terça-feira, 14 de setembro de 2021

LÁGRIMAS DE CROCODILO

Os humanos são a única espécie conhecida a produzir lágrimas por razões emocionais, mas os crocodilos "choram" ao devorar suas presas, daí a expressão "lágrimas de crocodilo" ser usada desde sempre com o sentido de choro fingido, falsa demonstração de emoção ou arrependimento, e por aí vai.

Desde sempre é figura de linguagem, naturalmente, mas o folclorista Raimundo Magalhães Jr, ao tratar da questão em seu Dicionário de Provérbios e Curiosidades, cita um texto do historiador romano Plínio, o Velho — que viveu no século I da era cristã — segundo o qual os crocodilos do Nilo fingiam chorar e soluçar para atrair suas vítimas.

Questões semânticas e etimológicas à parte, a patética "declaração à nação" redigida pelo igualmente patético vampiro do Jaburu (que, pasmem!, tem medo de assombração) não passa de lágrimas de crocodilo. Só mesmo Polianas e Velhinhas de Taubaté seriam crédulas a ponto de acreditar no arrependimento do capitão pelas ofensas e ameaças que dirigiu ao STF, ao TSE e aos ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. Afinal, até as pedras portuguesas da Praça dos Três Poderes sabem que tanto Bolsonaro quanto o escorpião da fábula são incapazes de agir contra sua própria natureza.

Bolsonaro recorreu a Temer porque foi o ex-presidente quem cobriu os ombros de Moraes com a suprema toga. A preocupação do capitão com o dono da calva mais luzidia do STF se justifica, visto que estão sob sua relatoria três das seis investigações que miram o próprio Bolsonaro, seus filhos e uma penca de apoiadores abilolados. Para além disso, Moraes estará no comando do TSE em outubro do ano que vem, quando, se nada fugir ao script, devem acontecer as próximas eleições gerais.

De acordo com a Folha, ainda não há decisões em aberto que exijam cumprimento imediato, mas Moraes parece empenhado em mudar esse cenário. Aliás, a obstinação do mandatário conseguiu a proeza de unir contra si o plenário do Supremo — que o jurista José Francisco Rezek, ex-integrante da Corte de Haia e duas vezes ministro do STF, definiu como "um arquipélago de onze monocracias”).

Segundo o sempre bem-informado Edson Bonin, na quarta-feira, 8, antes que Fux fosse ao STF falar ao país, a segurança da corte fez uma pesada varredura no plenário, sobretudo depois da noite da segunda-feira, 6, quando bolsonaristas romperam o bloqueio da PM (o reforço na proteção, com homens do Exército, chegou a ser cogitado).

Lewandowski e Barroso se uniram na reunião do STF para garantir que a fala de Fux em nome do tribunal fosse dura com Bolsonaro. Quando Nunes Marques ensaiou pedir cautela, foi duramente repelido: "Não é o momento de relativizar nada", disse o ministro Fachin. Ao ser informado do teor da fala de Arthur Lira, sem menção ao "impeachment", o presidente do STF respondeu: "Eu vou fazer a minha parte". E fez.

Bolsonaro vem "esticando a corda" desde o dia em que subiu a rampa do palácio, e tantas vezes vai o jarro à fonte que um dia lá deixa a asa. Dizer que despejou vitupérios "no calor do momento" é uma desculpa tão esfarrapada quando o estado democrático de direito sob a égide do papa do bolsonarismo boçal. Como bem lembrou Fux, não acatar decisões judiciais configura crime de responsabilidade, e crimes de responsabilidade dão azo a processos de impeachment. Faltou o ministro enviar cópias de sua fala ao deputado-réu que preside a Câmara e ao engavetador-geral da Banânia, já que ambos, cada qual por seus próprios motivos escusos, insistem em não se dar por achados. Mas toda araruta tem seu dia de mingau.

