sábado, 20 de janeiro de 2024

SERGIO MORO E OS NOVE CÍRCULOS DO INFERNO

 

Não bastasse a provável cassação de seu mandato, o senador Sergio Moro se tornou alvo de um inquérito que visa apurar supostas irregularidades num acordo de delação premiada firmado em 2004 por Antonio Celso Garcia, que o acusa de obrigá-lo a gravar autoridades com foro privilegiadoA denúncia teria sido relatada à juíza substituta Gabriela Hardt em 2021, mas só foi encaminhada ao STF dois anos depois, durante a passagem relâmpago do juiz antilavajatista Eduardo Appio pela 13ª Vara Federal de Curitiba. 

Observação: Vale lembrar que Hardt assumiu os processos do braço paranaense da Lava-Jato em 2018, quando o Moro aceitou ser ministro de Bolsonaro, e tornou a assumi-los em março do ano passado, quando Appio foi afastado pelo TRF-4 por suspeitas de ter ameaçado o filho do desembargador Marcelo Malucelli.
 
Moro embarcou numa canoa que deveria saber furada (e iniciou seu périplo pelos nove círculos do inferno) quando trocou a magistratura por um efêmero ministério no desgoverno Bolsonaro. Talvez achasse realmente que poderia implementar uma forte agenda anticorrupção, e que sua indicação para o STF era pra valer. Mas acusá-lo de condenar Lula movido por "ambições políticas" me parece leviano. Até porque a sentença foi dada em julho de 2017, quando as chances de Bolsonaro ser eleito presidente eram as mesmas de eu ser ungido papa. E prisão do xamã do PT foi determinada pela 8ª Turma do TRF-4, que confirmou a condenação e aumentou a pena de 9 anos e 6 meses de reclusão para 12 anos e 1 mês.
 
Mas a terra plana não dá voltas, capota, e Moro deu com os burros n'água. As coisas poderiam ter tomado outro rumo se ele continuasse a engolir sapos e beber a água da lagoa (como fez durante 1 ano e 4 meses), mas a reunião interministerial de 22 de abril de 2020 foi a gota que transbordou o copo. Na coletiva de imprensa em que anunciou a demissão, o ainda herói nacional atribuiu sua decisão às frequentes interferências de Bolsonaro na PF

Observação: Sobre as alegadas ingerências, o chefe do clã das rachadinhas assim se pronunciou: “Fui eleito presidente para interferir mesmo, se é isso que eles querem. Se é para ser um banana ou um poste dentro da Presidência, tô fora”. Fato é que o desembarque criou uma crise no governo e originou um inquérito que acabou em pizza devido à aposentadoria do decano Celso de Mello e à subserviência do antiprocurador-geral Augusto Aras. 
 
Como juiz, Moro enquadrou poderosos em processos de grande repercussão, como o escândalo do Banestado, a Operação Farol da Colina e a Operação Fênix. No auge da (hoje moribunda) maior operação anticorrupção da história desta banânia, condenou figuras do alto escalão da política e do empresariado tupiniquim, como Lula, José Dirceu, Sérgio Cabral e Marcel OdebrechtÀ frente dos casos da Lava-Jato em Curitiba, tinha uma biografia respeitável, estabilidade no emprego e a vida a lhe sorrir. 

No governo, Moro foi traído por Bolsonaro. Como aspirante à Presidência, filiou-se ao Podemos, migrou para o União Brasil e foi sabotado por Luciano Bivar, que fingiu interesse em concorrer ao Planalto para tirá-lo do jogo — como já o havia tirado do Podemos. Como senador, vê aumentarem dia após dia as chances de sua poltrona acomodar novas nádegas. E como desgraça pouca é bobagem, o mesmo pode acontecer com a mulher, Rosângela, que enfrentou diversos obstáculos para se eleger deputada federal.
 
Voltando as acusações feitas pelo mix de empresário, estelionatário e ex-deputado Tony Garcia, o pedido de abertura de inquérito partiu da PGR e a autorização foi dada prontamente pelo nobre ministro Dias Toffoli, responsável pelo plantão do STF durante este recesso. 

Observação: Lula presenteou Toffoli com a suprema toga em 2009 em retribuição aos bons serviços prestados como advogado do Sindicato dos Metalúrgicos, consultor jurídico da CUT, assessor jurídico do PT e de José Dirceu e advogado-geral da União. Segundo a CF, indicados para o STF devem ter reputação ilibada e notório saber jurídico; para Lula, o fato de o apadrinhado ter bombado não uma, mas duas vezes em concursos para juiz de primeira instância fizeram tanta diferença quanto o currículo anabolizado de Nunes Marques, o desembargador piauiense cujos ombros Bolsonaro cobriu com a suprema toga porque "tomaram muita tubaína juntos".

