Marx disse que a história se repete: da primeira vez, um fato aconteceria como tragédia; da segunda, como farsa. O filósofo alemão se referia ao golpe de Estado que alçou Napoleão III ao trono da França — uma “farsa” que copiava uma “tragédia”, qual seja o golpe de 18 de Brumário.
Na política, a história também se repete, às vezes sem farsa, mas sempre como tragédia. Prova disso são a eleição presidencial de 2018 e a que deve acontecer daqui cinco meses.
Entre as muitas promessas que o candidato Bolsonaro fez e que o presidente Bolsonaro descumpriu está o fim da instituição da reeleição. Pior: em 3 anos e 4 meses de desgoverno, o capitão jamais desceu do palanque — talvez seja por isso que não teve tempo de governar, mas essa é outra conversa. A questão é que ele e seus sectários delirantes insistem ad nauseam que não houve um único caso de corrupção no governo. Só não dizem em que país.
Indícios de corrupção brotaram e continuam a brotar como ervas daninhas desde janeiro de 2019, mas não há quem os investigue — noves fora a imprensa, naturalmente, daí o ódio figadal que o presidente nutre pelos jornalistas. E não é só ele: desde sua soltura, em novembro do ano retrasado (o que por si só já foi um descalabro), Lula já falou pelo menos 9 vezes em regular os meios de comunicação.
Costuma-se dizer que Deus é brasileiro. Se isso estiver correto, o imprevisto há de ter voto decisivo na assembleia dos acontecimentos e nem Lula nem Bolsonaro voltarão a conspurcar o instituto da Presidência. Do contrário, esta republiqueta de bananas jamais deixará de ser o país do futuro que com um imenso passado inglório pela frente.
No governo que “não tem um caso sequer de corrupção” há um presidente que, quando candidato, prometeu travar uma cruzada contra os corruptos e pôr fim à nefasta política do toma-lá-dá-cá não para de estampar as manchetes com atos no mínimo insólitos. Cito um exemplo recente: após picanha, Forças Armadas aprovam compra de remédio para disfunção erétil. Será que os militares vão usar o “azulzinho” para foder ainda mais o povo brasileiro?
Já não basta um presidente da Câmara que escamoteia 143 pedidos de impeachment? Um Procurador-Geral que não acha nada porque não se dá ao trabalho de procurar? Um relatório de CPI que atribuiu mais 9 crimes (entre comuns e de responsabilidade) ao chefe do Executivo, mas permanece engavetado? Um mandatário que flerta com o autogolpe como nenhum outro jamais ousou; que apoia (e estimula) manifestações antidemocráticas; que chama ministros do STF de canalha e de filho da puta; que é alvo de quase uma dezena de investigações (que se arrastam a passo de lesma pelos escaninhos do Judiciário) e tem quatro dos cinco filhos igualmente investigados? (Na semana passada foi a vez Jair Renan — que sequer tem mandato — depor na PF do DF).
Mesmo diante de inúmeras evidências de um dos maiores escândalos do atual governo, a AGU solicitou ao TSE o arquivamento de um pedido de investigação contra Bolsonaro pelo favorecimento de pastores na distribuição de verbas do MEC. A justificativa é que “houve somente uma menção indevida ao presidente”, e que não há elementos que justifiquem a abertura de investigação na Justiça Eleitoral. Numa entrevista a um grupo de comunicação do Pará, o capitão disse que a Polícia Federal não precisa se preocupar com seu governo, pois ninguém faz nada de errado. Informou que o toma-lá-dá-cá de recursos públicos e cargos na administração federal acalma os parlamentares.
O doutor de fancaria distribui cargos e emendas e faz vistas grossas para denúncias de pessoas que atuam em seu nome e demonstram pouca atenção republicana com o dinheiro público. Segundo ele, é a receita que acalma. O ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira — que, calmíssimo, divide com Arthur Lira o comando do país e a distribuição de medicação aos parlamentares —aparece no noticiário como beneficiário de recursos na forma de uma rede de escolas fantasmas.
Além de funcionários fantasmas nos gabinetes parlamentares, há também escolas fantasmas. Sabe-se assim que o loteamento do MEC fornece óbolos não apenas a pastores, mas também a gente igualmente próxima ao ex-capitão e ao timoneiro da sua estratégia de sobrevivência política. Todos calmíssimos, naturalmente.
Aumentos sucessivos no preço dos combustíveis levaram Bolsonaro a promover a terceira troca de comando na Petrobras. Na avaliação do "mito", era preciso procurar alguém “mais profissional” para presidir a empresa. Faz sentido. Aliás, há muito que os brasileiros deveriam ter procurado alguém “mais profissional” para presidir o país. O que aí está tranquiliza os seus, e não apenas com a distribuição de cargos e verbas. Faz de conta que não existe um orçamento secreto de bilhões de reais, veta de mentirinha um fundo eleitoral de R$ 5 bilhões (para que o Congresso rejeite o veto) e fecha os olhos para denúncias de malfeitos dos seus próximos.
De um lado, um Arthur Lira artífice do grande caixa da campanha eleitoral, de outro, um Ciro Nogueira filtro dos repasses das verbas públicas oficiais e, completando a trinca, um Valdemar da Costa Neto, ex-presidiário condenado por corrupção, organizando as "chapas". São quatro no jogo e, nas laterais, jogando junto, filhos numerados e adesistas com patente militar. O aparelhamento dos órgãos de controle do Estado (PGR, PF, COAF etc.), ora transformados em assessorias do presidente da República, não teria sido suficiente para amansar os parlamentares.
A tentativa de Lira de mudar regras de governança da Petrobras para que lobistas pudessem entrar pela porta da frente e mandar na empresa é uma demonstração de que, na prateleira dos medicamentos da estratégia governamental, a cura para o stress tem uma receita: uma dose de orçamento secreto, mais uma injeção de cargos bem pagos e uma colher de chá da Polícia Federal, com um banho de imersão na sonolência induzida da Procuradoria Geral da República.
Se a cloroquina não funciona para tratar Covid, quem sabe o Rivotril do receituário do capitão seja eficaz para narcotizar a opinião pública e levá-la a aceitar bovinamente os desmandos, a corrupção, a incompetência e a balbúrdia que abundam neste desgoverno.
O conceito de um governo é o resultado da análise de tudo o que sobra para ser desenterrado muitos anos depois. No futuro, quando a arqueologia fizer suas escavações à procura de sinais que ajudem a entender a decadência do governo Bolsonaro, encontrará em meio aos escombros de 2022 evidências de que o cinismo foi o mais perto da honestidade que o atual presidente conseguiu chegar.
Com Olga Curado e Josias de Souza