Uma das características mais notáveis do país do futuro (que nunca chega) sempre foi a resiliência, a capacidade de sobreviver a governantes ímprobos, incompetentes ou com ambas essas "virtudes". E uma das características mais notáveis do eleitorado tupiniquim sempre foi votar em políticos da pior catadura. Mas para tudo há limites, mesmo numa republiqueta de bananas como a nossa, e o jacobeu de plantão os vem superando dia após dia. E assim continuará a fazer até o mais amargo fim, a não ser que o deponham do cargo.    

Fosse o Brasil uma democracia que se desse ao respeito e esse farsante (para usar a definição do ministro Barroso) já seria jornal de ontem, notícia velha, página virada, papel queimado, enfim, uma vaga (e desagradável) lembrança. Os discursos golpistas do capitão obnubilado excederam todo e qualquer limite, inclusive o da fleuma do presidente do TSE, que passou das ironias sutis e para o bom português do asfalto ao dizer com todas as letras "quem é o farsante" e que já está ficando cansativo, para o Brasil, "ter que repetidamente desmentir falsidades".

O recuo de Bolsonaro é falso como nota de R$ 3, mas, se durar ao menos algumas semanas, pode permitir que o Congresso retome a discussão de pautas relevantes. Resta sabe, quando se dará a próxima recaída, já que burros velhos não aprendem truques novos. Mal comparando, é como o sujeito que espanca a mulher à noite e pede desculpas pela manhã; se ela o perdoa, ele volta à noite e torna a espancá-la — e a se desculpar na manhã seguinte, numa espécie de looping infinito.

A nação precisa urgentemente obter uma "ordem de restrição", porque está sob o comando de um lunático paranoico, esquizofrênico, leviano, destrambelhado, intrujão e liliputiano — "sob o comando" é força de expressão, já que o capitão mefistofélico não comanda mais nada (embora pareça não se dar conta disso).

Napoleão de hospício que se preza come merda e rasga dinheiro — o que parece não ser o caso. Mas é burrice subestimar a inteligência de Bolsonaro. Embora ele fosse chamado de "cavalão" no quartel, o apelido nada tinha a ver com burrice. Para além disso, nenhum muar sobreviveria 27 anos no baixo clero da Câmara, onde o mais "bobinho" enlinha a agulha em trevas totais — e calçando luvas de boxe.

Segundo apurou o Estadão/Broadcast, a decisão do presidente de fazer acenos a Moraes, a quem chamou de "canalha", é vista no Congresso como uma jogada de risco. A ideia é ganhar tempo — já que os incentivos para os atores políticos organizarem um processo de impeachment diminuem à medida que o calendário eleitoral se aproxima. Se Bolsonaro atravessar incólume este mês e o próximo, as probabilidades de ser cassado tornam-se praticamente nulas. Mas as lágrimas de crocodilo têm também um componente tático, qual seja o de atribuir a Moraes a pecha de perseguidor (como fez com o ex-juiz Sérgio Moro aquele a quem o mandatário de turno chama de "ladrão de nove dedos".

O comportamento de apoiadores nas redes sociais mostra que o capetão terá dificuldades em sustentar essa pseudo mudança de postura por muito tempo. Nas horas que sucederam a divulgação da carta, relatórios de monitoramento mostravam integrantes da base bolsonarista explorando termos como “medo”. O recuo foi interpretado como gesto de fraqueza e até de traição pela base.

Analistas do mercado também acreditam que a volatilidade deve continuar a dar o tom dos pregões, sobretudo diante das persistentes dúvidas sobre o andamento da pauta econômica, a crise hídrica, a inflação elevada e a própria movimentação de caminhoneiros.

Interessa a Bolsonaro permanecer no cargo, seja pelas urnas, seja pelo golpe. Ataques ao sistema eleitoral fazem parte de seus discursos desde a campanha. Pegar em lanças pelo voto impresso auditável, sabendo que a PEC foi sepultada, é apenas uma maneira de justificar uma provável derrota em 2022. Na eleição passada, ele disse que só perderia se houvesse fraude, e manteve a lengalenga mesmo depois de eleito. Em março de 2020, disse que venceu a eleição no primeiro turno. Pura chiacchiera. A título de comparação, o fato de Lula dizer que não havia no Brasil viva alma mais honesta do que ele não o tornou menos picareta, apenas fez dele mais um picareta que nega a picaretagem. Como diria o general Pazuello, é simples assim.

