quarta-feira, 17 de julho de 2019

VEJA E VERDEVALDO — QUANDO OS IMPRESTÁVEIS SE ENCONTRAM



No dia 27 do mês passado, o GG que não é o Gabriel Gonçalves (*), em resposta ao colunista do Globo e comentarista da Jovem Pan Carlos Andreazza, anunciou via Twitter e no programa Pânico que a revista Veja passaria a fazer parte do grupo de veículos de comunicação que vêm divulgando (de maneira sensacionalista) o material que (o site panfletário) The Intercept Brasil obteve (de cibercriminosos) a pretexto de travar uma (pseudo) cruzada moralizadora contra o ex-juiz Sérgio Moro e a Lava-Jato.

(*) Em atenção aos mais novos, trata-se de uma remissão ao comercial da loja de presentes GG — Gabriel Gonçalves, no qual o locutor, em off, apregoava as ofertas da semana e perguntava: “É na Gabriel Gonçalves não é?”, e então aparecia a faccia do Arthur Miranda e ouvia-se o bordão: “Evidentemente!

Interessante. As capas deles são às vezes bonitas”, escreveu o jornalista estadunidense especializado em destruir reputações e que se orgulha de ser marido de um deputado brasileiro (David Miranda, do PSOL, que diz “amar mais do que tudo”), referindo-se à capa com a estátua do ministro da Justiça “DESMORONANDO”.

Na edição que chegou às bancas na última sexta-feira, Veja — que sempre foi implacável com os crimes cometidos por Lula e pelo PT, como comprovam dúzias de matérias de capa publicadas ao longo das últimas décadas, sem mencionar a famosa entrevista com Pedro Collor, em 1992, que foi decisiva para o impeachment do ex-caçador de marajás de araque , parece ter mesmo virado a casaca com uma desfaçatez digna de certo togado supremo.

Observação: Gilmar Mendes, que foi um dos grandes defensores da prisão em segunda instância em 2016, parece ter incorporado o caboclo laxante, pois, a pretexto de travar uma cruzada contra as prisões preventivas alongadas e outras arbitrariedades cometidas pela Lava-Jato, vem concedendo habeas corpus por atacado. Segundo Luís Roberto Barroso, que há muito não se bica com Gilmar, o motivo é outro. Nas palavras do ministro, “há no supremo gabinete distribuindo senha para soltar corrupto sem qualquer forma de direito e numa espécie de ação entre amigos (...) quando a Justiça desvia dos amigos do poder, ela legitima o discurso de que as punições são uma perseguição.

O alvo da edição da última sexta-feira foi o desembargador João Pedro Gebran Neto, do TRF-4. A reportagem, assinada por GG, é tão grotesca que nem mereceu uma chamada na capa. Verdevaldo não está fazendo jornalismo, e sabe disso. De bobo, ele não tem nada; mas está cheio de bobos caindo na sua conversa fiada. Ele está apenas se servindo do produto de um furto — material de autenticidade duvidosa, sujeito a manipulações e não devidamente escrutinado, como foi reconhecido por um dos seus funcionários — para tentar tirar da cadeia o chefe de uma organização criminosa e abrir caminho para a anulação de todas as condenações obtidas pela maior operação contra a corrupção da história brasileira.

Com a possível exceção dos textos de alguns colunistas, o que Veja vem publicando ultimamente não vale o papel em que a revista é impressa. Infelizmente, o que não falta neste país é gente susceptível à manipulação descarada dos fatos, ao uso de micropartículas da realidade para dar ares de verdade a narrativas tendenciosas e proselitistas. Caso o amigo leitor não seja um deles, e se, por revoltantes, esses “frutos do melhor jornalismo investigativo de que se tem notícia desde Johann Gutenberg” lhe provocarem náuseas e desarranjos intestinais, as folhas da revista, por não serem de papel absorvente, não servem sequer para limpar a bunda.


