Sobre as
manifestações marcadas para amanhã — assunto que discutimos ad nauseam no post de ontem —, escreveu
o jornalista Augusto Nunes:
Nesta segunda-feira (20), publiquei no Twitter a seguinte constatação: “As manifestações do dia 26
terão significado histórico se provarem que os brasileiros aprenderam a
mobilizar-se em torno de ideias. As ruas devem exigir do Congresso a votação,
sem delongas malandras, do projeto da Nova Previdência, da Lei Anticrime
arquitetada por Sergio Moro e da
medida provisória da reforma administrativa, que abrandou a farra dos
ministérios”. Em resposta, descontado um punhado irrelevante de comentários
subscritos por cretinos fundamentais, centenas de brasileiros informaram
que são exatamente essas as bandeiras que pretendem desfraldar no próximo
domingo. Abstraídos os cretinos de sempre, os manifestantes reiteraram que não
pretendem fechar o Congresso, nem exterminar o Supremo, muito menos transformar
Jair Bolsonaro num Nicolás Maduro na contramão. O que eles
querem é que deputados e senadores façam alterações que não desfigurem o
projeto de Paulo Guedes e removam de
vez essa pedra gigantesca colocada no caminho que encurta a chegada ao porto
seguro.
É fato que declarações infelizes e tuítes desastrados do
presidente dificultam o diálogo com o Legislativo. Mas também é fato que não
melhoram em nada as relações entre os dois Poderes a estupidez do PT — que aposta no
quanto pior, melhor — e a batalha travada
pelo Centrão pela captura de cargos, verbas e cofres públicos. Não existe
democracia sem Poder Legislativo. Mas a democracia será sempre uma caricatura
com um Congresso infestado de delinquentes decididos a anular a revogação de
privilégios contida na nova Previdência, bloquear o aperfeiçoamento do combate
à corrupção e ao crime organizado desenhado pela Lei Anticrime de Sergio Moro e emparedar o Executivo com
a recriação de ministérios inúteis extintos pelo atual governo.
Há poucos dias, manifestações contra quaisquer reformas
foram tratadas como outra evidência de que o Brasil é um país democrático.
Merecem o mesmo tratamento as manifestações do próximo domingo, desde que se
limitem a desfraldar as bandeiras da nova Previdência, da Lei Anticrime e da
reforma administrativa. “O Congresso
sempre acaba fazendo o que o povo quer”, repetia o gaúcho Ibsen Pinheiro, que presidiu a Câmara
durante o processo de impeachment de Collor.
Já começou a fazer: nesta terça-feira, o Centrão resolveu desistir da
ressurreição de ministérios e aprovar a MP
que reformou a administração federal. Uma das três grandes reivindicações já
foi atendida. As outras o serão assim que deputados e senadores ouvirem o
rugido das ruas.
Na Gazeta do Povo,
escreveu Guilherme Fiúza:
Não há novidade alguma na obsessão brasileira pelo fracasso.
Você não precisa ler nenhum sociólogo de passeata para constatar o fenômeno.
Cada passo à frente corresponde a uns dez para trás — e andar de lado é progresso arrojado. Por uma razão miseravelmente
simples: tacar pedra, aqui, é salvo-conduto. Por que trabalhar dobrado para
construir, num lugar onde destruir é muito mais charmoso e bem mais fácil? Você
está cansado de saber que, numa nação infantilizada, fazer cara de nojo para o governo
é sucesso garantido. Arregaçar as mangas pelo bem comum e correr o risco de
tomar uma chapa branca na testa? Deixa de ser otário.
