Albert Einstein dizia que o universo e a estupidez humana são infinitos (mas, no tocante ao universo, ele não estava 100% convencido) e Karl Marx, que a história sempre se repete como tragédia ou farsa. Diante de tanta estupidez, fica mais difícil a cada dia distinguir tragédia de farsa num país em que o passado se harmoniza em toda a sua mediocridade.
Se há um elemento que não se pode subestimar, atualmente, é o
limite da estupidez humana. Vivesse no Brasil de hoje e não na França do
século XVII, Descartes
teria dito “penso, logo desisto” em vez de “penso, logo existo”. Como
não há nada mais frustrante do que tentar ver a realidade sob o prisma da
lógica, o pensamento
cartesiano foi descartado.
Nas manifestações do último dia sete (e em outros protestos antidemocráticos que aconteceram antes delas), bolsonaristas boçais pugnavam pela volta dos "anos de chumbo" — um passado que a maioria deles jamais conheceu e, portanto, não sabe (ou sabe apenas pelos livros de história) o que foi a ditadura militar implementada pelo golpe de Estado de 1964. Em atenção a essa récua, relembro que a renúncia de Jânio Quadros (em 25 de agosto de 1961) deu azo à malsucedida experiência parlamentarista que resultou na deposição do vice de Jânio, João Goulart e guindou ao Planalto o marechal Humberto de Alencar Castello Branco.
Ao longo dos 21 anos seguintes, outros quatro estrelados presidiram esta banânia — Artur da Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Beckmann Geisel e João Baptista de Oliveira Figueiredo, nessa ordem. Em 1974, porém, Geisel deu início a um lento processo de reabertura que propiciou a eleição (indireta) de Tancredo Neves (em 1995). Mas o fim da ditadura não foi uma “consequência natural do espírito democrático” do "alemão" e de seu sucessor, nem tampouco transcorreu sem turbulências e acidentes de percurso.
Em janeiro de 1985, o então deputado federal Ulysses
Guimarães — que chegou a ser cogitado para disputar a Presidência pelo PMDB, mas
acabou sendo preterido pela chapa “mista” formada com o PFL de Sarney
— entregou a Tancredo um
programa denominado Nova República, que previa eleições diretas em
todos os níveis, educação gratuita, congelamento de preços da cesta básica e
dos transportes, entre outras benesses.
Com esperança e ânimos redobrados, os brasileiros ansiavam
pelo dia 15 de março — data prevista para a posse do primeiro presidente civil da
"Nova República". Mas o que deveria ser uma festa da democracia transformou-se
em luto nacional: Tancredo foi internado na véspera da
cerimônia e faleceu 38 dias e 7 cirurgias depois — em 21 de abril, que,
ironicamente, homenageia Tiradentes, o "Mártir da
Independência".
Depois de algumas discussões jurídicas sobre a possibilidade
de o então presidente da Câmara Federal (Ulysses Guimarães) assumir o
posto, foi acertado que José Sarney — vice na chapa de Tancredo
— seria empossado. E foi o que aconteceu, conforme eu também já comentei em
outras oportunidades.
O Brasil polarizado pelo execrável discurso lulista do
"nós contra eles" vem reproduzindo uma frase que estava na
boca de alguns saudosistas de tempos em que notícias sobre violência e economia
em marcha lenta pareciam raras: “Na época dos militares era
melhor”, dizem os que sequer tinham nascido e, portanto, ignoram a
repressão e a filtragem de notícias negativas à ditadura.
Por alguma razão que escapa ao meu limitado entendimento,
jovens apoiadores da tragédia em forma de gente que (ainda) ocupa o Palácio do
Planalto parecem acreditar que no
tempo do regime militar o Brasil era mais alentador — ideia que seu
"mito" alimenta tecendo elogios aos anos de chumbo. Entre os
argumentos mais utilizados por essa ospália está a conquista do "milagre
econômico", que teria ocorrido entre 1968 e 1973.
De fato, naquela época o Brasil conseguiu crescer
exponencialmente — cerca de 10% ao ano — e atingir, em 1973, uma marca recorde
do PIB, que aumentou 14%. O avanço veio acompanhado de uma forte queda
de inflação — a taxa medida na época pelo Índice Geral de Preço (IGP)
caiu de 25,5% para 15,6% no período.
