Nova documentação da Sputnik V foi enviada pelos estados da Bahia e do Maranhão à Anvisa na última sexta-feira. Três semanas antes, a agência havia negado o pedido de importação da vacina feito por 14 governos estaduais, além de dois municípios do Rio de Janeiro, sob a alegação de não ter recebido todos os dados de análise de segurança do imunizante e de ter observado a possibilidade de replicação do adenovírus utilizado para levar o material genético do coronavírus para o corpo — que é justamente o efeito oposto ao que se pretende com a imunização. No último dia 20, a União Química Farmacêutica — representante da Sputnik V no Brasil — desistiu de desenvolver os estudos clínicos da Sputnik no país (note que a desistência não diz respeito ao pedido de uso emergencial, que se trata de um processo diferente de autorização).
Tem gente se comporta como se tudo estivesse na mais
perfeita ordem, na mais santa paz. Como se não estivéssemos prestes a atingir a
marca macabra — e vexatória para um país que é referência mundial em vacinação
— de meio milhão de mortos pela Covid. Nos EUA, o uso da máscara em
locais públicos já deixou de ser compulsório; aqui, receia-se que o inverno, o
ritmo lento de vacinação e o afrouxamento da quarentena provoquem uma “terceira
onda”, e que ela seja ainda mais letal que suas antecessoras.
Por falar em surrealismo, centenas de motociclistas se
aglomeraram e fecharam duas pistas em frente ao Parque Olímpico da Barra,
na manhã do último domingo, de onde seguiram num ato
de apoio ao capitão-cloroquina. O Rio, como se sabe, é uma dos municípios mais castigados pelo vírus que já exterminou 448 mil pessoas no Brasil (segundo
dados obtidos no último sábado consórcio de veículos de imprensa junto às
secretarias estaduais de saúde).
Além de promover
aglomerações e não usar máscara de proteção facial, o capitão-negação foi flagrado novamente cometendo duas novas infrações de trânsito. Na
manifestação realizada semanas atrás em Brasília, ele e seu garupa não usaram
capacete; na deste domingo, o modelo usado não é chancelado pelo Inmetro por não proteger a área lateral das orelhas e da cabeça e não ter viseira. No entanto, as autoridades ignoraram solenmente as infrações cometidas pela caterva presidencial.
O vice-presidente da CPI do Genocídio, senador Randolfe
Rodrigues, disse que vai pedir esclarecimentos à Prefeitura carioca e ao
governo do Estado sobre a manifestação, foi convocada pelo presidente, nas redes sociais, a
despeito de o decreto municipal proibir expressamente a
realizações de eventos em áreas públicas durante a pandemia. Para Randolfe,
a aglomeração, que contou com a presença do ministro da Infraestrutura, Tarcísio
de Freitas, e do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que se
postou ao lado de Bolsonaro com o rosto descoberto, contrariando
mais uma afirmação que fez à CPI do Genocídio nas sessões de quarta e
quinta-feira da semana passada, foi um “acinte às quase 450 mil
famílias enlutadas”.
A presença de Pazuello criou mais um constrangimento para o Comando do Exército e pode dar azo a mais uma crise militar no governo. O ex-minitro é general de divisão da ativa, e militares da ativa são proibidos pelo Estatuto dos Militares e pelo Regulamento Disciplinar do Exército de participar de atos político-partidários. O PSDB publicou nota em seu perfil no Twitter criticando a conduta de Pazuello: "Um General de Divisão do Exército Brasileiro participando de um evento de natureza política não condiz e não respeita a instituição da qual faz parte", diz parte do texto.
Ao converter o general em adereço de seu comício, diz Josias de Souza, o presidente deixou o comandante do Exército diante de um dilema: ou ele pune o general, arriscando-se a ser desautorizado por Bolsonaro, ou desmoraliza a instituição que jurou defender (o leque de alternativas vai de mera advertência à prisão disciplinar). Alvo de inquérito no MP e de auditoria no TCU, prestes a ser submetido a uma terceira inquisição na CPI, Pazuello enfrenta uma situação inóspita. Parte da cúpula militar avalia que o maior excesso que se poderia cometer diante de seus pendores políticos seria o excesso de moderação.
