sexta-feira, 5 de agosto de 2022

O DESEMPREGADO QUE DEU CERTO (DÉCIMA TERCEIRA PARTE)

 

O inferno astral que atormentou Dilma na Presidência foi gestado pela própria Dilma, não com as pedaladas fiscais — operações orçamentárias não previstas na legislação, que consistem em atrasar o repasse de verba a bancos públicos e privados com a intenção de aliviar momentaneamente a situação fiscal do governo — e os decretos de suplementação orçamentária — autorizações de aumento de gastos sem prévio aval do Congresso —, mas pelo "conjunto de sua obra", que deu azo à maior crise econômica e política da história recente deste país — e que o atual chefe do Executivo se esmerou em acentuar, mas isso é outra conversa.


Na avaliação dos esquerdopatas, Dilma não cometeu crime nenhum, apenas fez o que outros haviam feito antes dela 
 e nem por isso foram cassados, apedrejados ou crucificados. Assim, a "chefa" teria sido vítima de um "golpe" orquestrado por adversários não se conformaram com o resultado das urnas e, entre outras supostas e absurdas razões, pelo fato de ela ser mulher. Tudo isso é ridículo, naturalmente, e chamar esse episódio de "golpe" significa chamar de "golpistas" os deputados, os senadores, o então vice-presidente Michel Temer e o ministro Ricardo Lewandowski (que participou do julgamento de impeachment na qualidade de presidente do STF). 


Uma parcela substantiva dessa falácia é verdadeira. Temer atuou como "eminência parda", os parlamentares foram oportunistas e Lewandowski rasgou a Constituição ao fatiar o julgamento para evitar que a anta sacripanta fosse inabilitada politicamente, como veremos melhor mais adiante. Fato é que, para a militância petista, useira e vezeira em distorcer os fatos, Dilma não foi responsável pela encrenca em que se meteu. A culpa foi do vampiro do Jaburu, que estava de olho no trono, e de Eduardo Cunha, que deu andamento ao processo de impedimento (coisa que nem Rodrigo Maia nem Arthur Lira fizeram com os pedidos de impeachment em desfavor de Jair Bolsonaro, mas isso é outra história). 

 

Temer nega, mas os fatos o desmentem. Foram ele e o então presidente da Câmara que articularam a deposição da nefelibata da mandioca. No livro "Tchau, Querida: O Diário do Impeachment", o ex-deputado ex-presidiário cita o fim de agosto de 2015 como marco da entrada de Temer nas negociações do impeachment e afirma que o vice se tornou "líder do processo" quando deixou o posto de articulador político do governo, no dia 24 daquele mês. 


Cunha relata ainda que discutia, em nome do Nosferatu da Esplanada, a distribuição de cargos no futuro governo antes mesmo do início do processo. "Temer se colocou como presidente, fazendo campanha para uma eleição congressual, em que todos sabiam o que ganhariam antes de votar; nada foi de graça", afirmou o ex-deputado que, segundo ele próprio, discutiu o impeachment em agosto com dirigentes do PP e do PL — partidos do Centrão que faziam parte da base aliada de Dilma e que só desembarcaram do governo no ano seguinte. Mas isso também é assunto para uma próxima vez.

 

Tramoias à parte, Temer subiu de posto em obediência aos ditames da Constituição, num trâmite acompanhado e avalizado pelo STF. É evidente que ele premeditou sua ascensão, mas isso faz do jogo da política — e política raramente combina com lealdade.


Observação: O impeachment é um processo eminentemente político, pois o julgamento fica a cargo dos deputados federais, numa primeira instância, e dos senadores da República na etapa final. Ao presidente do Supremo, que participa do julgamento, compete somente garantir que os trâmites legais sejam seguidos. 


