O presidente Jair
Bolsonaro “não é nenhum santo”, como não o era o rei Dom Pedro, o Cru e Justiceiro, entre outros epítetos, mas por que
comparar mandatários tão distantes um do outro, embora lusófonos, à moda
das Vidas Paralelas, obra
de Plutarco que compara célebres
personalidades da Roma e da Grécia antigas? Para recomendar uma terceira
leitura, bem curtinha e preciosa, de um autor português falecido há apenas
quatro anos, lida e trabalhada em escolas de qualidade.
Aqueles que deram indulgências plenárias a diversos
políticos, pegos em tempos recentes com a boca na botija, são os mesmos que
tratam com extraordinário rigor o atual Presidente, assim como são mais
delicados ao falar de bandidos e mais rudes quando comentam o comportamento
esperado ou mesmo deslizes de autoridades que os combatem. Ora, uns já foram
condenados. Outros nem réus são ainda!
O presidente Bolsonaro
parece empenhado em dar razão a quem o marca tão duramente, pois na semana
passada incorreu de novo em “emenda pior do que o soneto” — outra frase famosa
para evitar explicações — nos tropeços sobre a palavra “paraíba”, utilizada
popularmente no Rio para designar o migrante nordestino, equivalente a “baiano”
em São Paulo. A uns e outros o Brasil inteiro deve muito!
Diz o brocardo que “temos duas orelhas e uma boca para ouvir
o dobro e falar a metade”. Depois de proferidas as inconveniências, “Inês
é morta” e “se não tem remédio, remediado está”.
Há vários políticos brasileiros conhecidos por seus
destemperos, sobretudo verbais, mas o atual Presidente lembra o soberano
português que mandou retirar do túmulo o cadáver da amada, “aquela que depois
de morta foi rainha”, para a cerimônia do beija-mão, de vila em vila.
Ora, “Inês é morta” também para o Presidente. A eleição já
passou, ele é o novo Presidente. Todavia parece ainda muito preocupado com os
vencidos e de resto talvez dê atenção exagerada a assuntos que deveriam estar
“mortos e enterrados”, como diz outra expressão da rica fraseologia do
português para designar coisas sobre as quais nada se pode fazer.
Seu humor, por vezes cruel e desjeitoso, lembra o
conto Teorema, do escritor
português Herberto Hélder, mais
conhecido como poeta, falecido em 2015, aos 84 anos.
Em trecho do conto, quando da execução dos carrascos de sua
amada, o soberano ordena: “Preparem-me esse Coelho, que tenho fome”. “O rei brinca com o meu nome”, diz um dos
“brutos matadores” de Inês, “aquela
que depois de morta foi rainha”, amante do soberano justiceiro, executada por
ordens do sogro. O narrador da história é o supliciado, de quem arrancam o
coração pelas costas e o servem ao rei numa bandeja de prata.
Eram três os algozes, os três conseguiram escapar, mas dois
foram extraditados de Castela, o reino vizinho, e foram executados em praça
pública lotada.
Tomado de vingança, em ato horroroso, presidido pelo
soberano, foram mortos Pêro Coelho e
Álvaro Gonçalves, que teve o coração
retirado pelo peito. Como se misturaram lenda, história e literatura, consta
que o carrasco tentou demover o rei do modus
operandi proposto, gestos sanguinolentos por serem de quase impossível
execução. Mas foram mortos como o rei ordenou.
Diogo Lopes Pacheco,
o terceiro algoz, continuava na França, que não o extraditara, e foi perdoado
por Sua Alteza, já então no leito régio de morte. Ou talvez o indulto seja
lenda e o perdão tenha sido dado por seu sucessor.
O carrasco viveu até aos 88 anos. O rei cruel, filho do rei
benigno, morreu aos 47. Uma curiosidade adicional: Dom Pedro, o Cru, era neto de Santa
Isabel de Aragão, esposa de Dom Dinis, o primeiro rei de Portugal.
Nem sempre o Bem vence o Mal, inicialmente. É por isso que é
indispensável ser persistente nas boas ações, não nas más. Ou, para terminar a
crônica, mais uma frase emblemática: “fazer o bem sem olhar a quem”. E quanto
aos poderosos do dia, o conselho de Luís
de Camões, que tratou de Inês de
Castro em Os Lusíadas: “Queria perdoar-lhe o Rei benigno,/ Movido
das palavras que o magoam;/ Mas o pertinaz povo, e seu destino/ Que desta sorte
o quis, lhe não perdoam”. Logo no episódio seguinte, Camões dirá
do sucessor de Dom Pedro, o
Cru: “um fraco Rei faz fraca a forte gente”.
Por Deonísio da Silva — Diretor do
Instituto da Palavra & Professor Titular Visitante da Universidade Estácio
de Sá.