milhares de pessoas foram presas e torturadas. Parlamentares foram cassados, cidadãos tiveram seus direitos políticos suspensos e funcionários públicos civis e militares foram demitidos ou aposentados. 

Por outro lado, grande parte do empresariado, da imprensa, dos proprietários rurais e vários governadores de estados (como Carlos Lacerda, da Guanabara, Magalhães Pinto, de Minas Gerais, e Ademar de Barros, de São Paulo) festejaram a intervenção militar, que diversos setores de classe média pediam e estimulavam, talvez achando que essa seria a única maneira de pôr fim à ameaça de esquerdização do governo e de controlar a crise econômica. Mas o que era para ser transitório e durar poucos meses tornou-se provisoriamente (ou quase isso). Os fardados não eram imundes à picada da mosca azul, e cinco generais se revezaram no poder ao longo dos 21 anos seguintes.

Sem imaginar o que vinha pela frente, Jânio concorreu ao governo de São Paulo nas eleições de 1962, mas foi derrotado por Adhemar de Barros. Em 1964, com a tomada do poder pelos generais, teve os direitos políticos cassados e, embora os tenha recuperado graças à lei nº 6.683 (que ficou conhecida como Lei da Anistia), somente voltou a disputar uma eleição em 1982 (para governador de São Paulo), na qual foi derrotado por André Franco Montoro, seu antigo correligionário no PDC

Três anos depois, com o apoio de empresários, entidades conservadoras (como a TFP e Opus Dei) e políticos influentes, como Paulo Salim Maluf e Antonio Delfim NettoJânio se elegeu novamente prefeito de São Paulo, derrotando o tucano Fernando Henrique Cardoso e o petista Eduardo Matarazzo Suplicy.

ObservaçãoFHC, franco-favorito nas pesquisas, deixou-se fotografar sentado na cadeira de prefeito — a foto foi publicada pela Revista Veja —, que Jânio desinfetou no dia da posse, declarando: "Estou desinfetando a poltrona porque nádegas indevidas a usaram".

Em sua última empreitada político-administrativa, o velho manguaceiro repetiu os lances populistas de sempre: pendurou um par de chuteiras no gabinete (para ilustrar o suposto desinteresse em prosseguir na pública), proibiu o uso de sunga e biquínis fio-dental no Parque do Ibirapuera (onde ficava a sede da prefeitura), mandou publicar no Diário Oficial do Município os célebres bilhetinhos que enviava a seus assessores, obrigou a direção da Escola de Balé do Teatro Municipal a expulsar alunos tidos como homossexuais, aplicou multas de trânsito pessoalmente, posou para a imprensa com a camisa do Corinthians e fechou os oito cinemas que exibiriam A Última Tentação de Cristo (filme de Martin Scorsese), embora o longa só fosse entrar em cartaz após o término de seu mandato.

Nas eleições municipais de 1988, a despeito de os candidatos João Mellão Neto (PL) e Marco Antônio Mastrobuono (PTB) terem integrado seu secretariado, Jânio apoiou o peemedebista João Oswaldo Leiva (lançado pelo então governador Orestes Quércia). Por uma ironia do destino, quem venceu o pleito foi a calamidade petista Luíza Erundina de Souza (provando para além de qualquer dúvida razoável que São Paulo é a maior capital nordestina do país), amparada quase que exclusivamente por uma plataforma de esquerda antijanista. Para não pagar o mico de transferir o cargo para a musa de Uiraúna, Jânio encarregou seu Secretário de Assuntos Jurídicos de representá-lo na cerimônia e escafedeu-se para sua amada Londres, onde passou as festas de final de ano.

A saúde fragilizada levou Jânio a desistir de concorrer à presidência em 1989 — ironicamente, na primeira eleição direta desde aquela que ele próprio venceu em 1960 — e apoiou Fernando Collor, que derrotou o imprestável retirante nordestino que disputaria outros três pleitos presidenciais até finalmente ser eleito (em 2002). Depois da vitória de Collor, o velho tutumumbuca reuniu a imprensa para anunciar sua aposentadoria definitiva da política — com a morte da mulher, em 1990, seu já precário estado de saúde se agravou ainda mais. 

