Em 16 de março de 1990 — uma sexta-feira —, um dia depois de
ter tomado posse, o primeiro presidente eleito pelo voto direto após quase 30
anos — 21 dos quais sob a ditadura militar que o atual presidente diz jamais
ter existido — decretou feriado bancário e anunciou um pacote de medidas
econômicas que incluía o confisco dos depósitos bancários e das até então
intocáveis cadernetas de poupança dos brasileiros. Os saques na conta corrente
e na poupança foram limitados a NCz$ 50 mil, e o restante do dinheiro ficaria
retido por 18 meses, rendendo juros de 6% ao ano mais correção monetária. No
caso dos fundos de curto prazo e do overnight
(refúgio de parte da classe média diante da “inflação galopante”), poderiam ser
sacados somente 20% ou NCz$ 25 mil, o que fosse maior, pagando ainda tributação
de 8% sobre o valor retirado.
Ao fim do feriado bancário de três dias, longas filas se
formaram nas agências, e os bancos não tinham dinheiro suficiente para cobrir
saques dos clientes. Como nosso povo é useiro e vezeiro em fazer piadas com a própria
desgraça, uma anedota que logo correu o país (de boca em boca, pois ainda não
havia redes sociais) era mais ou menos assim: "Após horas na fila para sacar seus NCz$ 50 mil, um sujeito resolveu
matar o presidente, mas volta à fila poucos minutos mais tarde. Perguntado por
que havia desistido, ele respondeu: A fila para matar Collor está muito maior."
Fiz essa breve introdução porque agora, quase 30 depois do funesto Plano Collor, figuras de destaque nos
poderes Judiciário e Legislativo fazem fila para mandar calar-se
o chefe do Executivo. Em abril,
quando Bolsonaro interferiu na
política de preços da Petrobras, FHC mandou-lhe
o seguinte recado: "Tomara que os
que pouco sabem aprendam ou calem”. No
mês passado, diante de mais uma declaração pra lá de infeliz do capitão, o
ministro supremo Marco Aurélio Mello
disse que “apenas criando um aparelho de mordaça” Bolsonaro poderia parar de proferir o que chamou de incivilidade e grosseria. Dias atrás, o tucano
Tasso Jereissati, relator da PEC previdenciária no Senado, disse: "quanto mais ele [Bolsonaro] ficar calado, melhor, que aí as coisas
fluem com mais tranquilidade, sem criar nenhum ponto de atrito", e a
emedebista Simoni Tebet, presidente
da CCJ do Senado, lhe fez eco: "toda
vez que Bolsonaro ofende a classe política, joga as redes sociais contra o
Congresso, ele acaba atrapalhando”.
Calado, o
mais turbulento na galeria de presidentes brasileiros é um poeta;
quando abre a boca, é um pateta. Mas como esperar que Bolsonaro se cale se antes de entrar na política ele já exibia sinais
de impetuosidade, desrespeito pelos limites e ânsia de protagonismo? Se foram
atos de indisciplina que o levaram a deixar o Exército? Para quem não se
lembra, em 1986, quando tinha 31 anos, Bolsonaro
publicou na revista Veja um artigo em que
reclamava do soldo, e foi punido com 15 dias de prisão e um processo disciplinar.
No ano seguinte, também em protesto contra os baixos salários, planejou
explodir bombas de baixa potência em quartéis e academias. O assunto foi
resolvido discretamente e o insurreto, absolvido de todas as acusações. Mas sua
carreira militar terminou ali.
Há uma identidade de valores, de estilo e de estratégia
entre Donald Trump e Jair Bolsonaro, mas este não é cria
daquele: muito antes de saber quem era Trump,
o capitão já dizia que FHC devia ser
fuzilado e que Maria do Rosário não
merecia ser estuprada porque era feia. Ambos são fenômenos, mas fenômenos
independentes, surgidos e aprimorados cada um por si, como signos do tempo. Um
dia vão acabar, como tudo acaba, mas estão vivos e desconfia-se que em
ascensão. Tanto um como o outro têm chances reais de se reeleger.
A uma semana do segundo turno das eleições, o capitão deu a
seguinte declaração: “O que eu pretendo
é fazer uma excelente reforma política, acabando com o instituto da reeleição,
que começa comigo caso seja eleito, e reduzindo um pouco, em 15% ou 20%, a
quantidade de parlamentares”. Passados quase nove meses, não fez nem uma
coisa nem outra. Picado pela mosca azul,
passou a entremear suas estultices primeiro com insinuações, depois com declarações
de que é, sim, candidatíssimo à reeleição. Mas nada garante que não seja
abatido em seu voo de galinha antes mesmo de terminar este mandato. Ao que tudo
indica, já houve articulações nesse sentido,
mas que o "pacto institucional"
costurado por Dias Toffoli, o
sonhador, impediu de avançar.
Quase 30 anos no baixo clero da Câmara consagraram Bolsonaro na política do ultraje. A
postura de enfrentamento é da sua natureza. Recuos e tentativas conciliatórias
há — ninguém vem sendo mais useiro e vezeiro em desdizer o que disse (e até o
que não disso) do que nosso capitão —, mas parecem carecer de sinceridade. Bolsonaro age às vezes age como um
estrategista de alto coturno e noutras, como um parlapatão irresponsável. Há
quem veja sua beligerância atávica, no velho estilo estudantil “não levo
desaforo para casa”, como um papel que ele interpreta, mas o mais provável é
que isso faça parte da sua personalidade, e nada poderá muda-lo. É como na fábula do Sapo e o Escorpião, onde este
convence aquele a levá-lo nas costas até o outro lado do rio, argumentando que
ambos morrerão se ele o aguilhoar, mas tasca-lhe o ferrão assim mesmo, porque é
incapaz de agir contra sua natureza.
A PEC da Previdência, vista como a maior vitória política de
Bolsonaro até o momento, não foi
aprovada na Câmara devido aos esforços do chefe do Executivo, mas apesar de seu
empenho em melar a tramitação da proposta. Em outras circunstâncias, seria a
hora de comemorar e vislumbrar um céu de brigadeiro nas relações com o
Congresso rumo à aprovação de outras pautas importantes, mas o que se vê no
horizonte são nuvens carregadas. A já folclórica incontinência verbal do
presidente, sua capacidade de produzir crises quase diárias e a ausência de uma
estratégia para formar uma base de apoio não permitem tanto otimismo. Enfim, a
ver.