O que não se explica diante desse número, entretanto, é o
fato de o crescimento ter sido muito bom para banqueiros e empresários, mas
ruim para os trabalhadores. Para que o plano de crescimento funcionasse, os
militares mudaram a fórmula que previa o reajuste da remuneração pela inflação,
levando a perdas reais para a população em geral.
A melhora na atividade econômica se explica pela conjuntura
mundial mais favorável, que oferecia crédito externo farto e barato e favorecia
a criação de novos postos de emprego no mercado formal e a expansão do consumo
interno. Mas o "milagre" se deveu principalmente ao dinheiro
proveniente de multinacionais — que encontraram no Brasil um terreno propício
para a expansão sob a tutela dos militares — e de empréstimos advindos de
fundos internacionais.
Por outro lado, a concentração de renda também aumentou
muito naquele período, fazendo com que a desigualdade social conhecesse atingisse
patamares nunca antes alcançados, e os altos índices de crescimento do PIB
não produziram uma melhora nos indicadores sociais — o índice
Gini quase quadruplicou entre 1964 e 1977. E o investimento maciço dos
governos militares na industrialização resultou no êxodo rural — segundo o IBGE,
apenas 16% da população morava no interior do país em 2010).
Para equilibrar as contas públicas, controlar a inflação e
desenvolver o mercado de créditos, a gestão de Castello
Branco adotou um ambicioso programa de reformas (Plano de Ação
Econômica do Governo) que criou diversos mecanismos de incentivo às
exportações, mas foi no governo Médici, com Antonio Delfim Netto à
frente do ministério da Fazenda, que o projeto econômico mirou o crescimento
rápido, com destaque para indústria automobilística e grandes obras de
infraestrutura, como a construção da Ponte Rio-Niterói (que começou em
1969 e foi inaugurada em 1974) e a nunca terminada Rodovia Transamazônica.
No início dos anos 1970, a crise do petróleo,
resultante de conflitos entre países membros Opep, elevou o preço do
barril de US$ 3 para US$ 11,60, castigando drasticamente países
importadores, como era o caso do Brasil, e quebrando o modelo econômico baseado
no alto endividamento externo. Como a estabilidade econômica era um argumento
essencial para a manutenção do governo militar, os economistas chapa-branca decidiram
que o país deveria continuar crescendo a qualquer custo, ainda que se
endividando cada vez mais.
Foi nesse cenário que o Segundo Plano Nacional de
Desenvolvimento (IIPND), mais ousado que o primeiro, investiu especialmente
na criação e expansão de empresas estatais. A Petrobrás, por exemplo, ganhou
subsidiárias, e a usina hidrelétrica de Itaipu foi construída, visando tornar
o país independente da importação de energia, gerar renda através da produção
própria e se valer de parte dessa renda para quitar a dívida externa.
Como o imprevisível costuma ter voto decisivo na assembleia
dos acontecimentos, a crise se prolongou além do previsto e a conta do
crescimento baseado em um alto grau de endividamento ficou
para a redemocratização. Quando os fardados voltaram para a caserna, em
1984, a dívida externa tupiniquim representava 54% do PIB — vinte anos
antes, por ocasião do golpe militar, esse percentual correspondia a 15,7% do
PIB. Como não poderia deixar de ser, a inflação disparou, chegando a 223%
em 1985 e a 1782% durante o malfadado governo Sarney.
Outro falácia tão escabrosa quanto a de ter acabado com a Lava-Jato porque não existe mais corrupção no governo é a de que não havia corrupção durante a gestão dos militares. No mundo real atual, o sem-número de fatos que estão apurados por investigações que miram Bolsonaro e quatro de seus cinco filhos, as relações promíscuas do clã-presidencial com milicianos e toda sorte de cambalachos descobertos pela CPI do Genocídio falam por si.
No mundo real dos tempos de antanho, foi durante a ditadura militar que as relações espúrias entre órgãos públicos e interesses privados mais floresceram, tanto porque não havia investigação quanto porque os censores chapa-branca não permitiam a publicação de notícias desfavoráveis ao governo.
Mas isso é conversa para a próxima postagem.