Lewandowski, então presidente do STF, urdiu com Renan Caleiros, então presidente do Congresso, o fatiamento do julgamento, visando evitar que Dilma tivesse os direitos políticos suspensos pelos oito anos seguintes. Realizar a votação em duas etapas, como se a deposição e a inabilitação política fossem duas penas separadas, foi mais "jabuticaba jurídica" por um membro da nossa mais alta corte (detalhes nesta postagem). Aliás, quatro meses depois dessa teratologia, o STF afastou Calheiros da presidência do Congresso sem lhe cassar o mandato parlamentar, numa decisão meia-boca que serviu para tirá-lo da linha sucessória presidencial quando ele se tornou réu por peculato. Mas isso também é outra conversa. 

 

Observação: Lewandowski ganhou toga e gabinete no STF por influência da matriarca da Famiglia Lula da Silva. Vizinha da mãe mão do dito-cujo em São Bernardo do Campo, a então primeira-dama vivia tecendo elogios ao advogado estudioso, inteligente e muito capaz. Assim que apareceu uma toga sem dono, Lula o indicou para a cadeira deixada pelo ministro Carlos Velloso — e não teve do que se arrepender: durante o julgamento do Mensalão, Lewandowski atuou mais como advogado de defesa da petralhada que como julgador imparcial.

 

Estranha no ninho dos políticos, Dilma demonstrou uma inabilidade a toda prova na condução do governo e das contas públicas. As tais pedaladas etc. foram o pretexto que a ocasião providenciou para apear a Bruxa Má do trono. Mas isso não significa que houve um "golpe", por mais que tenha havido casuísmo na instauração do processo. Primeiro, porque Dilma socou o país até jogá-lo nas cordas da crise; segundo, porque ela sempre foi pedante e arrogante; terceiro, porque jamais teve jogo de cintura no trato com os parlamentares. 


Na patética "carta aos senadores e à nação", a versão tupiniquim da Rainha de Copas de Lewis Carroll insistia em protestar inocência e posar de injustiçada. Melhor faria se reconhecesse sua incompetência e renunciasse. No prefácio que escreveu num livro cujo nome ora me foge à memória, Edmar Bacha citou uma frase atribuída a Orestes Quércia ("Quebrei o Banespa, mas elegi meu sucessor") e sugeriu que Dilma a adaptasse ("Quebrei o País, mas me reelegi presidente"), mas seria preciso acrescentar: “E depois fui demitida”.

 

Na história desta republiqueta de bananas, "muitos presidentes foram eleitos para ser depostos", como relembrou o macróbio José Sarney numa entrevista a Veja. Tivesse dito isso nos estertores de sua desditosa passagem pelo Palácio do Planalto, o penúltimo coronel da política de cabresto nordestina entraria para a história não só como mandatário inepto, mas também como profeta: seu vaticínio se cumpriria no apagar das luzes de 1992, com o impeachment de seu sucessor, Fernando Affonso Collor de Mello, e em agosto de 2016, quando Dilma foi julgada, considerada culpada e devidamente apeada do cargo. Mas os dois casos guardam dessemelhanças curiosas. Vamos a elas.

 

Collor se destaca dos demais ex-presidentes da Nova República por ter sido o primeiro escolhido pelo voto popular (coisa que não acontecia e por ter inaugurado a lista dos impichados. Pouco antes de ser julgado pelo Senado, o caçador de marajás de araque, sabedor de que a perda do cargo era inevitável, apresentou sua renúncia para preservar ao menos os direitos políticos. E mesmo assim foi condenado (por 76 votos a 3) e apenado com a perda do mandato e oito anos de inelegibilidade, como determina a legislação que regulamenta o assunto


Curiosamente, a observância dos ditames legais não foi tão rígida no julgamento final do impeachment de Dilma: graças a uma trama urdida pelos então presidentes do Legislativo e do Judiciário, a estocadora de vento, mesmo condenada e apeada do cargo, manteve seus direitos políticos, embora o artigo 52 da Constituição determine a perda do cargo com inabilitação, por oito anos para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis (o grifo é meu). 

 

Como dizia Maquiavel, "aos amigos, os favores; aos inimigos, o rigor da Lei".

 

Continua...