Esse componente tão dramático quanto corriqueiro do caráter
nacional já deu as caras, sem a menor inibição, inúmeras vezes. Uma das mais
impressionantes se deu logo após a eleição de Lula, em 2002. Desafiado publicamente por Pedro Malan a esclarecer se sua plataforma era a demagogia dos
calotes e bravatas contra a elite malvada ou o cumprimento de contratos e a
responsabilidade fiscal, Lula se
comprometeu com a segunda opção. E cumpriu. Iniciou seu governo com uma equipe
econômica de alto nível, chefiada por Antonio
Palocci — cuja
gestão foi
reconhecida por dez entre dez expoentes do setor —
e Henrique Meirelles no Banco
Central. Estavam dadas as condições para um novo ciclo virtuoso, depois das
crises de energia (doméstica) e da Rússia (internacional) que travaram na
virada do século a linha ascendente do Plano
Real. Lula era um líder popular
mostrando senso de pragmatismo para unir a estruturação econômica e o resgate
social — enfim, para
unir o país. E o que fez o país? Fez o que faz sempre: sabotou. A fritura
de Palocci não demorou a começar e
vinha de todos os lados (isso te lembra alguma coisa?). Corneteiros e
cassandras brotavam no meio empresarial, na imprensa, nas artes, na política — inclusive no PT, o partido governante. Aliás, os tucanos fizeram a
mesma coisa com Fernando Henrique e Malan —
porque, como já foi
dito, aqui fazer cara de nojo para governo é investimento. Mesmo se você estiver no governo.
O Plano Real
triunfou apesar dos tucanos, que até
o apoiaram majoritariamente na decolagem (covardia não é
burrice), mas atrapalharam tanto no nascedouro quanto na sustentação. Malan passou oito anos sendo demitido na imprensa — e adivinha a origem dessas
sementinhas? Uma equipe de abnegados executou o maior plano econômico da
história enquanto o presidente era chamado todo dia de elitista, neoliberal (o
fascista da época) e reacionário por ter se aliado a Antonio Carlos Magalhães, o Toninho
Malvadeza. Identificou o padrão?
Voltando a Lula,
aquela configuração que prometia unir o país (haha) logo virou tiro ao alvo: MST querendo mais grana, PT querendo mais cargo, PSOL nascendo para sua vida gloriosa de
virgem do puteiro, tucano querendo o poder de volta, empresário “moderno” querendo
dinheiro de graça e fritando o ministro da Fazenda que buscava a modernização.
O vice-presidente, que era empresário, atacava dia sim, outro também, a
política macroeconômica do seu próprio governo. Crise, teu nome é Brasil.
Observação: Direto da cadeia, em entrevista a um
site, o demiurgo de Garanhuns explica que os 13 milhões de desempregados, a
maior roubalheira da história, a crise econômica e outros desastres que ele
próprio produziu em parceria com a anta que o sucedeu ocorreram nos últimos
quatro meses: “A verdade é que nos
governos petistas as pessoas mais pobres subiram um degrau na escala social
começaram a entrar na universidade, frequentar restaurante, frequentar
aeroporto e isso começou a incomodar a elite brasileira. Esse legado está sendo
destruído. Bolsonaro está há quase cinco meses no governo e ninguém escuta
falar em crescimento, desenvolvimento, investimento ou geração de renda. O país
está abandonado. Só se fala em cortes orçamentários”.
Pausa para o leitor vomitar e se recompor.
Segundo vários representantes da intelectualidade nacional,
o presidente dos pobres estava vendendo a alma ao diabo. Veríssimo se declarava decepcionado com a adesão de Lula ao superávit primário… (parece
piada, e é, mas aconteceu). O país só se acalmou quando conseguiu interromper
essa gestão virtuosa e abrir caminho para o maior assalto da história. Aí
sobreveio uma década de paz. Em meio à roubalheira e à depravação institucional,
não se viu nem passeata cenográfica pela educação. Pega daí, caro leitor: boa
equipe, chance de reconstrução, cara de nojo, decepção… Só continua chamando
isso aqui de nação quem confunde rima com solução.
Nota antropológica:
FHC e vários outros que combateram a praga
nacional dos falsos virtuosos hoje estão na orquestra da crise. Que lugar está
reservado para esses personagens na história do Brasil? Pergunta no Posto Ipiranga.
Antes de concluir, um texto de Carlos Brickmann e mais algumas ponderações:
“Lá vão os
olavetes/em louca arrancada/xingando o inimigo/tinindo as espadas. Para que?