Afora os riscos disciplinares, há o receio de permitir que o passivo sanitário acumulado por Bolsonaro seja jogado na porta dos quarteis. Antecessor do general Paulo Sérgio Nogueira no comando do Exército, o também general Edson Leal Pujol declarou no passado, com outras palavras, que os generais que ocupam postos civis no governo comandam escrivaninhas, não tropas. Deveria ser uma obviedade, mas o presidente tornou a reiteração de obviedades uma necessidade. Pujol foi escanteado por Bolsonaro, mas o raciocínio que expressou em público, por dogmático, continua de pé.
Ironicamente, o sucessor de Pujol, discute a hipótese de punir Pazuello com o general Braga Netto, um ministro da Defesa que ornamentou uma aglomeração política com Bolsonaro uma semana antes de Pazuello. É fato que Braga Netto já passou para a reserva. Mas também é fato que, como titular da pasta da Defesa, deveria oferecer aos subordinados o exemplo de conduta. No caso de Pazuello, há um incômodo adicional: o personagem resistiu a todos os apelos para que pendurasse a farda. Ele será instado novamente a migrar para a reserva. A providência viria bem, mas chegaria tarde. O estrago está feito, e será maior se o general não for punido.
Observação: Segundo o blog de Fausto Macêdo, Bolsonaro telefonou diretamente para o ministro Braga Netto, da Defesa, proibindo a divulgação de qualquer nota ou manifestação pública a respeito do caso, o que causou constrangimento entre os membros do Alto Comando do Exército, que decidiu tomar medidas contra Pauzello, mas apenas no âmbito interno, sem nenhuma explicação à opinião pública. Mais cedo, o comandante do Exército, general Paulo Sérgio, decidira abrir um processo disciplinar contra o insurreto que, além participar de aglomeração e não usar máscara, deu de ombros para a legislação militar. A previsão é de que a investigação sobre a conduta do general dure no mínimo 30 dias.
A CPI retoma os trabalhos nesta manhã, dando sequência aos depoimentos que visam esclarecer quem foram os responsáveis pelos atos e omissões que produziram quase meio milhão de cadáveres em pouco mais de um ano de pandemia — coisa que até as pedras sabem, mas enfim... Entrementes, em outro picadeiro desse circo, desenvolve-se a narrativa do presidente cuja sobrevivência política depende (agora mais do que nunca) de manter acirrado o ânimo dos bolsomínions — bando de imbecis que posam de militantes comandado por um imbecil que posa de presidente. Transformada em votos válidos, essa récua de muares é suficiente para assegurar a seu “mito” uma vaga no segundo turno, donde a importância de mantê-los coesos — coisa que o capitão-cloroquina faz de várias maneiras, como se viu no último domingo.
Vale lembrar que a conversa mole para boi dormir do “não
há uma denúncia sequer de corrupção envolvendo este governo” — potoca que,
de tão mambembe, não soaria crível nem mesmo para a Velhinha
de Taubaté — um trabalho exaustivo e minucioso do jornal O Estado de
S. Paulo mostrou, semanas atrás, a existência de fortes indícios de que o
governo montou
um esquema paralelo para o manejo das emendas parlamentares ao Orçamento da
União a fim de assegurar apoio no Congresso. Pouco antes disso surgiram
na CPI evidências sobre o uso do mesmo tipo de recurso obscuro no Ministério
da Saúde, onde a gestão da pandemia conta com um “grupo de aconselhamento” que
atua à margem das orientações da estrutura oficial.
