domingo, 9 de junho de 2019

FESTIVAL DE DESPISTES OU BARAFUNDA DE UM GOVERNO SEM RUMO?


O STF decidiu que o governo pode vender subsidiárias de empresas estatais ou mistas sem a autorização do Congresso. A venda das estatais propriamente ditas, no entanto, continua exigindo o aval Legislativo. Há quase 418 estatais no Brasil, enquanto países como Suíça, Japão e Áustria, têm, respectivamente, 4, 8 e 10. Em sua esmagadora maioria, as estatais tupiniquins não passam de cabides de emprego.

Os Correios, por exemplo, são hoje a mais completa tradução da ineficiência, do apadrinhamento político e da falta de seriedade em lidar com a coisa pública. Entre 2013 e 2018 foram mais de 3 bilhões de reais de prejuízo (e o número só não foi pior porque o governo de Michel Temer tomou algumas medidas saneadoras). O mesmo resultado negativo ocorre com seu fundo de pensão, o Postalis, que apresenta um rombo atuarial de 11,5 bilhões de reais. No total, essa estrutura paquidérmica custa nada menos que 18 bilhões de reais por ano ao combalido caixa da União. Sem conseguir acompanhar a concorrência, a empresa terá seu valor de mercado brutalmente reduzido em cinco anos. Ou seja: o ideal seria privatizá-la o quanto antes, enquanto ela ainda oferece alguma atratividade aos potenciais compradores.

Observação: Manter estatais sob o guarda-chuva do Estado interessa àqueles que querem utilizar a política em proveito próprio, dado o manancial de cargos e, consequentemente, de verbas que elas representam. Não por acaso existe uma frente parlamentar com mais de 200 deputados e senadores em defesa da manutenção da estatal. Vale lembrar que todo o processo do mensalão nasceu a partir da CPI dos Correios, depois que um de seus diretores, Maurício Marinho (uma indicação do PTB), foi filmado recebendo um maço de notas para direcionar a compra de serviços de determinada companhia. 

Seja como for, a decisão do Supremo representou uma vitória para o Palácio do Planalto, que, sem articulação política que se preze e com as torneiras do “toma-lá-dá-cá” pingando, e não mais jorrando como nos governos anteriores, tem sofrido uma caudalosa sucessão de derrotas no Congresso.

Mudando de pato para ganso, Lula se tornou réu mais uma vez na Justiça Federal do DF, onde já respondia a outros quatro processos. Na última quinta-feira, o juiz federal Vallisney de Souza Oliveira aceitou nova denúncia do MPF (por corrupção passiva e lavagem de dinheiro) contra ele e seus ex-ministros Antonio Palocci e Paulo Bernardo, além do empresário Marcelo Odebrecht. Gleisi Hoffmann, mulher de Bernardo, também entrou na dança, mas, como tem direito a foro privilegiado, ela foi denunciada pela PGR, cabendo ao Supremo aceitar ou não a denúncia.

Observação: É a décima vez que Lula se torna réu. São sete ações penais  sub judice na primeira instância da JF em Brasília, Paraná e São Paulo. No processo sobre o tríplex no Guarujá, o petralha foi condenado em primeira, segunda e terceira instâncias; no da cobertura em SBC e do terreno onde seria erguida a nova sede do Instituto Lula, os autos estão conclusos, aguardando a decisão do juiz Luiz Antônio Bonat, que substituiu Sérgio Moro na 13ª Vara Federal do Paraná, em Curitiba; no do sítio em Atibaia, ele foi condenado pela juíza substituta Gabriela Hardt no início deste ano, e o TRF-4 deve julgar a qualquer momento o recurso interposto pela defesa.

A morosidade da Justiça brasileira é desalentadora. Para piorar, mesmo condenado em dois processos e respondendo a outros oito, Lula é considerado réu primário até que pelo uma das sentenças condenatórias transite em julgado. No Brasil, a primariedade é ligada ao processo, e não à realidade, à reiteração criminosa. Para alguns togados supremos isso é homenagear a Constituição, mas na verdade esse entendimento estapafúrdio favorece a impunidade e permite que políticos e empresários corruptos paguem milhões em honorários a criminalistas estrelados (com o dinheiro da corrupção, o que só agrava o quadro) para ter direito a apelos, recursos, embargos e toda sorte de chicanas protelatórias visando eternizar a tramitação dos processos. E Lula pode acabar cumprindo a pena em prisão domiciliar, já que, por questões de logística e de segurança, o regime semiaberto não é uma opção.



