Em agosto de 2018, a 2ª
Turma do STF, com os votos do
trio calafrio (Mendes, Toffoli e Lewandowski), retirou do ex-juiz Sérgio Moro, então responsável pelos processos da Lava-Jato em
Curitiba, trechos de depoimentos de executivos da Odebrecht que se referiam ao ex-presidente Lula, a pretexto de não terem ligação com a Petrobrás.
Em
entrevista à CBN, o procurador Deltan Dallagnol afirmou que os três de sempre do Supremo Tribunal
Federal retiram o que podem das mãos de Moro, dão sempre os habeas corpus e estão sempre se tornando uma panelinha.
Dallagnol fez uma ressalva importante:
“não estou dizendo que estão mal-intencionados, estou dizendo que objetivamente
mandam uma mensagem de leniência”. Mesmo assim, o ministro Dias Toffoli acionou o Conselho Nacional do Ministério Público,
que iniciou uma apuração que se transformou em Processo Administrativo Disciplinar contra o coordenador da
Lava-Jato em Curitiba.
A liberdade de expressão geral do membro do MP é garantida. E quando ele
se pronuncia sobre os processos em que é parte — o que é o caso da entrevista
em tela —, acrescenta-se ainda a inviolabilidade, significando que mesmo certas
manifestações, que em outras circunstâncias poderiam ser consideradas um ilícito,
não o são neste caso. Trata-se de uma ampliação da liberdade; é algo semelhante
ao que ocorre, por exemplo, com deputados federais e senadores, a quem o artigo
53 da Constituição torna “invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de
suas opiniões, palavras e votos.
A inviolabilidade dos membros do MP, ainda que sem a mesma amplitude da que gozam os parlamentares
(cuja imunidade, lembramos, é de natureza constitucional), é necessária, pois é
natural que o integrante do Ministério Público,
como parte nos processos, tenha todo o direito de se manifestar publicamente
sobre tais processos e as decisões judiciais neles tomadas. Claro que a crítica
não pode ser feita de qualquer forma, pois essa liberdade sofre uma modulação
no artigo 43, que lista os deveres dos membros do MP, entre os quais o de “zelar
pelo prestígio da Justiça, por suas prerrogativas e pela dignidade de suas
funções”. Este trecho foi, inclusive, mencionado pelo corregedor Orlando Moreira como tendo sido
desrespeitado por Dallagnol em sua
entrevista, mas seu entendimento implica uma visão muito restritiva da
liberdade de expressão garantida aos membros do MP, pois dá a entender que as críticas a uma decisão judicial, ou
mesmo a um conjunto delas, seriam um ataque pessoal aos ministros ou uma
desmoralização da instituição judicial.
Decisões judiciais são, sim, passíveis de questionamentos da
parte de qualquer cidadão, incluindo autoridades como procuradores da
República. A crítica, quando formulada de maneira objetiva, serve como
ferramenta de fortalecimento da instituição responsável pela decisão criticada.
Se não fosse assim, aos membros do MP só seriam permitidos elogios, o que, convenhamos, nem
exige liberdade de expressão.
Aliás, é bom registrar que, não
raro, os próprios ministros do STF dirigem-se uns aos outros
em termos que, estes sim, extrapolam totalmente qualquer regra de boa convivência — basta lembrar os
famosos bate-bocas entre Luís
Roberto Barroso e Gilmar Mendes,
num
dos quais o primeiro acusa o colega de ser “uma pessoa horrível, uma mistura
do mal com atraso e pitadas de psicopatia”. Todavia, mesmo essas
manifestações são protegidas pelos mesmíssimos mecanismos que garantem o
direito à expressão por parte de Dallagnol.
Na entrevista, o procurador contestou a decisão propriamente
dita, bem como outras da lavra dos mesmos três ministros, sem fazer qualquer
julgamento de caráter, deixar de reconhecer a legitimidade do STF para decidir o que decidiu ou
manifestar a intenção de desobedecer a decisão. Não há como ver nisso desprestígio
ao Poder Judiciário ou comprometimento
da imagem institucional do MP.
Dallagnol tem seu
direito garantido pela inviolabilidade de que trata a Lei Orgânica do MP — e assim
seria ainda que sua crítica fosse infundada, o que não é o caso. Afinal, Mendes e Toffoli, em especial, não têm sido pródigos em conceder habeas
corpus, dentro e fora da Lava-Jato? Em junho deste ano, Toffoli não sacou da cartola um habeas corpus “de ofício” (por
iniciativa própria) a José Dirceu?
O que os votos de Mendes,
Toffoli e Lewandowski têm em comum é sempre a tendência favorável aos réus,
sob uma compreensão chamada “garantista” do processo penal, mesmo quando há
suficientes evidências de crimes de corrupção. Daí a referência à “mensagem
de leniência em favor da corrupção” feita por Dallagnol ser plenamente justificada, especialmente no caso de
remessas de delações à Justiça Eleitoral,
que só pode julgar os crimes de caixa dois, ignorando totalmente o contexto de
corrupção que deu origem ao dinheiro usado ilegalmente nas campanhas, um crime
que ficaria impune.
O que temos aqui é uma crítica objetiva a uma decisão do STF em
um caso no qual a Lava-Jato atua
como parte, crítica
essa protegida pela Constituição
e pela Lei Orgânica do Ministério
Público. Considerar Dallagnol culpado de infração disciplinar, aplicando-lhe uma pena
que tem sérias consequências em sua carreira, é um desserviço ao próprio Ministério Público e ao bem comum. Uma
punição, neste caso, prejudica o MP
porque, com este perigoso precedente aberto, os demais procuradores acabarão se autopoliciando para
evitar processos semelhantes; e prejudica a sociedade, porque a voz do Ministério Público
tem sido a sua defesa contra a corrupção.
Precisamos que ela continue a ressoar, forte e independente.
Observação: O julgamento do processo administrativo
contra Dallagnol, que estava pautado
para a sessão da última terça, 11, foi adiado para o próximo dia 18.
Com informações da Gazeta do Povo.