Questionado pela imprensa sobre o inquérito, Moro ressaltou que: 1) Garcia foi condenado por estelionato em decisão transitada em julgado; 2) o acordo de delação envolveu a devolução de valores roubados do Consórcio Garibaldi; 3) as escutas ambientais foram autorizadas judicialmente e acompanhadas pela PF e pelo MPF; 4) a jurisprudência da época (2004) não obrigava o juiz a remeter processos para tribunais superior em casos de mera menção de autoridades com foro privilegiado; 5) gravações de conversas, quando de conhecimento de um dos interlocutores, dispensava autorização judicial; 6) se houve crime (coisa que ele nega), a punição estaria prescrita.
 
Moro desagradou a gregos e troianos. Sua imagem de herói nacional — que ajudou o mau militar e parlamentar medíocre a se passar por inimigo da corrupção e obter o apoio da classe média — se esvaneceu aos olhos dos bolsomínions quando ele abandou o barco atirando contra o capitão. Para a patuleia ignara, o ex-ministro continuou sendo "o algoz de Lula" e o "perseguidor da petralhada". 

Após a aprovação de Flávio Dino no Senado, Moro trocou mensagens com uma pessoa próxima — apelidada de "Mestrão" — que o alertou para não revelar seu voto (favorável ou contrário à indicação). A notícia pegou mal nas redes sociais (aliás, conversas vazadas sempre foram um problema para ele, vide a série de denúncias da Vaza Jato no The Intercept Brasil). 

Na noite seguinte, o Ministério Público se manifestou pela cassação do mandato de Moro por "abuso de poder econômico" na pré-campanha à Presidência. Detalhe: o processo eleitoral que ensejou esse furdunço foi movido pelas campanhas do PT e do PL. 
 
Observação: Em 2017, o então presidente do TSE Gilmar Mendes articulou uma impostura travestida de julgamento da chapa Dilma-Temer e o deu o voto que livrou a pele do vampiro do Jaburu 
— por "excesso de provas", como ironizou o ministro Herman Benjamim, relator do imbróglio. Mas os tempos eram outros, e outros eram os interesses dos envolvidos e os protagonistas da patética tragicomédia.

Moro tornou-se refém do personagem que criou na Lava-Jato e do político pouco habilidoso que demonstrou. Execrado pela esquerda, abandonado pela extrema-direita (e por boa parte de direita) e antipático aos olhos da alta cúpula do Judiciário, colhe os frutos do que plantou em 2018, quando trocou o certo pelo duvidoso (ou pelo errado, como ele descobriu mais adiante). Agora, vive sob a espada de Dâmocles e pode acabar pendurado — como o amigo Dallagnol — de ponta-cabeça sob manchetes de "CASSADO E COM O PLENÁRIO VAZIO". 

Na Divina Comédia, Dante Alighieri percorre o Inferno e o Purgatório guiado pelo poeta Virgílio, e o Paraíso, pela amada Beatriz. Na política, cada um precisa fazer seu caminho. Moro trocou sua carreira (22 anos) na magistratura pela política e deu com os costados no vestíbulo dos nove círculos do inferno, encimado pelos dizeres: "Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate!Ao contrário de Dante, ele entrou nessa sem guia, sozinho. Enquanto isso, Flávio Dino orbita as esferas do Paraíso até tomar posse no STF.

Atualização: Na última sexta-feira o advogado Rodrigo Gaião anunciou seu desembarque da defesa de Moro — não sem reforçar seu “direito a eventual verba honorária de sucumbência ou êxito, proporcionais ao período de atuação no feito". Mas uma mudança na composição do TRE pode embaralhar o cenário, já que o regimento interno estabelece que as decisões em ações que podem levar à cassação de registro ou à perda de diplomas somente poderão ser tomadas com a presença de todos os membros do tribunal. O mandato de Thiago Paiva dos Santos, representante da classe dos advogados, termina no próximo dia 23 e, quatro dias depois, chega ao fim a participação de José Rodrigo Sade e Roberto Aurichio Junior, dois substitutos da mesma classe. Entre os dias 22 (reinício dos trabalhos) e 27 (saída dos substitutos da classe de advogados) há duas sessões presenciais e três virtuais previstas, mas o caso contra Moro não consta da pauta (ao menos por enquanto). Seja qual for o resultado do julgamento, a parte derrotada acionará o TSE para reverter a decisão.


Hoje é dia de São Sebastião e aniversário do Rio de Janeiro. Okê Arô, Oxóssi!