Mudando agora de ganso para marreco, o presidente Bolsonaro passou no teste da Avenida Paulista vista de cima. Talvez não houvesse tanta gente quanto na manifestação dos estudantes, mas havia o suficiente para reafirmar o bolsonarismo como força de rua. E eis-nos conduzidos, de manifestação a manifestação, ao vestíbulo do modo venezuelano de fazer política. Bolsonaro até cogitou de comparecer a um dos eventos, o que o enquadraria como perfeita réplica, pela direita, ao modelo consagrado por Maduro pela esquerda. Arrependeu-se a tempo. As bandeiras empunhadas pelos manifestantes, nas diversas cidades, traíam equívocos e contradições na superfície e um segredo mal escondido nas profundezas. O segredo é o desejo, acalentado pela franja lunática do bolsonarismo, de virar a mesa.

O ministro Paulo Guedes ficou animado. "Nunca vimos isso antes, o povo apoiando a reforma da Previdência", disse. Alguns objetariam à qualificação de "povo" para o segmento visto nas ruas, de extração diferente da do Brasil trigueiro e inzoneiro, mas, vá lá, o ministro tem razão  deu-se o inimaginável de gente abalar-se a gritar por uma reforma carimbada na folha de rosto como impopular. Resta que, se os manifestantes eram a favor da reforma, por que escolheram como alvo o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, amaldiçoado em todas as praças e premiado, em Copacabana, com um pixuleco? Maia é, entre os políticos, o mais insistente e articulado defensor da reforma da Previdência. Quem é contra é Bolsonaro, cujo último torpedo, no afã de inviabilizá-la, foi a revelação, com um sorriso alvar, como se descobrisse a pólvora, de um plano de cobrar taxas para atualizar o valor dos imóveis e com isso arrecadar o trilhão de reais sonhado por Guedes com a reforma.

A franja lunática passou os últimos dias em silêncio. Seu mentor, o bruxo Olavo de Carvalho, disse que não mais se manifestaria sobre a política brasileira. Os filhos do presidente se contiveram. Os ministros da Educação e das Relações Exteriores nos pouparam das intervenções, belicosas ou cômicas, que os distinguem. Pode ser um recuo, pode ser uma retirada tática. Bolsonaro postou, às vésperas das manifestações, texto que denunciava as instituições como empecilhos a suas sãs intenções e um vídeo em que um pastor congolês o aclamava como escolhido de Deus. Depois das manifestações, amigável, convocou os chefes dos demais poderes a um café da manhã no Alvorada e lhes propôs um "pacto pelo Brasil". Tudo somado, estamos diante de um festival de despistes, de acobertamentos de secretas intenções, das calmarias que antecedem as tempestades  ou da barafunda característica de uma Presidência sem rumo?

Estamos diante de um festival de despistes ou da barafunda de uma Presidência sem rumo?

A luta contra a corrupção expressou-se, nas manifestações, pelo protesto contra a retirada do Coaf das mãos do ministro Sergio Moro. Haveria, no noticiário recente, outros casos contra os quais protestar. Por exemplo, a revelação de que Fabrício Queiroz, o desaparecido faz-tudo da família Bolsonaro, pagou em dinheiro vivo os R$ 133 600 que lhe custou a cirurgia de câncer no hospital Albert Einstein. Ou as transações imobiliárias em série  seriam 37, segundo as últimas contas do MP-RJ  que propiciaram lucros expressivos ao senador Flávio Bolsonaro.

O "pacto pelo Brasil" discutido no Alvorada selaria o apoio conjunto dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário a causas prioritárias como a reforma previdenciária e o combate à criminalidade. Impossível acreditar que as assinaturas dos presidentes da Câmara e do Senado decretariam o alinhamento automático de casas caracterizadas, por natureza, pelo debate e pelo conflito. Ilógico imaginar que a assinatura do presidente do Supremo arraste o conjunto dos ministros a endossar de antemão matérias passíveis de vir a ser levadas a julgamento. De duas uma: ou o Planalto tenta atrair Congresso e STF a uma missão impossível, para depois acusá-los de boicotar seus esforços para salvar o Brasil, ou o tal pacto não passaria daquilo que o elegante inglês cunhado no Brasil apelidou de "embromation".

Consta ter sido o ministro Toffoli o primeiro a aventar a ideia de um pacto. O ministro erra de alvo ao não dirigi-­lo ao interior do próprio tribunal. Está mais do que na hora de o STF, tão acossado quanto o Congresso pela sanha do bolsonarismo, proteger seus flancos. Um pacto que incluísse itens como restringir as decisões monocráticas, impedir pedidos de vista que se eternizam e apressar os julgamentos de políticos seria um primeiro passo. Mas como pactuar numa casa em que as brigas atingiram tal nível que uns não falam com outros?

Texto de Roberto Pompeu de Toledo publicado em VEJA # 2637