quarta-feira, 1 de setembro de 2021

A VALSA DA DESPEDIDA


Se há uma coisa que dignifica o Brasil é sua capacidade de sobreviver a maus governantes e à mediocridade do eleitorado. Dizia-se antigamente (quando o país ainda crescia) que seguíamos adiante não graças aos mandatários que tínhamos, mas apesar deles. Mais cedo ou mais tarde (torçamos para que seja mais cedo), tanto a pandemia quanto Bolsonaro vão passar (não necessariamente nessa ordem). É possível até que esse presidente já "tivesse passado" se não insistíssemos em lhe dar palanque, levando a sério as estultices que ele diz ou faz dia sim, noutro também.

Por outro lado, como ignorar um presidente que convoca um desfile de tanques defronte ao Congresso Nacional para pressionar os deputados a aprovarem a PEC do voto impresso? Se você prefere acreditar que tudo não passou de "mera coincidência", sinta-se à vontade, cara Velhinha de Taubaté. Tudo bem que a blindadociata acabou virando motivo de chacota e o retrocesso defendido pelo mandatário, sepultado não uma, mas duas vezes. Mas o assunto deu pano pra manga, e era exatamente isso que Bolsonaro queria. Por essas e outras, melhor seria impedi-lo de continuar dizendo e fazendo besteiras — por mais deselegante que seja calar um idiota, deixá-lo prosseguir é de uma crueldade a toda prova. Com o Brasil.

Observação: Vale lembrar que "idiota" significava originalmente “homem privado”, isto é, metido com seus próprios afazeres. Etimologicamente, a palavra não carrega juízo de valor, mas ao sentido de "leigo em questões do Estado" somou-se a conotação de “pessoa simples, sem instrução, iletrada”, e, mais adiante, de “pateta, parvo, tolo”. No século 19, o vocabulário psiquiátrico se encarregou de agravar o peso da palavra transformando-a em sinônimo de “retardo mental grave”. É interessante notar como aquela acepção relativamente branda de idiota — hoje inteiramente obsoleta — persistiu nas línguas que herdaram a palavra, ao lado do sentido moderno, durante a Idade Média e mesmo além dela. Dois exemplos deixam isso claro. O Webster’s registra que, em meados do século 15, o teólogo inglês John Capgrave podia se referir aos apóstolos de Cristo como “doze idiotas” sem temer a Inquisição. De modo semelhante, o filólogo brasileiro João Ribeiro conta no livro “Curiosidades verbais” que “[no século 16] havia nas aldeias portuguesas juízes idiotas, simples juízes de paz e de quem não se exigia mais que os bons costumes, a experiência, a probidade”.

O ideal seria não termos precisado apoiar Bolsonaro para evita um mal maior (que agora eu já nem sei se seria mesmo maior). Mas não vivemos num mundo ideal, e a vida nem sempre é justa. Fato é que, para escantear o patético bonifrate do presidiário de Curitiba, libertamos o ifrit do "bolsonarismo boçal", e agora não sabemos como prendê-lo de volta na garrafa. 

A técnica do capitão continua a mesma que ele vem usando desde o início de seu governo: sempre que surge um problema que transcende sua capacidade de resolver (o que, convenhamos, tem se repetido diuturnamente), Bolsonaro aciona sua usina de crises. Guardadas as devidas proporções, trata-se da mesma estratégia usada por ilusionistas de palco, que se fazem cercar de belas assistentes em trajes sumários para desviar a atenção da plateia enquanto executam seus truques de prestidigitação.    

Governar um país como o Brasil não é fácil. Sobretudo em meio à maior pandemia sanitária de toda a história recente. Mas também havia problemas quando Lula e Dilma se sentaram na poltrona mais cobiçada do Palácio do Planalto. 

Longe de mim negar que os 13 anos, 4 meses e 12 dias de gestão lulopetista produziram danos que o país levará décadas para superar, mas isso é outra conversa. Mas a questão que se coloca é a seguinte: se um retirante nordestino pobre e analfabeto (como o próprio Lula se definiu mais de uma vez), que se orgulha de nunca ter lido um livro na vida, conseguiu ser eleito Presidente em 2002 (depois de três tentativas malsucedidas, em 1989, 1994 e 1998), reeleger-se em 2006 (a despeito do escândalo do mensalão, que colocou na cadeia diversos cardiais da seita petista) e eleger um "poste" para sucedê-lo), presidir o Brasil está longe de ser uma tarefa que o escritor taubateano Monteiro Lobato — se ainda caminhasse entre os vivos e resolvesse atualizar sua obra — incluiria numa nova edição de Os Doze Trabalhos de Hércules.