As manifestações pró-impeachment e contra o presidente Bolsonaro realizadas no último domingo ficou aquém do esperado por seus organizadores. A mobilização, convocada pelo Movimento Brasil Livre e pelo grupo Vem pra Rua, contou com a participação de políticos presidenciáveis, como Ciro Gomes, Luís Henrique Mandetta, João Doria, Simone Tebet e Alessandro Vieira. Mas o protesto acabou "rachando" porque dividiu a opinião de representantes partidários

Sem a adesão do PT e de outros partidos, movimentos e centrais sindicais que orbitam em torno da sigla, não foi possível superar a investida bolsonarista do Dia da Independência. Sem mencionar que parte da direita também se recusou a participar por entender que o movimento poderia fortalecer a candidatura de Lula

Observação: Segundo o site O Antagonista, apoiadores do ex-presidiário Lula tentaram inclusive sabotar os protestos contra Bolsonaro. Para Luciana Alberto, porta-voz do movimento Vem Pra Rua, os atos estiveram abertos à participação dos movimentos de esquerda, mas o PT não tem o menor interesse no impeachment do capitão. Enfim, o lobo perde o pelo, mas não perde o vício. Uma vez imprestáveis, sempre imprestáveis.

Josias de Souza ressumiu a ópera com o brilhantismo de sempre: 

Numa evidência de que interessa a Lula manter um Bolsonaro fraco no Planalto, o PT e os movimentos sociais que gravitam ao seu redor decidiram se ausentar das ruas neste domingo. Alega-se que os organizadores — MBL, Vem Pra Rua e Livres — mobilizaram-se pelo impeachment de Dilma. Conversa mole. 
O Centrão também conspirou contra Dilma. E Lula tricota para restabelecer o diálogo com os principais caciques do grupo, hoje vinculados a Bolsonaro. Organizados há dois meses, os atos de 12 de setembro tinham um slogan eleitoral: "Nem Lula, nem Bolsonaro." Na última hora, tentou-se colocar em pé o mote "Fora, Bolsonaro", mais agregador. Era tarde. O cheiro de terceira via tornou-se mais forte do que a defesa da democracia.
Discursaram na Avenida Paulista personagens como João Doria, Ciro Gomes, Mandetta e Amoedo. A desarticulação entre eles reforça a percepção de que a terceira via tem excesso de cabeças e carência de miolos. O petismo padece da mesma moléstia. A diferença é que tem uma cabeça só. Lula conserva sua vocação hegemônica.
A desorganização dos adversários oferece a Bolsonaro a oportunidade de cavalgar a carta-rendição escrita por Michel Temer fazendo pose de moderado. A moderação vai durar apenas até a próxima crise. Que pode ocorrer nos próximos cinco minutos. 
O PT e seus operadores sociais se equipam para voltar às ruas. Já demonstraram que têm grande capacidade de mobilização. Mas o objetivo é o de exibir a musculatura eleitoral de Lula, não derrubar Bolsonaro. Lula é, hoje, o maior interessado na permanência de Bolsonaro no Planalto.

O inimigo do nosso inimigo não é necessariamente nosso amigo, mas há situações em que é preciso unir forças para derrotar um adversário em comum. Em 2018, era imperativo impedir o retorno da cleptocracia lulopetista. Da feita que o esclarecidíssimo eleitorado canarinho (sempre ele) escalou para o segundo turno a dupla nhô-ruim e nhô-pior, não restou alternativa a quem não queria nem um nem outro senão unir forças com o bolsonarismo boçal. 

E assim abrimos a caixa de Pandora (ou libertamos o gênio malfazejo da garrafa, como queiram). Ironicamente, a aberração que elegemos virou um desastre por conta própria, dispensando o auxílio da oposição para se tornar um conto do vigário no qual 57,8 milhões de brasileiros caíram.

De novo: como diria o general Pazuello, é simples assim.