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segunda-feira, 16 de setembro de 2019

CRISE? QUE CRISE?



Enquanto falta dinheiro para comprar giz para as escolas e gaze para os hospitais — e Bolsonaro sugere espaçar as idas ao banheiro para economizar papel higiênico —, nossos colossos togados confundem recursos protelatórios e chicanas com o pleno direito de defesa que assiste aos réus. Como se não bastasse, os doutos decisores decidem em flagrante desacordo com os interessas da sociedade e, entre uma sessão e outra, banqueteiam-se, a expensas do Erário, com lagosta na manteiga queimada, bacalhau à Gomes de Sá, frigideira de siri, moqueca, arroz de pato, carré de cordeiro, medalhões e “tornedores de filé”. Tudo regado a uísques e vinhos importados e premiados, naturalmente.

Escusado repetir (mais uma vez) por que considero a atual composição do STF a pior de toda a história. A quem interessar possa, esta postagem e a subsequente dão uma boa ideia da suprema agonia, e mais dois textos — igualmente ilustrativos — as complementam (tome uma dose cavalar de Plasil e clique aqui e aqui degustá-los). Mas não posso me furtar a relembrar que, graças ao folclórico "nós contra eles" de Lula e seu bando, a cizânia dividiu a sociedade e se espalhou como metástase pela alta cúpula do Judiciário, transformando o Brasil na única democracia do mundo formada por 13 poderes: o Executivo, o Legislativo e os 11 ministros supremos, que agem como se cada qual fosse dono da verdade e de seu próprio tribunal.

A divisão em alas "garantista" e "punitivista" azedou o relacionamento entre os togados supremos. Como se não bastassem os embates verbais (para não dizer bate-bocas) entre Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, dignos de cortiço de quinta categoria — num deles, Barroso acusou Mendes (e não se razão, mas isso já é outra conversa) de ser “uma pessoa horrível, uma mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia” —, agora o presidente e o vice-presidente da corte quase não se falam.

Toffoli integra a ala "garantista", que defende a impunidade a pretexto de resguardar o direito dos réus; Fux, a dos "punitivistas", favorável ao cumprimento antecipado da pena em nome do combate à impunidade. Segundo matéria publicada na revista Época, os membros desse grupo são chamados pejorativamente pelos do outro time de "iluministas". O relacionamento entre os dois está a tal ponto estremecido que não houve, durante o último recesso, a tradicional divisão do plantão: o presidente dos togados preferiu ficar ele próprio responsável por todas as decisões urgentes do período, inclusive aquela em que, a pretexto de proteger Flávio Bolsonaro, sobrestou todos os demais processos baseados em dados compartilhados pelos órgãos de fiscalização e controle sem autorização judicial.

Não se espera que um juiz — qualquer juiz — decida visando agradar a gregos e troianos, mas que julgue em conformidade com a legislação vigente. Por outro lado, a intenção do legislador nem sempre está expressa de forma clara e na letra fria da lei, daí os magistrados se valerem da "hermenêutica" termo que o jargão jurídico emprestou do religioso para definir a interpretação dos textos legais à luz do "espírito" da lei, ou seja, visando inferir o alcance das intenções do legislador.

Interpretar a lei não significa legislar, como deveriam saber os togados supremos — e muitos de seus pupilos nas instâncias inferiores — que parecem achar que, se limites existem, é para que sejam ultrapassados. Agem como se dirigissem em alta velocidade, imbuídos da certeza de que nenhum policial rodoviário se atreveria a multá-los; afinal, eles são supremos, inatingíveis, incontestáveis, irretorquíveis e incriticáveis.

Quiseram os constituintes de 1988 que coubesse ao supremo o direito de errar por último, e à plebe ignara, que paga os altos salários e banca suas escandalosas mordomias dos decisores, o papel de ovelha de presépio.