A partir de então, Jânio passou o resto de seus dias em casas de repouso e quartos de hospitais. Em fevereiro de 1992, ele bateu a cacholeta no Hospital Israelita Albert Einstein, onde vegetava após ter sofrido três derrames cerebrais. Seis meses antes, nesse mesmo quarto, ele havia confidenciado a Jânio Quadros Neto sua versão da renúncia (sobre a qual falaremos oportunamente).

Convém frisar que a célebre frase “fi-lo porque qui-lo” (ou “fi-lo porque o quis”, que seria a forma mais correta) não foi uma resposta a um jornalista que teria questionado o ex-presidente sobre a renúncia. Na verdade, Jânio a proferiu quando ainda ocupava o Palácio do Planalto, durante uma reunião com governadores e outras autoridades (como veremos numa próxima postagem). Ressalte-se que ele nunca disse que renunciou movido por “forças ocultas” ou “misteriosas”; essa expressão lhe foi atribuída pelo Repórter Esso.

Entre um sem-número de tiradas tão sarcásticas quanto ácidas do velho político, cito as seguintes:

O senhor sabe quem foi Benjamin Franklin? Pois bem! Ele ensinou que "intimidade pode gerar duas coisas: filhos e/ou aborrecimentos". Como eu não pretendo ter com o senhor nem uma coisa nem outra, exijo respeito (ao passar uma descompostura num jovem que se dirigiu a ele de forma desrespeitosa, tipo “ó Jânio!”, como se fossem íntimos).

— Os servidores públicos são mulher de César (a quem não basta ser honesto, é preciso parecer honesto).

— Aprendi no berço com minha mãe, que não há homem meio honesto e meio desonesto. Ou são inteiramente honestos ou não o são (frase autoexplicativa). 

Não vivo do governo: morro nele, na sobrecarga terrível das responsabilidades e das angústias (idem).

O PMDB é uma arca de Noé, sem Noé e sem a arca (idem).

Conta o professor Deonísio da Silva que Jânio, então candidato a governador de São Paulo, enfrentou em Ribeirão Preto uma autêntica armadilha que lhe fora preparada por seu notório adversário, Adhemar de Barros. Também candidato, Adhemar paga um repórter para que vá à entrevista coletiva de Jânio e lhe faça uma única pergunta.

— O senhor sabe que a família interiorana é moralista e conservadora. Gostaria de lhe perguntar: por que o senhor bebe?

A resposta veio bem ao estilo de Jânio:

— Bebo porque é líquido. Se fosse sólido, comê-lo-ia.

O flagrante revela um cuidado específico que Jânio tinha na colocação dos pronomes, um drama para jejunos em português. ‘Comê-lo-ia’ equivale a ‘o comeria’. A síntese, desjeitosa para a fala, que prefere ‘comeria ele’, soa pernóstica. Não em Jânio apenas, aliás.

Em outra ocasião, o humorista Leon Eliachar lhe pergunta:

— Se eleito, colocará os pronomes nos seus devidos lugares?

Sua resposta:

— Os pronomes não aguardam a minha eleição para que se coloquem nos seus lugares. Estão sempre neles. A boêmia dos verbos é que mutila a boa ordem das frases. Há que lhes perdoar. Não se desgrudam da ideia de movimento. (Atualmente, é mais usual boemia, sem acento).

E provocando o candidato, Leon alude a famoso comercial:

— Só ESSO dá ao seu carro o máximo?

Jânio:

— Não entendi a pergunta. Pressinto-a sutil como o próprio interpelante. Resta-me, pois, neste instante de perplexidade, o recurso à passagem de volta: só isso dá ao seu cargo o máximo?

Eliachar faz a última pergunta:

— O oval da ESSO é oval ou aval?

Jânio tira de letra:

— Sugiro-lhe, amistosamente, uma consulta a qualquer psicanalista. O Brasil é tão mencionado no seu questionário, quanto a ESSO.

Nélson Valente, autor do livro Luz… Câmera… Jânio Quadros em Ação (o avesso da comunicação), de onde foram extraídos os trechos aqui citados, conclui piedosamente: “Ele podia dormir sem essa”.

Amanhã a gente continua...