Enquanto falta dinheiro para comprar giz para as escolas e
gaze para os hospitais — e Bolsonaro sugere espaçar as idas ao
banheiro para economizar papel higiênico —, nossos colossos togados confundem recursos protelatórios e chicanas com o pleno
direito de defesa que assiste aos réus. Como se não bastasse, os doutos decisores decidem em flagrante desacordo com os
interessas da sociedade e, entre uma sessão e outra, banqueteiam-se, a expensas
do Erário, com lagosta na manteiga queimada, bacalhau à Gomes de Sá, frigideira
de siri, moqueca, arroz de pato, carré de cordeiro, medalhões e “tornedores de
filé”. Tudo regado a uísques e vinhos importados e premiados, naturalmente.
Escusado repetir (mais uma vez) por que considero a
atual composição do STF a pior de
toda a história. A quem interessar possa, esta postagem e a subsequente dão
uma boa ideia da suprema agonia, e mais dois textos — igualmente
ilustrativos — as complementam (tome uma dose cavalar de Plasil e clique aqui e aqui degustá-los). Mas não posso me furtar a relembrar que, graças ao folclórico "nós contra eles" de Lula e seu bando, a cizânia dividiu a sociedade e se espalhou como
metástase pela alta cúpula do Judiciário, transformando o Brasil na única democracia
do mundo formada por 13 poderes: o Executivo, o Legislativo e os 11 ministros
supremos, que agem como se cada qual fosse dono da verdade e de seu próprio
tribunal.
A divisão em alas "garantista" e "punitivista"
azedou o relacionamento entre os togados supremos. Como se não bastassem os embates
verbais (para não dizer bate-bocas) entre Gilmar
Mendes e Luís Roberto Barroso, dignos de cortiço de quinta categoria — num deles, Barroso acusou Mendes (e não se razão, mas isso já é outra conversa) de ser “uma pessoa horrível, uma mistura do mal com
atraso e pitadas de psicopatia” —, agora o presidente e o vice-presidente da corte
quase não se falam.
Toffoli integra a
ala "garantista", que defende a impunidade a pretexto de resguardar o
direito dos réus; Fux, a dos
"punitivistas", favorável ao cumprimento antecipado da pena em nome
do combate à impunidade. Segundo matéria publicada na revista Época,
os membros desse grupo são chamados pejorativamente pelos do outro time de
"iluministas". O relacionamento
entre os dois está a tal ponto estremecido que não houve, durante
o último recesso, a tradicional divisão do plantão: o presidente dos togados preferiu ficar ele próprio responsável por todas as
decisões urgentes do período, inclusive aquela em que, a pretexto de proteger Flávio Bolsonaro, sobrestou todos os demais processos baseados
em dados compartilhados pelos órgãos de fiscalização e controle sem autorização
judicial.
Não se espera que um juiz — qualquer juiz — decida visando
agradar a gregos e troianos, mas que julgue em conformidade com a legislação
vigente. Por outro lado, a intenção do legislador nem sempre está expressa de
forma clara e na letra fria da lei, daí os magistrados se valerem da
"hermenêutica" — termo que
o jargão jurídico emprestou do religioso para definir a interpretação dos textos legais à luz do "espírito" da
lei, ou seja, visando inferir o alcance das intenções do legislador.
Interpretar a lei não significa legislar, como deveriam saber os togados supremos — e muitos de seus pupilos nas instâncias inferiores — que parecem achar que, se limites existem, é para que sejam ultrapassados. Agem como se dirigissem em alta velocidade, imbuídos da certeza de que nenhum policial rodoviário se atreveria a multá-los; afinal, eles são supremos, inatingíveis, incontestáveis, irretorquíveis e incriticáveis.
Quiseram os constituintes de 1988 que coubesse ao supremo o direito de errar por último, e à plebe ignara, que paga os altos salários e banca suas escandalosas mordomias dos decisores, o papel de ovelha de presépio.
Interpretar a lei não significa legislar, como deveriam saber os togados supremos — e muitos de seus pupilos nas instâncias inferiores — que parecem achar que, se limites existem, é para que sejam ultrapassados. Agem como se dirigissem em alta velocidade, imbuídos da certeza de que nenhum policial rodoviário se atreveria a multá-los; afinal, eles são supremos, inatingíveis, incontestáveis, irretorquíveis e incriticáveis.
Quiseram os constituintes de 1988 que coubesse ao supremo o direito de errar por último, e à plebe ignara, que paga os altos salários e banca suas escandalosas mordomias dos decisores, o papel de ovelha de presépio.
Como quase tudo mais neste mundo, a política funciona como
uma via de mão dupla. Em junho, um pacto
institucional celebrado entre os chefes dos Poderes impediu a queda do castelo de cartas tupiniquim. Bolsonaro correu risco real de ser apeado da Presidência, do que se pode inferir que nem todas as conspirações palacianas
são fruto da paranoia e da imaginação fértil do capitão e seus pimpolhos.
Observação: Em entrevista a VEJA, o ministro Dias
Toffoli confirmou que o Brasil esteve à beira de uma crise institucional
entre os meses de abril e maio, e disse que sua atuação foi fundamental para
pôr panos quentes numa insatisfação que se avolumava. A combinação explosiva
envolvia setores político e empresarial e militares próximos a Bolsonaro. No Congresso, a reforma da Previdência não
avançava, e o Executivo acusava os deputados de querer trocar votos por cargos
e verbas públicas. O impasse aumentou quando um grupo de parlamentares resolveu
desengavetar um projeto que previa a implantação do parlamentarismo — se aprovado, Bolsonaro se tornaria uma figura decorativa, um presidente sem
poder (ou um "banana", nas palavras do próprio presidente).
Mas não existe almoço grátis: o pacto conteve a insurreição, mas tornou nosso indômito presidente refém da nova agenda política, cujo objetivo é travar a Lava-Jato e seus desdobramentos. Mutatis mutandis, o mesmo se deu quando Temer comprou o apoio das
marafonas do Câmara para se escudar das "flechadas" do ex-PGR Rodrigo Janot. Por uma via, o
vampiro do Jaburu se segurou no palácio; por outra, tornou-se um presidente
"pato-manco" — ou "lame duck", que é como os
americanos se referem a políticos terminam o mandato tão desgastados que os
garçons palacianos demonstram seu desprezo servindo-lhes o café frio. E foi parar na cadeia poucos meses depois de descer a rampa do Planalto.
É, a vida tem dessas coisas.
É, a vida tem dessas coisas.