Como quase tudo mais neste mundo, a política funciona como uma via de mão dupla. Em junho, um pacto institucional celebrado entre os chefes dos Poderes impediu a queda do castelo de cartas tupiniquim. Bolsonaro correu risco real de ser apeado da Presidência, do que se pode inferir que nem todas as conspirações palacianas são fruto da paranoia e da imaginação fértil do capitão e seus pimpolhos.

Observação: Em entrevista a VEJA, o ministro Dias Toffoli confirmou que o Brasil esteve à beira de uma crise institucional entre os meses de abril e maio, e disse que sua atuação foi fundamental para pôr panos quentes numa insatisfação que se avolumava. A combinação explosiva envolvia setores político e empresarial e militares próximos a Bolsonaro. No Congresso, a reforma da Previdência não avançava, e o Executivo acusava os deputados de querer trocar votos por cargos e verbas públicas. O impasse aumentou quando um grupo de parlamentares resolveu desengavetar um projeto que previa a implantação do parlamentarismo — se aprovado, Bolsonaro se tornaria uma figura decorativa, um presidente sem poder (ou um "banana", nas palavras do próprio presidente).

Mas não existe almoço grátis: o pacto conteve a insurreição, mas tornou nosso indômito presidente refém da nova agenda política, cujo objetivo é travar a Lava-Jato e seus desdobramentos. Mutatis mutandis, o mesmo se deu quando Temer comprou o apoio das marafonas do Câmara para se escudar das "flechadas" do ex-PGR Rodrigo Janot. Por uma via, o vampiro do Jaburu se segurou no palácio; por outra, tornou-se um presidente "pato-manco" — ou "lame duck", que é como os americanos se referem a políticos terminam o mandato tão desgastados que os garçons palacianos demonstram seu desprezo servindo-lhes o café frio. E foi parar na cadeia poucos meses depois de descer a rampa do Planalto.

É, a vida tem dessas coisas.

domingo, 9 de dezembro de 2018

O BRASIL E A SUPREMA ESCULHAMBAÇÃO


Às vésperas do primeiro turno das eleições, o ministro-cumpanhêro Ricardo Lewandowski — que dias atrás mandou a PF deter um passageiro que o afrontou durante um voo para Brasília — autorizou a colunista mais petista da Folha a entrevistar o presidiário Lula em sua cela na Superintendência da Polícia Federal. O ministro Luiz Fux suspendeu a autorização, mas Lewandowski a reiterou e, de quebra, criticou o vice-presidente do Supremo: "A decisão proferida pelo ministro Luiz Fux [...] não possui forma ou figura jurídica admissível no Direito vigente, cumprindo-se salientar que o seu conteúdo é absolutamente inapto a produzir qualquer efeito no ordenamento legal”. O imbróglio foi parar na presidência da Corte, que manteve a suspensão da entrevista até posterior deliberação. Na semana passada, Lewandowski voltou à carga, e Fux, de novo, bateu o pé, sustentando que a competência de autorizar ou não a entrevista é da juíza Carolina Moura Lebbos, da 12ª Vara Federal do Paraná. Pelo visto, a colunista vermelha terá de conter seu furor uterino por mais algum tempo.

Voltando ao incidente ocorrido no último dia 4, a vestal ofendida, em entrevista à mesmíssima colunista vermelha que quer entrevistar o criminoso de Garanhuns, afirmou ter reagido à crítica porque era uma afronta à Corte, e que se sentiu na obrigação de defender seus pares, pois “a ofensa às instituições é um perigo para o Estado Democrático de Direito”. 

Fato é que o Supremo vem dando motivos para críticas desde que os brasileiros passaram a conhecer seus membros “mais de perto”, durante o impeachment da anta vermelha (embora eu não descarte a possibilidade de o tribunal envergonhar a nação desde sua criação, 470 dias depois da proclamação da República). O Movimento Brasil Livre (MBL), que no último dia 6 projetou mensagem "O STF é uma vergonha" na fachada do prédio, elenca uma dezena de motivos que levariam os brasileiros de bem a concordar com o passageiro insurgente — que, “by the way”, é filho da subprocuradora-geral da República aposentada Helenita Amélia Gonçalves Caiado de Acioli. Até porque a nossa mais alta corte é a “guardiã da Constituição”, conforme dispõe o artigo 102 da própria Carta Magna, só que...

