Mostrando postagens com marcador Motor a combustão. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Motor a combustão. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 29 de outubro de 2019

MAIS SOBRE MOTORES MULTIVÁLVULA, COMANDOS VARIÁVEIS E QUE TAIS


NÃO SEJA DERROTISTA. FAÇA COMO OS BOLETOS. UM BOLETO SEMPRE VENCE.

Já vimos que o cabeçote passou de mera "tampa" a "sistema respiratório" dos motores aspirados, nos quais as válvulas e o respectivo eixo-comando controlam o ingresso da mistura ar-combustível nos cilindros — o que, em última análise, gera o torque e a potência que faz o veículo se mover. Todavia, devido às limitações físicas desses componentes os projetistas se têm valido da sobrealimentação para aumentar o desempenho dos propulsores sem recorrer a blocos grandes, com 6, 8 ou mais cilindros. A lógica é simples: forçando a entrada de mais mistura nos cilindros, aumenta-se o poder calorífico da combustão e se obtém mais energia mecânica. E é sobre isso que falarei mais adiante. Antes, porém, cabem mais algumas considerações.

Qualquer alteração no projeto de um veículo — da simples troca das rodas e pneus por outros de dimensões diferentes das originais ao envenenamento do motor para extrair até a última gota de desempenho — deve levar em conta o que, exatamente, se espera obter com a modificação. No caso específico do desempenho, a solução para quem quer transformar um carro de passeio num recordista em arrancadas, por exemplo, é diferente da que o tornaria um devorador de estradas, embora ambas comecem pela avaliação criteriosa de parâmetros como o diâmetro e o curso dos pistões (que determinam o deslocamento volumétrico do propulsor e, em última análise, sua capacidade de produzir energia), o tamanho das válvulas, as faixas de rotação máximas (atual e pretendida), a relação de compressão, e por aí vai.  

Em teoria, nos motores de ciclo Otto a válvula de admissão abre a 0° e fecha a 180°, e a de escapamento a 540° e 720°, respectivamente. Esses ângulos têm a ver com o movimento rotacional do virabrequim e são medidos com base no primeiro cilindro. Mas tanto as válvulas quanto os componentes responsáveis por sua movimentação possuem massa considerável e podem sofrer danos se forem submetidos a uma aceleração instantânea, daí o comando iniciar a abertura da válvula mais cedo e ter uma menor aceleração, evitando a ocorrência de um fenômeno conhecido como "flutuação".

Igualmente importante é a relação entre as áreas da válvula e do cilindro: se ela for pequena, haverá maior resistência ao enchimento dos cilindros nas faixas mais altas de rotação do motor, razão pela qual a duração dos lobes — ou cames, como são chamados os ressaltos excêntricos que convertem o movimento rotativo do eixo-comando em alternativo para as válvulas — deve ser maior que os respectivos tempos de admissão e escape. Trocando em miúdos, quanto maior a duração do came, maior a eficiência do motor e os picos de torque e potência em regimes de rotação elevados. 

Por outro lado, veículos preparados para provas de arrancada, por exemplo, tendem a apresentar uma reversão de fluxo na admissão que pode comprometer sua dirigibilidade em baixas rotações. Assim, motores que equipam carros "de passeio" utilizam comandos de válvulas com pequenos valores de duração, já que o anda-e-para do trânsito, o rodar em baixas velocidades e as constantes retomadas demandam uma curva de torque mais "plana" — isto é, com força abundante em baixas rotações, mas disponível também nos demais regimes de giro (para saber mais, releia esta postagem).

Dos quatro os eventos associados às válvulas — IVO, que é quando a válvula de admissão abre, IVC, que é quando ela fecha, EVO, que é quando a válvula de escape abre, e EVC, que é quando ela fecha —, o mais importante é o IVC, que determina como a pressão de enchimento do cilindro ocorre e, consequentemente, o momento em que se dá o pico de torque. Um IVC prematuro aumenta o torque em baixas rotações, mas limita o tempo de enchimento do cilindro, reduzindo a potência nos regimes mais altos. Já um IVC tardio gera mais potência em rotações elevadas, mas o maior tempo de “válvula aberta" propicia  a reversão do fluxo quando o pistão inicia seu movimento ascendente, prejudicando o enchimento do cilindro em baixas rotações.

O segundo colocado em importância é o EVO. Se ocorrer cedo demais, ele limita a quantidade de trabalho realizado pelo pistão (e consequentemente o torque), pois a válvula abre ainda durante a expansão dos gases. Em contrapartida, devido ao maior tempo disponível para a exaustão essa configuração produz mais potência em altas rotações, daí os comandos voltados para o alto desempenho possuírem EVO bastante prematuro.

Observação: Avançar ou atrasar o comando de válvulas consiste em modificar a posição desse eixo em relação ao seu sincronismo original. Se ele for girado para frente no sentido de rotação do motor, dizemos que ele está sendo adiantado (obviamente, se ele for girado no sentido contrário, dizemos que ele está sendo atrasado). Esse ajuste tem por objetivo alterar o momento de ocorrência dos eventos: avançando o comando, obtemos ganhos nos regimes mais baixos; retardando, obtemos o efeito contrário (note que isso funciona como uma gangorra: quando uma extremidade se eleva, a outra desce).

