sábado, 19 de outubro de 2019

O SUPREMO SUSPENSE E O SEGREDO DE POLICHINELO — PRIMEIRA PARTE


Ao trilar do apito supremo do supremo togado que preside os demais togados supremos (melhor dizendo, que coordena os trabalhos da suprema corte, como fez questão de frisar o ministro Marco Aurélio), iniciou-se mais um supremo jogo de cartas marcadas. A partida foi adiada, mas, a menos que o imprevisto tenha voto garantido na assembleia dos acontecimentos, a vitória do supremo time favorito está garantida  ou seja, ao final de mais essa batota, será conhecido somente o supremo placar.

Como tuitou o jurista Modesto Carvalhosa, a aberração jurídica do nosso pretório excelso nesse teatro do absurdo é uma quebra do sistema penal e está criando uma grave crise institucional ao deixar de atender aos interesses legítimos da sociedade e passar a desagregar o próprio Estado Democrático de Direito. O jornalista, acadêmico e comentarista político Merval Pereira, por seu turno, comparou essa celeuma suprema a um episódio ocorrido em 1827, quando Bernardo Pereira de Vasconcelos, jornalista e deputado do Império, subiu à tribuna para criticar o que considerava um excesso de recursos no sistema judicial brasileiro. Passados 192 anos, ainda não se chegou a uma conclusão.

Não tenho como não relembrar mais uma vez, mesmo correndo o risco de ser repetitivo, que esse imbróglio da presunção de inocência até o trânsito em julgado da condenação foi uma questão de somenos enquanto políticos de alto coturno não eram alcançados pelo braço da lei. É certo que existe um dispositivo na famigerada Constituição Cidadã que dá guarida à tese dos garantistas de araque, mas é igualmente certo que a prisão após a condenação em primeira instância era regra no Brasil até 1973, quando então a Lei Fleury  criada sob medida para beneficiar o então chefão do DOPS e notório torturador homônimo  passou a garantir a réus primários e com bons antecedentes o direito de responder ao processo em liberdade até o julgamento em segunda instância

Herança de nossa colonização portuguesa, essa profusão de instâncias recursais chegou a cinco: a primeira, uma segunda, que era o Tribunal da Relação, uma terceira, a Casa da Suplicação, uma quarta, o Supremo Tribunal de Justiça, que originou o STF, e a graça Real — o último recurso, que era endereçado diretamente ao Rei. O retro mencionado Bernardo de Vasconcelos, autor do projeto legislativo do Código Criminal do Império, defendia que os recursos não deveriam suspender a condenação, exceto em pena de morte: “o contrário é estabelecer o reinado da chicana”.

A Constituição de 1824 e o sistema recursal do Império só admitiam duas instâncias — a do juiz monocrático e a do tribunal da relação como corte de apelação. Reagia-se contra o excesso de recursos do Antigo Regime, visto como garantidor de privilégios e impunidade. Daí termos hoje 4 instâncias, sendo a última o STF, que, de corte constitucional, passou a ser a um só tempo uma espécie de Valhala na Asgard tupiniquim e uma curva de rio, onde se acumula todo tipo de porcaria.

O código de Bernardo de Vasconcelos representou a primeira codificação criminal autenticamente nacional, definindo princípios hoje consagrados em toda legislação criminal do ocidente: princípio da legalidade, anterioridade, proporcionalidade e cumulação das penas, assim como a imprescritibilidade. Juristas estrangeiros aprenderam português só para lê-lo no original, que inovou em vários aspectos, entre os quais o da maioridade penal, que não era abordada por nenhum código ocidental. Pelo visto, os eminentes togados supremos atuais não têm o mesmo apreço pela obra de Vasconcelos. O que é uma pena.