Lewandowski rasgou a Constituição, durante o julgamento do impeachment de Dilma, ao se mancomunar com Renan Calheiros para fatiar a votação. Segundo nossa Lei Maior, o presidente da República deposto por impeachment não só perde o cargo como também tem seus direitos políticos suspensos por 8 anos. Realizar a votação em duas etapas, como se deposição e inabilitação política fossem duas penas separadas, foi mais uma “jabuticaba jurídica” da lavra de nossa mais alta corte (detalhes na minha postagem de 31/08/2016). Aliás, 4 meses depois o STF pariu outra “pérola” ao apear o senador Renan Calheiros da presidência do Congresso sem cassar seu mandato parlamentar — uma decisão meia-boca que serviu para remover o cangaceiro das Alagoas da linha sucessória presidencial depois que ele se tornou réu por peculato.  

STF derrubou voto impresso, que havia sido aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, a quem legislar sobre o tema. O ministro Luiz Fux garantiu o auxílio-moradia para os juízes federais, independentemente de eles residirem em imóvel próprio, causando um rombo anual bilionário a ser coberto pelos contribuintes — o benefício compensaria a falta de reajuste salarial dos magistrados, cujo teto era de R$ 33 mil e, com o auxílio, chegava de R$ 37 mil. No mês passado, os ministros supremos se autoconcederam um reajuste de 16%, que foi aprovado a toque de caixa pelo Senado e sancionado pelo pato-manco em fim de mandato. A título de “compensação”, Fux cortou o auxílio-moradia, que custava cerca de R$ 2 bi por ano, mas os efeitos-cascata do reajuste podem aumentar em até R$ 6 bi o rombo nas contas públicas.

A pretexto da plausibilidade dos recursos contra a condenação de José Dirceu a mais de 30 anos de reclusão, o STF decidiu permitir que o mensaleiro-petroleiro aguarde em liberdade a decisão das instâncias superiores. E fez o mesmo com o ex-deputado ladrão Paulo Maluf, condenado a 7 anos, 9 meses e 10 dias de prisão por desvio e ocultação de dinheiro num processo que se arrastou por décadas. Embora a decisão tenha transitado em julgado — ou seja, não existe mais possibilidade de recurso —, o turco lalau foi agraciado com um habeas corpus de ofício, supostamente por “motivos humanitários”. Na visão do ministro Dias Toffoli, o criminoso estaria à beira do desencarne, mas ainda não morreu — Maluf passa muito bem, obrigado, em sua luxuosa mansão nos Jardins (bairro nobre da capital paulista).

Devido à malemolência dos ministros supremos, um terço das ações contra políticos com prerrogativa de foro prescreve antes da decisão final. Para quem não está familiarizado com o jargão jurídico, o termo prescrição designa a perda de uma pretensão pelo decurso do tempo, como é o caso da perda da pretensão punitiva estatal em razão do decurso do lapso temporal previsto em lei. Criminalistas chicaneiros são useiros e vezeiros em retardar o andamento processual mediante a interposição de recursos e embargos meramente protelatórios, já que, uma vez operada a prescrição, seus clientes, ainda que reconhecidamente culpados, escaparão da punição. E como se não bastasse, apenas 1% dos réus com foro privilegiado são condenados no Supremo (volto a esse assunto numa próxima postagem).

Com ou sem motivos para termos vergonha do STF, assiste-nos o direito à liberdade de expressão. Mandar prender e investigar cidadãos que expressão sua opinião é uma forma de censura e, portanto, mais um motivo para termos vergonha do Supremo.