A Lava-Jato teve início em 2008, mas só ganhou notoriedade a partir de 2014. Foi devido a ela que Sergio Moro, responsável pelos processos do braço paranaense da operação, viveu seus dias de glória à frente da 13ª Vara Federal de Curitiba.
Em 2018, para conquistar o apoio da classe média, Bolsonaro convidou Moro para chefiar o "super ministério" da Justiça e Segurança Pública. Edulcorado pela promessa de ser indicado para o STF, o juiz abriu mão de 22 anos na magistratura para embarcar numa canoa que deveria saber furada, e desde então vem trilhando um a um os nove círculos do inferno.
Após 1 ano e 4 meses engolindo sapos e bebendo a água suja da lagoa bolsonarista, Moro finalmente desembarcou do governo. E foi acusado de traição. Não muito depois, a vaza-jato transformou o herói da pátria em pária. Sem o apoio prometido pelo Podemos, Moro migrou para o União Brasil. Teve as asas podadas por Luciano Bivar, mas conseguiu se eleger senador pelo Paraná.
Neste arremedo de banânia, os políticos se elegem para roubar, roubam para se reeleger e legislam em causa própria e/ou para favorecer seus bandidos de estimação. Mesmo que seja flagrada na porta do galinheiro com penas grudadas no focinho, a raposa é considerada inocente até vomitar a galinha, devolver-lhe a vida e tornar a comê-la dentro do galinheiro, sob as vistas das corujas supremas — que só enxergam o que lhes convêm e quando lhes convém.
Sob um mandatário com uma capivara invejável e quatro filhos investigados, era esperado que processos foram anulados, que condenações fossem canceladas e que agentes públicos corruptos recuperassem a liberdade e os direitos políticos. É como se nossas cortes interpretassem as leis de modo a ensejar a sobrevivência do Brasil velho, corrupto, subdesenvolvido e desigual, governado por parasitas da máquina pública e lobistas de favores e privilégios.
Todos são iguais perante a lei, mas a conversão do direito de defesa em impunidade resultou num Estado de exceção onde as pessoas que mandam valem mais que todas as outras. Só falta agora escreverem com todas as letras que ninguém mais pode ser preso no Brasil por cometer crimes de corrupção.
Depois de conseguir as 27 assinaturas necessárias para o desarquivamento do projeto de lei que trata da prisão em segunda instância que ele próprio apresentou quando ainda era ministro — e que acabou sendo automaticamente arquivado porque não foi apreciado na legislatura anterior —, Moro experimentou mais uma vez o contra-ataque establishment: um vídeo divulgado nas redes sociais em que ele fala em "comprar habeas corpus do Gilmar Mendes" levou a subprocuradora-geral Lindôra Araújo a denunciá-lo por calúnia.
De acordo com a subprocuradora, o senador "agiu com a nítida intenção de macular a imagem e a honra objetiva do ofendido, tentando descredibilizar a sua atuação como magistrado da mais alta Corte do País", e que a polêmica frase foi dita "na presença de várias pessoas, com o conhecimento de que estava sendo gravado por terceiro, o que facilitou a divulgação da afirmação caluniosa, que tornou-se pública em 14 de abril de 2023, ganhando ampla repercussão na imprensa nacional e nas redes sociais".
Moro reconheceu que sua fala foi infeliz, mas demonstrou indignação com a ação da PGR — segundo ele, as palavras foram tiradas do contexto de brincadeira e manipuladas por pessoas que querem incriminá-lo falsamente e indispô-lo com o STF (detalhes neste vídeo).
Na visão do deputado Deltan Dallagnol, a denúncia é inepta, absurda, e denota alinhamento com governo Lula em clara perseguição ao ex-juiz. O ex-coordenador da Lava-Jato em Curitiba lembrou que Gilmar "caluniou e injuriou os procuradores da Lava-Jato várias vezes", chamou a força-tarefa de "organização criminosa" e se referiu a seus integrantes como "cretinos", "gângsters", "espúrios" e "crápulas".
Vale relembrar também, por oportuno, que em março de 2018 o ministro Luís Roberto Barroso chamou o colega de toga de "fotografia ambulante do subdesenvolvimento brasileiro, mais um na multidão de altas autoridades que constroem todos os dias o fracasso do país (...) uma pessoa horrível, mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia", e em outubro do mesmo ano, ao comentar sobre uma corrupção estrutural e sistêmica envolvendo recursos públicos e a impunidade no país, disse que havia no STF "gabinete distribuindo senha para soltar corrupto sem qualquer forma de direito e numa espécie de ação entre amigos". Ao ser questionado sobre quais gabinetes se encontrariam nessa situação, Barroso sorriu e ficou em silêncio.
Resumo da ópera:
Conhecida pela seletividade aguçada, Lindôra Araújo costumava confundir ofensa com liberdade de expressão quando o ofensor era Bolsonaro, anotou Josias de Souza em sua coluna. Com Moro, prossegue o jornalista, ela não quis saber de "brincadeira": acusou-o caluniar o ministro e pediu condenação, cadeia e perda do mandato.
Josias pondera ainda que uma improvável condenação não resultaria em prisão, pois o suposto crime não prevê tal punição. Em última análise, Moro foi presenteado com uma contenda contra um dos mais impopulares ministros do STF, que decidiu acionar a PGR por acreditar que o senador precisa se responsabilizar pelo que diz.
Conhecido pelo destempero, Gilmar gosta de falar o que não aprecia ouvir. Já se divertiu diante das câmeras da TV Justiça referindo-se aos procuradores da Lava-Jato como "gentalha", disse que integravam "máfias" e "organizações criminosas" e que "força-tarefa é sinônimo de patifaria". Se um extraterrestre descesse em Brasília num desses instantes em que autoridades trocam chumbo, informaria ao seu planeta que, na Terra, políticos e magistrados brincam num parque de diversões chamado Código Penal.
A cena pública brasileira tornou-se um ambiente divertidamente degenerado.