Observação: A título de curiosidade, o esquema do mensalão só veio a público graças às revelações bombásticas do então deputado Roberto Jefferson (que foi preso preventivamente há pouco mais de duas semanas e denunciado pela PGR por incitação ao crime no último dia 30).

Durante a ditadura militar tal poste em curto-circuito permanente atendeu por Wanda, Lúcia e Maria. Lula levou-a à vitrine eleitoral travestida de "gerentona", mas ela não passava de uma incompetente de quatro costados. Basta lembrar que levou à falência, em apenas 17 meses, duas lojinhas de R$ 1,99 que havia montado em Porto Alegre

Só no Brasil um prodígio dessa catadura consegue, sem saber atirar, virar modelo de guerrilheira; sem ter sido vereadora, virar secretária municipal; sem passar pela Assembleia Legislativa, virar secretária de Estado; sem estagiar no Congresso, virar ministra; sem ter inaugurado nada de relevante, fazer posse de gerente de país; sem saber juntar sujeito e predicado, virar estrela de palanque; e sem ter tido um único voto na vida, virar presidanta da República (vale ressaltar que foi preciso expeli-la do cargo antes que ela acabasse de demolir a economia, mas isso também é outra conversa).

Voltando a Bolsonaro: O TSE cortou a fonte de recursos do gabinete do ódio e o ministro Alexandre de Moraes mandou prender Roberto Jefferson (que se tornou bolsonarista desde criancinha e virou carne e unha com o mandatário de turno). Chegou-se a falar até na possibilidade de prisão de Zero Dois — o pitbull da família, na definição de Zero Rachadinha Um. O próprio presidente é investigado em sete inquéritos, e a CPI do Genocídio deve arrolá-lo em mais meia dúzia de crimes. 

Há inflação alta, perspectiva de queda no crescimento e falta dinheiro para o necessário saco de bondades eleitoreiras. Paulo Guedes, mais perdido que cego em tiroteio, ora recorre (sem grande esperança) a expedientes estapafúrdios — como aumento de impostos, PEC do calote e até a venda de um tesouro cultural. Uma das perguntas que se colocam (pois há diversas) é: como alguém que é responsável um descalabro dessa magnitude ainda aspira à reeleição? Responda quem souber.

Em sua coluna na revista Veja, o jornalista Ricardo Rangel anotou que é hora de deixar Jair Bolsonaro ir embora. A meu ver, já passou da hora. A popularidade do governo despencou. A rejeição ao presidente cresceu. A vantagem de Lula, o ex-corrupto, tem aumentado dia após dia. Entidades civis, empresários, economistas já elaboraram manifestos em repúdio ao governo. Rodrigo Pacheco (que pode vir a ser pré-candidato à Presidência) passou de apoiador do despirocado a defensor da democracia. Senadores denunciaram o Passador-de-Pano-Geral da República (de quem um terço dos subprocuradores-gerais cobraram uma ação efetiva) pelo crime de omissão. Mais da metade dos ministros do STF demonstra irritação com a omissão do vassalo do capitão, mas, mesmo assim, o morubixaba da aldeia conseguiu reconduzi-lo ao comando do MPF com o aval de 55 senadores, 10 votos contrários e uma abstenção.

Para as Forças Armadas, Bolsonaro é fonte permanente de constrangimento e irritação, seja por destratar Mourão, seja por proibir a punição de Pazuello, humilhar o comandante do Exército, usar tanques para intimidar o Congresso e compactuar com um esquema de corrupção na Saúde que inclui uma dúzia de coronéis.

Assim como o escorpião da fábula, nosso indômito capitão é incapaz de agir contra a própria natureza. Sua reação à perda de apoio é mais agressividade — o que afasta ainda mais os apoiadores, alimenta as ações do Judiciário e torna mais difícil para seus aliados (ou cúmplices) defendê-lo. Ele parece mergulhado em areia movediça: quanto mais se afunda, mais se debate, e quanto mais se debate, mais se afunda. Mas também o país está na areia movediça, pois Bolsonaro nos impede de respirar. Collor e Dilma caíram por muito menos, mas o presidente da vez conta com a omissão deliberada de Augusto Aras (sempre ele!), o apoio escancarado de Arthur Lira (e do Centrão) e a aparente sustentação dos generais (não todos, é verdade). 

Aqueles que sustentam o presidente porque receberam e recebem dele inúmeras vantagens, precisam entender que o país não aguenta mais catorze meses sob um presidente que todo dia esgarça o tecido institucional. É hora de ter espírito público, sair da frente e deixar a institucionalidade seguir seu curso.