Ir além deste ponto poderia desestimular um leitor menos iniciado a continuar acompanhando esta sequência, pois interessa-lhe mais ter elementos que o ajudem a decidir se compra um carro com motor convencional ou multiválvula, aspirado ou sobrealimentado — e, neste caso, se opta por um turbocompressor ou por um supercharger. É isso que discutiremos nas próximas postagens, depois que eu dedicar mais algumas linhas ao comando de válvulas variável, que até agora só foi mencionado de passagem.  

terça-feira, 17 de setembro de 2019

SUTILEZAS DO MOTOR DE CICLO OTTO — CURSO DO PISTÃO, BIELA E TAXA DE COMPRESSÃO


NÃO SAQUE A ARMA SE NÃO FOR ATIRAR. SE ATIRAR, ATIRE PARA MATAR. MORTOS NÃO VOLTAM PARA SE VINGAR.

Os componentes de um motor de combustão interna moderno são basicamente os mesmos que eram usados em meados do século passado. O ciclo Otto, patenteado em 1877, não só continua presente nos propulsores atuais como ainda é o mais utilizado em veículos de passeio (motores de ciclo Diesel são comuns na Europa, mas não no Brasil, onde o preço do óleo é subsidiado e, portanto, essa opção é restrita a caminhões, ônibus e outros utilitários).

O fato de nos mantermos fiéis a uma tecnologia dos tempos de antanho não significa a evolução tecnológica não cumpriu seu papel, mas apenas que os princípios básicos continuam valendo, já que o funcionamento do motor pode ser descrito como a transformação da energia química do combustível na energia mecânica resultante da compressão e queima da mistura ar-combustível, no interior da câmara de explosão, mediante a movimentação dos pistões. Para gerar torque e potência (volto a esses conceitos oportunamente), os pistões dos motores de ciclo Otto realizam quatro fases a cada volta completa do virabrequim (também chamado de eixo de manivelas).

Já vimos que os cilindros — que podem ser em número de 3, 4, 5, 6, 8, 10 e até 12 — ficam no bloco do motor, e que, no interior de cada um deles, um pistão, ligado ao virabrequim pela respectiva biela, percorre seu curso milhares de vezes por minuto, alternando movimentos ascendentes e descendentes. Por curso, entenda-se a distância que o êmbolo percorre do ponto morto superior até o ponto morto inferior (ou vice-versa). O PMS corresponde à posição mais próxima do cabeçote que o êmbolo alcança, e o PMI, à mais distante. Ao longo das quatro fases (ou quatro tempos) do ciclo Otto, o pistão percorre 4 vezes a distância entre esses dois pontos. 

A taxa de compressão de um motor à combustão corresponde ao número de vezes que a mistura ar-combustível é comprimida. Esse parâmetro depende diretamente do curso do pistão: quanto mais longo ele for, mais vezes a mistura será comprimida no interior da câmara de combustão, que é espaço entre remanescente entre cabeça do pistão, quando este alcança o ponto morto superior (PMS) do curso, e a base do cabeçote — mais exatamente o rebaixo circular, com diâmetro correspondente ao do cilindro, onde ficam as válvulas de admissão e de escapamento.

curso do pistão depende diretamente do tamanho da biela (vide figura), que é o componente responsável por transformar o movimento de sobe e desce do êmbolo (retilíneo, portanto) no movimento circular contínuo do volante do motor (disco metálico que fica na extremidade posterior do virabrequim). Explicando de outra maneira: cabe à biela transmitir a força gerada na câmara de combustão (recebida pelo pistão) para a árvore de manivelas (ou virabrequim), cuja função é gerar e enviar (através do volante) torque, força e rotação ao sistema de transmissão.

A parte superior da biela, chamada de , é presa ao pistão por meio de um pino. Isso permite que a peça oscile lateralmente enquanto se move para cima e para baixo. A parte inferior, chamada de cabeça, é presa ao virabrequim, que transforma em rotação o movimento retilíneo do pistão. Como a biela é um componente "físico", a compressão é sempre a mesma, independentemente do regime do regime de giros do motor (RPM), do combustível utilizado e das exigências do veículo em cada situação específica. Daí os engenheiros terem de adequar, em nível de projeto, a taxa de compressão do propulsor ao combustível que será utilizado, levando em conta o desempenho que se pretende extrair do mecanismo.

Nos modelos à gasolina a mistura é comprimida cerca de 10 vezes, em média (taxa de compressão de 10:1), ao passo que as versões a etanol trabalham com relações entre 14:1 e 16:1.

Observação: Em tese, quanto maior for a taxa de compressão, tanto maior será a energia resultante da expansão dos gases durante a combustão (ou seja, mais força será repassada ao virabrequim e deste, através do volante, para o sistema de transmissão). Na prática, porém, há limites a observar, a começar pelo ponto de detonação do combustível. Vale lembrar que nossa gasolina é de péssima qualidade, e que a batida de pino provocada por uma taxa de compressão muito elevada pode produzir sérios danos aos componentes internos do motor.

Uma vez que a biela é um componente "físico", o grande desafio dos projetistas está nos motores flexíveis. Como vimos, gasolina e etanol funcionam melhor com taxas de compressão diferentes, e a solução, pelo menos por enquanto, consiste em estabelecer um meio-termo, embora o ideal fosse alterar a compressão em tempo real, da mesma maneira que o sistema de injeção eletrônica de combustível faz com a taxa estequiométrica (volto a esse assunto mais adiante).

Nissan vem trabalhando num projeto nesse sentido, e a Porsche já registrou a patente de uma biela com cabeça articulada num excêntrico, cujo movimento ascendente e descendente, controlado por dois tirantes hidráulicos, permite variar o volume da câmara de combustão, elevando a taxa de compressão quando o turbo está funcionando com pressão máxima. No caso dos motores flex aspirados, essa tecnologia possibilitará ajustar a compressão ao etanol, à gasolina ou à mistura de ambos, com sensíveis melhorias tanto no desempenho quanto no consumo e na emissão de poluentes.

Continua no próximo capítulo.