Para nada”. Mas esta paródia dos Cavaleiros
de Granada, de Cervantes, não é
exata: em vez de “para nada”, pode ser “para o desastre”. A manifestação deste
domingo, parece, é contra os políticos, o Supremo, os manifestantes da semana
passada. A marcha pode ser um êxito, pode dar para o gasto, pode fracassar. Se
fracassar, será péssimo para o presidente. Se apenas der para o gasto, será
ruim para o presidente. Se tiver êxito, hostilizará entidades de que Bolsonaro precisará para que seu
Governo siga em frente: do Congresso,
por exemplo, depende a reforma da Previdência, depende a aprovação do projeto
anticrime de Moro. E depende o
crédito extraordinário para que o Governo aguente os gastos até o fim do ano.
Neste momento, boa parte do Governo está desnorteada. Moro funciona, embora mais fraco.
Ministros como o da Infraestrutura e a da Agricultura vão bem. E Paulo Guedes é a esperança de que volte
o crescimento na economia, gerando algum emprego. No mais, quem cuida da casa é
o presidente da Câmara, Rodrigo Maia
(que se articula com Guedes), aliado
ao Centrão, dois dos alvos da
marcha. Se o Centrão e Maia cruzarem os braços, haverá vácuo
de poder, e como o poder abomina o vácuo, a lacuna será logo preenchida por
alguém. Bolsonaro, se a manifestação
der muito certo? Talvez. Mas Collor
tentou e, ao falhar, selou sua queda. Jânio
tentou e voltou, mas só como prefeito, quase 30 anos depois (detalhes
na minha postagem da última quinta-feira).
Observação: Collor apostou todas as fichas numa manifestação em que todos deveriam vestir
verde e amarelo. Quem foi, foi de preto. Itamar
era desconhecido, mas a aposta foi nele (e o vice acabou sendo bom presidente).
O vice de Jânio era João Goulart, que despertava
desconfiança nas Forças Armadas e na classe média. Mesmo assim, Jânio não teve apoio. Já Bolsonaro tem um vice militar, bem
visto por seus colegas, e que surpreendeu boa parte da opinião pública por seu
bom senso. Os bolsonaristas mais radicais poderiam ouvir companheiros como o
presidente do PSL, partido de Bolsonaro, ou Janaína Paschoal, bolsonarista e autora do pedido de impeachment de
Dilma. Ambos têm sérias dúvidas
sobre o que o presidente pode ganhar com a manifestação.
Jornais, TV, rádio e Internet se referem ao ato como
“protesto a favor de Bolsonaro”. Brickmann
diz ser do tempo em que protesto só podia ser contra. Relembra a primeira briga
de Bolsonaro com seu até então amigo
de fé Gustavo Bebianno, que culminou
com a demissão do ministro que tinha sido o chefe de sua campanha. Bebianno marcou audiência com o
vice-presidente de Relações Institucionais da Globo, e Bolsonaro, furioso por não admitir que inimigos fossem recebidos no
palácio, mandou-o suspender a reunião. Pois é: ontem, Bolsonaro recebeu no palácio o vice-presidente de Relações
Institucionais da Globo, o mesmo Paulo
Tonet Camargo, em companhia do ministro Onyx Lorenzoni e do empresário de comunicações Vicente Jorge Espíndola Rodriguez. Nada como um dia depois do outro
(e bons contatos).
Resumo da ópera: Uma parte dos apoiadores de Bolsonaro encara o protesto como um chamado do presidente. O problema é que, qualquer que seja o cenário, os atos embutem risco para o próprio Bolsonaro e para o governo. Mas nada que chegue perto das teorias conspiratórias propaladas nos últimos dias. Na história do Brasil, golpes sempre foram acompanhados de uma conjunção de fatores a sustentá-los. A começar pelo apoio das Forças Armadas, de setores importantes da economia — e de protagonistas do próprio parlamento. O grito das ruas, ou de parte dela, nunca foi suficiente. Ainda que quisesse, o que não parece um dado concreto a ser considerado, não há sinais de que Bolsonaro conte com o mix de fatores pré-golpe que a história não deixa esquecer. Portanto, o risco de ruptura institucional difundido em discursos e análises se mostra um evidente exagero. Assim como parecem exageradas as leituras de que o impeachment é algo que pode estar tão perto quanto a próxima esquina.