O vazamento das mensagens atribuídas aos procuradores da Lava-Jato  — entre si e com o então juiz Sérgio Moro — não revelou até agora nenhuma ato que distorcesse a investigação, que forjasse provas inexistentes, que indicasse conluio contra qualquer investigado, muito menos o ex-presidente Lula, que é o principal foco as invasão de celulares. Segundo Merval Pereira, tudo se limita ao terreno pantanoso da hermenêutica, ou seja, da interpretação da leis. E com efeito: enquanto o Intercept carrega nas tintas da alegada ilegalidade nas conversas, inúmeros juristas e advogados afirmam o contrário.

O busílis da questão remente ao nosso processo penal, no qual o juiz que controla a investigação do Ministério Público e da polícia é o mesmo julga a ação. E dá-se o mesmo no STF, onde desaguam os processos envolvendo réus que têm direito a foro privilegiado. Basta relembrar o julgamento do mensalão do PT, onde o ministro hoje aposentado Joaquim Barbosa atuou como relator do processo que mais adiante julgaria juntamente com seus pares.  No caso das forças-tarefa, a situação é ainda mais limítrofe, pois o juiz controla as investigações — embora não participe diretamente delas —, autorizando ou negando pedidos de quebra de sigilo, interceptações telefônicas e mandados de busca e apreensão, colhendo depoimentos e determinando prisões provisórias. 

Para dar agilidade ao combate contra os crimes financeiros, a Vara especial de Curitiba foi criada em 2003, por recomendação do CNJ, e a Força-Tarefa da Lava-Jato, em 2014, por decisão da PGR. Quem a coordenou foi o procurador Deltan Dallagnol, que já trabalhara com o então juiz Moro anos antes, no caso Banestado, e passou a integrar a Lava-Jato por ocasião da primeira denúncia contra o doleiro Alberto Youssef.

Dallagnol e Moro se conhecem há quase 20 anos. Como nenhuma ação dos procuradores do MPF ou da PF pode ser feita sem uma autorização do juiz, a sinergia entre as diversas corporações que trabalham em conjunto — Ministério Público, Polícia Federal, Receita Federal etc. — é que dá sentido às forças-tarefas. As etapas das operações, assim como questões logísticas, exigências legais e formalização de atos tinham de ser autorizadas por Moro, e por isso juiz e investigadores tinham inevitavelmente de discutir a melhor hora para realizar esta ou aquela ação, o embasamento de pedidos dos procuradores e da PF (prisão preventiva, de quebra de sigilo etc.) e por aí afora.

O entendimento sobre essa sinergia — que agrega eficiência ao combate ao crime — é que está em discussão com a divulgação desses diálogos, que, nunca é demais lembrar, os supostos participantes não reconhecem como autênticos na sua integralidade. O cerne da questão está na maneira como o site Intercept vem divulgando o material que recebeu do hacker (ou dos hackers), pois a falta da integralidade impede a verificação da autenticidade do conteúdo. Demais disso, o site panfletário de GG seleciona a seu talante quais partes divulgar (fora de seu contexto integral) e, principalmente, quais não divulgar. O trabalho de edição é uma função jornalística, mas a recusa de Verdevaldo a dar acesso ao material, mesmo àqueles que participam da divulgação, carece de explicação razoável.

Traçando um paralelo com o Wikileaks, que divulgou documentos oficiais do governo dos Estados Unidos, o material foi distribuído a uma cadeia de jornais e revistas, e cada qual fez sua própria edição a partir de critérios próprios. No caso do Intercept, a última leva, com conversas de procuradores — entre si e com suas mulheres — sobre a formação de uma empresa para gerenciar palestras, se resume à revelação da intimidade das autoridades, sem que nada justifique a divulgação. A empresa não foi aberta e as palestras precisam ser autorizadas pelo CNJ. Pode-se até ver indícios de ganância dos procuradores, mas isso é uma questão moral, e não criminal. Talvez eles não devessem ter proposto a criação de um fundo, que eles geririam, com a indenização bilionária que a Petrobras teve que pagar aos Estados Unidos. Só que isso foi vetado. 

Resta saber como Dallagnol e seus pares se explicarão a Raquel Dodge, mas isso é outra conversa.