Dora Kramer relembra em sua coluna que muito antes, mais exatamente em maio do ano passado, o país
tomou conhecimento de que, numa reunião ministerial ocorrida no fatídico 22 de abril
de 2020, Bolsonaro revelara contar com um “sistema particular de
informações” por não se sentir atendido pelas instâncias formais da área,
tais como a PF e a Abin. Voltando ainda mais no tempo, desde o
início do mandato do morubixaba de turno que se sabe da atuação, digamos, informal,
de filhos e correligionários do presidente na comunicação governamental,
motivo, inclusive, de atritos com aqueles oficialmente nomeados para funções
nesse setor. Ali viceja um tal de gabinete de ódio, do qual a composição
e a atuação permanecem envoltas em sombras.
Ainda que não se estabeleça com isso a existência de um governo
paralelo como algo extensivo a todas as áreas, é o suficiente para
constatar a predileção do presidente por trabalhar, desorganizada e
indisciplinadamente, com instâncias montadas à margem da máquina do Estado. Se
confirmados os indícios de uma reserva de bilhões de reais do Orçamento para o
atendimento privilegiado (e sem transparência) de deputados e senadores,
teremos a ocorrência de (mais um) crime de responsabilidade. Isso, no máximo.
No mínimo, ficará demonstrada a adesão do governo aos costumes da velhíssima
política.
Vestidas com roupa nova, as mesmas práticas que há quase
trinta anos ensejaram uma CPI cujo resultado foi a cassação de seis
deputados e a renúncia de outros quatro entre os 37 investigados conhecidos
como “anões
do Orçamento”. Na gestão da crise sanitária, as posições do presidente
contrárias às orientações da ciência pareciam ser fruto exclusivo da cabeça
dele. A CPI do Genocídio vem nos mostrando que Bolsonaro bebia
também em outras fontes, buscando respaldo em gente que nada tinha a ver com a
equipe presidencial. Pessoas que desconheciam procedimentos normativos, como
ocorreu no caso do preparo daquela minuta de decreto para incluir
na bula da hidroxicloroquina o tratamento para a Covid, ao arrepio das
exigências legais.
Em palcos ainda periféricos, Lula, o picareta dos
picaretas, tenta articular uma união improvável, mas não impossível. No centro
oposicionista, alguns artistas tentam organizar seu show, mas ainda não sabem
quem tocará o quê. A boa notícia é que metade do eleitorado repudia a outra
metade (falo da que se divide entre Lulu e Bobô). A má notícia é que,
pulverizados, os “nem-nem” não chegarão a lugar nenhum.
As camadas ideologizadas se orientarão por preferências
programáticas até que o segundo turno as obrigue a apoiar o ruim para evitar a
vitória do pior. Até lá, dois temas que hoje se destacam poderão ser
determinantes: o avanço da vacinação e a retomada da economia. A questão é que as
consequências (como ensinou o Conselheiro Acácio, elas
sempre vêm depois) inevitavelmente sobreviverão à causa. Dito de
outro modo, as sequelas da pandemia levarão mais tempo para ser debeladas do
que a pandemia propriamente dita.
O espetáculo de Bobô e seus capangas tende a explorar o antipetismo, até porque essa estratégia lhes rendeu bons frutos em 2018. O problema é que o cenário mudou um bocado depois que o candidato que prometia combater implacavelmente a corrupção, apoiar a Lava-Jato, privatizar estatais-cabides-de-emprego e exorcizar a “velha política” enrolou essas e outras bandeiras e meteu-as, com os mastros e tudo, em local incerto e não sabido.
Os bolsomínions, cegos pelo fanatismo desbragado, ainda não perceberam
(e dificilmente perceberão) que seu
“mito” não passa de um mitômano. Já a patuleia ignara, manipulada pelo que
restou do carisma do palanque ambulante, explorará o antibolsonarismo (como se
vê, material é o que não falta). Vence quem conseguir aumentar (ainda mais) a
rejeição ao oponente a apresentar uma proposta mais convincente de vacinação e
retomada econômica.
Mais uma vez, a polarização está consolidada e a sorte, lançada (alea jacta est).