quarta-feira, 29 de março de 2023

DE VOLTA À MUAMBA DAS ARÁBIAS


Bolsonaro disse que retornará ao Brasil amanhã (mais um pouco e seria no dia 1º de abril), embora Michelle, Costa Neto e Eduardo Bolsonaro achassem melhor ele adiar o retorno por mais algum tempo. Pelo sim ou pelo não, sua defesa entregou as joias e as armas presenteadas por "autoridades sauditas", estimadas em cerca de R$ 500 mil, a uma agência da Caixa Econômica Federal.

ObservaçãoReportagem de André Borges e Adriana Fernandes publicada no Estadão revela que o ex-presidente teria recebido como presente dos sauditas e levado para seu acervo pessoal um terceiro conjunto de joias que inclui um relógio da marca Rolex de ouro branco cravejados com diamantes. O valor das joias é estimado em R$ 500 mil.

A novela das joias parece estar longe de acabar. E os fatos parecem ter pretensões literárias. Ao tentar recriar a realidade em seu depoimento à PF, o ex-ministro Bento Albuquerque fabricou um enredo em que não só se desmente Bolsonaro como destoa do script criado pelo ex-chefe. O caso passou agora a ter três versões: a de Albuquerque, a de Bolsonaro e a verdadeira. 

O almirante disse inicialmente que o pacote retido na alfândega iria para Michelle e o que escapou à fiscalização seria de Bolsonaro. Agora ele diz que os dois estojos continham presentes para a União. Se fosse assim, bastaria ter seguido a orientação dos fiscais, pois bens do Estado não são tributados. Mas o Planalto jamais requisitou a incorporação das joias ao acervo público. Bolsonaro se apropriou do relógio, das abotoaduras, da caneta, do anel e até de um rosário islâmico. "Bens personalíssimos", alegou. 
 
Num instante pouco beato, Bento admitiu à PF que escondeu na própria bagagem as peças surrupiadas pelo ex-chefe (os diamantes camuflados na mochila do assessor foram salvos do roteiro inexato e permanecem retidos). O escândalo descerá à crônica do governo Bolsonaro como uma espantosa sequência de fatos extraordinários que aconteceram com pessoas ordinárias — em todos os sentidos. 

O inquérito da PF mal começou, mas já está demonstrado que a verdade não só é muito mais incrível do que a ficção como é bem mais difícil de inventar.
 
Mudando de um ponto a outro, o vocábulo governabilidade consolidou-se como uma espécie de abracadabra para a caverna de Ali-Babá. Juntam-se hienas, raposas, aves de rapina, abutres e roedores de toda espécie. E anotam na tabuleta da porta: "Base Aliada". 

Sob Lula 3, montou-se um esquema muito parecido com o que havia na gestão Bolsonaro. A diferença é que o "toma lá" ficou mais caro. E o "dá cá" depende do ritmo do desembolso dos inéditos R$ 46 bilhões reservados para o financiamento do balcão de emendas.
 
O "orçamento secreto" foi extinto pelo STF, mas o Centrão redistribuiu os bilhões, e tudo continua como dantes no quartel de Abrantes. Inclusive a falta de transparência. E tudo negociado durante a transição de governo com o então presidente eleito, que agora azeita seu relacionamento com o Congresso por meio da distribuição de cargos — inclusive para prontuários notórios. Em suma: mais do mesmo.
 
Na ficção do papel, Paulo Guedes comandava uma estrutura com três pastas. Na vida real, mal controlava uma deles. Sabe-se agora que, no Posto Ipiranga, a Receita Federal era a lojinha de conveniências de Bolsonaro, onde se aproveitava de Guedes apenas o vocabulário. 

No térreo da lojinha, coletavam-se os impostos que financiavam as emendas das "criaturas do pântano político" e as isenções dos "piratas privados". No subsolo, utilizava-se a mão de obra daqueles que Guedes denominava de "burocratas corruptos" para a execução de serviços variados — da garimpagem de diamantes à quebra de sigilos fiscais. 

Numa mesma repartição, materializaram-se a virtude e a infâmia: funcionários honestos guardavam as joias da coroa na alfândega de Guarulhos e resistiam às pressões de Brasília, enquanto dados fiscais sigilosos de desafetos do rei eram arrancados das máquinas no setor de inteligência da Receita

Sempre tão loquaz, Guedes assiste calado ao noticiário sobre a perversão que tisna sua antiga gestão. Há enorme curiosidade para saber quanto melado ainda terá que escorrer até que o ex-superministro quebre o silêncio.
 
Costuma-se dizer que o toma-lá-dá-cá é parte indissociável da política e, portanto, um mal necessário. Mas convém acender a luz: às claras, os parlamentares esclareceriam o que desejam tomar, e o Planalto informaria o que se dispõe a dar. Para além disso, um mal necessário jamais será confundido com um bem. Muito menos necessário.

Com Josias de Souza