Resta saber até onde a instabilidade poderá nos levar. Dado seu viés nitidamente parlamentarista, a Constituição de 1988 buscou impedir que apenas uma força prevalecesse — de forma isolada — sobre as demais. Para tanto, limitou o poder do chefe do Executivo e impôs uma realidade multipolar de atores e de tendências. Daí por que Lula e Bolsonaro só conseguiram alguma governabilidade depois que fizeram alianças com forças políticas de outros campos ideológicos.

O molusco empreendeu uma caminhada ao centro ainda na campanha eleitoral de 2002, e consolidou-a com as ações permeadas pelo escândalo do mensalão, em 2005. Bolsonaro, que anunciou o fim do toma-lá-dá-cá, rendeu-se às coalizões em 2020 para assegurar alguma proteção política no final de sua gestão e conquistar a tão ambicionada (e cada vez menos provável) reeleição. 

Pelo andar da carruagem, Bolsonaro chegará a outubro de 2022 (caso o imprevisto não tenha voto decisivo na assembleia dos acontecimentos) como um zero à esquerda. Para quem gosta (e acredita) em pesquisas, as mais recentes dão conta de que Lula passaria para o segundo turno com 40% dos votos, deixando o capitão no chinelo (24%). Numa hipotético embate final entre ambos, o petralha venceria por 51% a 32%. Por outro lado, nunca é demais lembrar o que disse Magalhães Pinto: "Política é como as nuvens no céu; a gente olha e elas estão de um jeito, olha de novo e elas já mudaram."

Considerando o conjunto da obra, a derrota do mandatário de turno será motivo de celebração. O detalhe — e o diabo mora nos detalhes — é que, em se mantendo as atuais condições de temperatura e pressão, o pior presidente que este país já teve desde a redemocratização será derrotado pelo ex-presidente corrupto, condenado a mais de 25 anos de cadeia, que teve a ficha-suja lavada a toque de caixa e os direitos políticos restituídos num passe de mágica. E mole ou quer mais?

Noves fora os bolsonaristas de raiz, ninguém mais vê graça nas ameaças e impropérios que o mandatário de fancaria regurgita cada vez que acha uma caixa de sabão para lhe servir de palanque. No último sábado, durante o 1° Encontro Fraternal de Líderes Evangélicos de Goiás, Bolsonaro brindou os "reverendos" com a seguinte pérola: "Eu tenho três alternativas para o meu futuro: estar preso, estar morto ou a vitória. Pode ter certeza de que a primeira alternativa não existe. Estou fazendo a coisa certa e não devo nada a ninguém. Sempre onde o povo esteve, eu estive" (esqueceu-se o petulante delirante de mencionar uma quarta alternativa, que é justamente a mais provável: sua derrota).

Ao final da peroração, o "mito" levou a audiência ao Nirvana repetindo um bordão que já está ficando cansativo de ouvir, mas vá lá: "Deus me colocou aqui, e somente Deus me tira daqui". Na humilde opinião deste obscuro articulista, o Senhor das Esferas não teve nada com isso. Talvez o Diabo (falo daquele com chifres e rabo, não o de nove dedos), mas isso também já é outra conversa.

Quanto maiores as probabilidades de Bolsonaro ser defenestrado ou não conseguir se reeleger, maior e mais barulhento ficará o repertório de blasfêmias contra o estado democrático de direito, pois Bolsonaro precisa manter desperta sua tropa miliciana e estimular o assalto à democracia. Quando mais não seja porque esse é o único recurso que lhe resta (governar, na acepção da palavra, está fora de cogitação). 

Mas, cá entre nós, alguém acha que o Messias aceitará placidamente a derrota? Que "acreditará" no resultado das urnas e na lisura do processo eleitoral? Não é bem essa a impressão que se tem ao vê-lo e ouvi-lo desancar a democracia, afrontar a Constituição, tripudiar das instituições e dizer que está cagando para a CPI. O presidente exsuda autogolpe por todos os poros, e a coisa pode piorar no feriado da Independência, durante as manifestações a favor e contrárias ao desastre que ele qualifica de "seu governo".

A pergunta que não quer calar é: Por que ninguém ainda puxou o freio desse trem fantasma? Estão esperando o quê? Que a composição descarrile? Que seja preciso atirar na cabeça do maquinista despirocado para evitar que sejamos todos atropelados por sua récua de apoiadores destrambelhados? 

Responda quem souber.