sexta-feira, 18 de outubro de 2019

O STF, O PSL E O REI NU


Ao som do apito do árbitro supremo, deu-se início na arena suprema mais um supremo jogo de cartas marcadas. Para que rendesse suprema bilheteria, a suprema partida foi suspensa depois que um sem-número de bocas-moles despejou da tribuna outras tantas abobrinhas. Assim, garantiu-se o supremo suspense até a semana que vem, quando então conheceremos não o supremo vencedor, mas o placar que lhe deu a vitória — a menos, naturalmente, que o imprevisto tenha voto decisivo na assembleia dos acontecimentos. 

Pelo andar da carruagem e o ladrar da cachorrada, o gigante eternamente adormecido em berço esplêndido, também conhecido como o país do futuro que nunca chega, poderá adicionar a esse notável portfólio o epíteto de republiqueta da vergonha e do retrocesso. Parabéns aos togados supremos por mais um supremo desserviço prestado à sofrida e extorquida plebe ignara que por alguma razão ainda banca seus supremos estipêndios — até quando, porém, só mesmo Deus e o Diabo sabem.    

Enquanto o PSL segue em pé de guerra, o STF flerta com a convulsão social e o "mito" reencena a peça do rei nu.

Horas antes do início da sessão desta quinta-feira, o general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército, mandou pelo Twitter um recado aos ministros, no qual disse que a mudança na norma que impulsionou o combate à corrupção pode levar o povo brasileiro a "cair outra vez no desalento e na eventual convulsão social".

Dois togados supremos foram ouvidos por Josias de Souza. Um ponderou que o general "já não comanda o Exército e tem o direito de se manifestar como qualquer cidadão", outro tachou o tuíte de "tentativa bisonha de interferir no resultado do julgamento". Vale lembrar que, no ano passado, Villas Boas também recorreu ao Twitter quando a Corte estava prestes a julgar o pedido da defesa de Lula para que o ex-presidente não fosse preso. Em linguagem mais direta, ele escreveu à época que o Exército, avesso à impunidade, estava atento "às suas missões institucionais".

O então candidato Jair Bolsonaro era um ardoroso defensor em segunda instância. Eleito, não dá um pio sobre o assunto. Às vésperas do início do julgamento, o capitão recebeu em audiência o trio calafrio Toffoli, Moraes e Mendes. O teor das conversas não foi revelado.

O apreço retórico de Bolsonaro pelo encarceramento de corruptos era tão grande que ele fez, no final de 2017, uma exigência inusual para o PEN, um dos partidos com os quais negociava sua filiação. Além de reivindicar a troca do nome da legenda para Patriota, cobrou a desistência de uma liminar protocolada no Supremo em favor da abertura das celas dos condenados em duas instâncias. Mas acabou optando pelo PSL.

O PEN cumpriu as exigências do então candidato. Passou a se chamar Patriota e desistiu do pedido de liminar, destituindo o advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay. Mas já não podia mais abrir mão da ação: a Ação Direta de Constitucionalidade é uma ação indisponível e não seria possível a desistência. Kakay fará sustentação oral no Supremo, na condição de amicus curiae, em nome do Instituto de Garantias Penais.

Pelo menos dois dos ministros recebidos por Bolsonaro na última quarta são contrários à prisão de condenados em duas instâncias. Antes, o capitão torcia o nariz para ambos. Mas descobriu recentemente que Toffoli e Gilmar são amigos de infância que ele conheceu depois dos 60 anos. A revelação da amizade tardia veio junto com duas liminares que os ministros expediram para trancar o processo do primogênito Zero Um por peculato e lavagem de dinheiro.

Quanto à crise no PSL, Josias de Souza explica com maestria: "Não é que o crime não compensa. É que, quando compensa, passa a se chamar Partido Político. Se o mensalão e o petrolão serviram para alguma coisa, foi para comprovar que os maiores partidos brasileiros tornaram-se apenas ramificações do crime organizado. E o PSL serve para demonstrar que, se você tiver carisma e disposição para chamar a mesma porcaria de nova política, vai acabar transformando um partido nanico num gigante do Legislativo. Embora continue sendo a mesma porcaria".

O PSL tem um patrono que pede que esqueçam o seu partido. Amanhece com a PF na casa do seu presidente e anoitece de mãos dadas com arquirrivais como PT e PCdoB numa obstrução legislativa contra o governo. Coisa comandada pelo líder Delegado Waldir, que deveria zelar pelos interesses do Planalto. No Legislativo, a sigla afasta o líder do governo, Major Vitor Hugo, de uma comissão sobre reforma previdenciária dos militares. No Ministério do Turismo, tolera um filiado tóxico, já indiciado e denunciado. Na Alesp, o drama de Gil Diniz pendurado nas manchetes como adepto da "rachadinha" evidencia que Flávio Bolsonaro fez escola.

O nome escondido atrás da sigla PSL é Partido Social Liberal, mas nada tem de social nem, muito menos, de liberal. Seu liberalismo perdeu-se no modelo patrimonialista de gestão da milionária verba pública do fundo partidário. O PSL poderia se chamar Janete ou Partido Sem Limites. Para os seus propósitos, daria no mesmo. E nada seria capaz de mudar o fato de que o partido do presidente da República entrou num processo irreversível de autocombustão.

No frigir dos ovos, nosso indômito presidente revela um talento insuspeitado para um tipo de música especial: a percussão. Ele exibe uma habilidade extraordinária no manuseio do tambor, mas, como todo artista talentoso, não toca em qualquer palco. Ao exigir "transparência" do PSL, por exemplo, bate bumbo sob um enorme telhado de vidro. Depois de abrir uma crise com a legenda pela qual se elegeu, esclarece que não deseja controlá-la, quer apenas transparência. "Vamos mostrar as contas", diz Bolsonaro. "O dinheiro é público. São R$ 8 milhões (do fundo partidário) por mês."

Graças a Bolsonaro, o brasileiro descobriu que o imenso telhado de vidro é o melhor posto de observação para acompanhar a briga interna do PSL. É dali que o país assiste há uma semana ao strip-tease da virtude. Os próprios correligionários cuidaram de lembrar o presidente de que, antes de exibir transparência do partido, ele precisa levantar o tapete que esconde o enrosco do primogênito Flávio Bolsonaro, o cheque que caiu na conta da primeira-dama Michelle, o empréstimo mal explicado feito ao correntista atípico Fabrício Queiroz e os interesses que o levaram a compactuar com o laranjal do ministro do Turismo.

Num ambiente assim, ao insinuar que a crise é coisa da imprensa, que só enxerga "coisa ruim", Bolsonaro transforma a política num outro ramo do humorismo. Por sorte, quem observa com atenção a gincana de lama que se desenrola no partido percebe que o presidente não tem apenas o telhado de vidro. O paletó, a camisa e a calça também são feitas de vidro. O mais curioso é que são seus próprios correligionários, não os oposicionistas, que avisam ao país que o rei está nu.