sexta-feira, 5 de abril de 2024

NA GUILHOTINA, MORO ESTREITA INIMIZADE COM GILMAR

 

Nomeado ministro da Saúde após a demissão de Luís Mandetta, Nelson Teich pediu o boné a dois dias de completar um mês no cargo. Na coletiva de imprensa que convocou para informar o desembarque, ele ensinou que "a vida é feita de escolhas". Faltou dizer que escolhas têm consequências, que as consequências sempre vêm depois, e que a terra plana não dá voltas, capota. 

Sergio Moro não teria capotado se continuasse engolindo sapos e sorvendo a água suja da lagoa palaciana como fez durante 1 ano e 4 meses, mas reunião interministerial de 22 de abril de 2020 foi a gota que entupiu o canudinho. Ao atribuir o desembarque às constantes ingerências de Bolsonaro na PF, ele iniciou um périplo pelos nove círculos do inferno que não sabe se, como e quando terminará.
 
Como juiz federal, Moro enquadrou poderosos em processos de grande repercussão, como o escândalo do Banestado, a Operação Farol da Colina e a Operação Fênix. No auge da finada Lava-Jato, condenou figuras do alto escalão da política e do empresariado tupiniquim, como LulaJosé DirceuSérgio Cabral e Marcel Odebrecht. No governo, foi traído por Bolsonaro. Como aspirante à Presidência, filiou-se ao Podemos, migrou para o União Brasil e foi sabotado por Luciano Bivar. Candidatou-se a deputado por São Paulo e se elegeu senador pelo Paraná. Dos 8 projetos que apresentou, nenhum foi aprovado. 
 
Moro se tornou refém da imagem de herói nacional que cultivou e do político pouco habilidoso que se tornou. Quando juiz, jurou que jamais entraria para a política; ministro, simulou desinteresse pelo Planalto; pré-candidato à Presidência, prometeu levar a campanha até o final; candidato a deputado por um partido, elegeu-se senador por outro; e
xecrado pela esquerda, abandonado pela extrema-direita (e por boa parte de direita) e antipático aos olhos da alta cúpula do Judiciário, passou a colher os frutos do que plantou ao trocar o certo pelo duvidoso (ou pelo errado, como descobriu mais adiante).
 
Moro colecionou muitos inimigos, mas ninguém investiu tanto contra sua reputação quanto ele ao ajudar a incinerar as sentenças que lhe deram fama e a carbonizar as multas de corruptores confessos no forno do Supremo. Na Divina ComédiaDante Alighieri percorre o Inferno e o Purgatório guiado pelo poeta Virgílio e o Paraíso, por sua amada Beatriz. Na política, cada um precisa fazer seu caminho; Moro entrou nessa sem guia, e terá de sair sozinho.
 
PL e PT se uniram em busca da cassação de seu mandato. Como as ações foram movidas contra a chapa, eventual condenação se estenderá aos suplentes, levando os eleitores paranaenses de volta às urnas para escolher outro senador, Entre os urubus que sobrevoam a carniça, destacam-se a ex-primeira-dama e atual presidente do PL Mulher, Michelle Bolsonaro, e os deputados petistas Zeca Dirceu e Gleisi Hoffmann. 
 
A acusação de abuso do poder econômico é sólida, já que os gastos na pré-campanha presidencial estão documentados, mas irônica, pois a "superexposição" que garantiu a eleição para o Senado não foi obtida nos poucos meses de campanha, mas a longo de quatro anos e fumaça na vitrine da Lava-Jato. 

Na última segunda-feira, depois que o relator das ações no TRE-PR votou contra a cassação, um pedido de vista suspendeu o julgamento. Na quarta, quando o placar estava em 1 a 1, outro pedido de vista adiou para a próxima segunda a coleta dos 5 votos restantes. Independentemente do resultado, o veredito final será proferido em Brasília, já que a parte derrotada recorrerá da decisão da Justiça no TSE e no STF.
 
Como desgraça pouca é bobagem, o
 corregedor do Conselho Nacional de Justiça liberou para votação o relatório que aponta "gestão caótica" de verbas resultantes de acordos firmados com empresas pelo MPF e homologados pelo então juiz da Lava-Jato. Ainda não há uma data definida para a sessão, mas o imbróglio pode resultar num procedimento cuja palavra final será dada pelo STF, onde o prestígio do ainda senador não é dos melhores. 
 
Com a corda no pescoço e os pés no cadafalso, o ministro que engolia batráquios virou o senador que engole elefantes, e seu desejo de salvar o país da corrupção, ânsia de livrar a si mesmo da cassação. A perspectiva de um processo criminal levou-o a pedir (e obter) uma audiência com o ministro Gilmar Mendes (que passou de defensor do combate à corrupção a crítico ferrenho da Lava-Jato no Paraná e desafeto figadal do ex-magistrado)
 
Observação: Até as pedras sabem o que os dois pensam um do outro. No ano passado, Moro foi filmado numa festa junina falando em "comprar um habeas corpus do Gilmar Mendes", ao que o ministro reagiu: "Quem tem que fazer explicações sobre venda de decisões é ele". 
 
Segundo a coluna de Igor Gadelha, o encontro humilhante se deu no gabinete de Gilmar, foi intermediado pelo senador Wellington Fagundes e durou 90 minutos. Quando Moro tentou se desvincular do ex-coordenador da Lava-Jato e deputado cassado Deltan Dallagnol, ouviu do ministro: "Você e Dallagnol roubavam galinha juntos. Tudo que a Vaza-Jato revelou, eu já sabia. Vocês combinavam o que estaria nas peças. Não venha dizer que não".
 
No século 19, certas diferenças só podiam ser lavadas com sangue num duelo. Hoje, a hemorragia de Moro escorre sobre as cinzas da Lava-Jato. Quem consegue avistar uma saída honrosa na mais degradante desonra pode achar alvissareira a tentativa do ex-candidato da antipolítica estreitar sua inimizade com a toga mais política do Supremo, mas o excesso de cinismo reforça a percepção de que a política é mesmo o território da farsa.

Com Josias de Souza