sábado, 27 de março de 2021

NÃO O CHAMEM DE GENOCIDA...

 

No jargão publicitário, o termo “slogan” designa uma frase concisa e de fácil memorização que sintetiza as virtudes de algo ou alguém. No âmbito da política, o candidato a presidente Artur Bernardes, por exemplo, foi alcunhado de “Seu Mé”; mais adiante, Adhemar de Barros popularizou o “rouba, mas faz” (que Paulo Maluf aprimorou tempos depois), e o demiurgo de Garanhuns disputou a presidência quatro vezes ao som do jingle enjoadinho “Lula lá”. 

São Paulo já foi “terra da garoa”, “locomotiva do Brasil”, “cidade que se humaniza” e “cidade que não pode parar” — entre outros, e não necessariamente nessa ordem. A BandNews FM, que criou o bordão “em 20 minutos tudo pode mudar”, alterou-o há alguns anos para “em um segundo tudo pode mudar”.

Bolsonaro foi sagrado “mito” pelos bolsomínions — camarilha de boçais que veem o Messias que não miracula como um enviado de Deus, um salvador da Pátria —, embora sua desditosa gestão, que piora a cada dia, demonstre claramente que ele não passa de um mitômano populista com pitadas de psicopatia e sem envergadura para exercer o cargo que ocupa. Em abril do ano passado, quando o Brasil contabilizava 87 mil infectados e 6 mil mortos pela Covid — uma “gripezinha”, na abalizada opinião de nosso presidente —, o jornal norte-americano The Washington Post concedeu-lhe a láurea de pior líder mundial no combate à pandemia.

Hoje, com mais de 12 milhões de infectados e 303,5 mil vítimas fatais da pandemia, não espanta que muitos chamem Bolsonaro de “genocida”, ou que o denunciem ao Tribunal Penal Internacional, em Haia, por crimes contra a humanidade e genocídio — como fez uma coalizão que representa mais de um milhão de trabalhadores da saúde no Brasil, apoiada por entidades internacionais.

No texto original da convenção da ONU para a prevenção e a repressão do genocídio, cujo conteúdo adquiriu status de emenda constitucional no Brasil durante o governo Vargas, o termo genocídio designa atos que tenham por objetivo destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Partindo dessa premissa e sabendo que o tratado internacional estabelece punição tanto para quem pratica o genocídio quanto para quem o incentiva, o capitão-cloroquina poderia ser chamado de genocida quando convocou sua horda de apoiadores a "fuzilar a petralhada" (por se tratar de um grupo específico), mas não agora, em relação à pandemia. 

O ódio historicamente destilado por ele contra determinados segmentos da população também poderia ensejar essa acusação, sobretudo levando em conta seu apoio à tortura e o arraigado desejo de ver a democracia brasileira substituída por uma guerra-civil, "matando uns 30 mil, começando pelo FHC".

Gilmar Mendes, Kin Kataguiri, Lula, Haddad e Felipe Neto, entre outros, já chamaram Bolsonaro de genocida. O ex-decano supremo Celso de Mello chegou mesmo a compará-lo a Hitler. Mas no Brasil de Bolsonaro é proibido chamar Bolsonaro de genocida. Tanto é assim que uma porção de gente vem sendo processada, presa ou intimidada por verbalizar que a política de saúde do capitão é “genocida”.

Bolsonaro assumiu em diversos momentos o avatar de garoto-propaganda da cloroquina, desdenhou o uso das máscaras (que se recusa a usar e instiga seus devotos a imitá-lo), promoveu e estimulou aglomerações, chamou de covardes aqueles que atenderam aos apelos da ciência e respeitaram o isolamento social, classificou de “frescura e mimimi” a preocupação com o vírus e continua defendendo um tratamento precoce que não existe. Mas não pode ser chamado de genocida.

Bolsonaro demorou a se conscientizar da necessidade de imunizar a população e auxiliar financeiramente os mais necessitados, enquanto sua claque amestrada faz coro, ofende, ameaça, destila ódio e zomba de quem está se desdobrando para tentar conter a pandemia. Mas não pode ser chamado de genocida.

Bolsonaro penabundou Mandetta do comando da Saúde — porque o ortopedista que seguia a ciência “estava se achando estrela” — e forçou a demissão de Teich — porque o oncologista se recusou chancelar o uso de medicamentos perigosos — para nomear o general-interventor Eduardo “um manda e o outro obedece” Pazuello, a quem incumbiu da missão de transformar a Saúde em cabide de farda. Mas não pode ser chamado de genocida.

Sob as ordens do capitão, o general Pesadelo deixou caducar sete milhões de testes RT-PCR num depósito federal em Guarulhos, manipulou os números de infectados e mortos pela Covid, falhou na compra de seringas e agulhas, deixou faltar oxigênio nos hospitais de Manaus enquanto distribuía “kits-covid para “tratamento preventivo”, disse que a Pfizer ofereceu apenas 9 milhões de doses da vacina (quando na verdade foram 70 milhões) e — a cereja do bolo —, perguntado pela imprensa sobre o cronograma da imunização, disse que o povo começaria a ser vacinado no dia D e na hora H. E nem ele nem seu chefe podem ser chamados de genocida.

Pazuello questionou o motivo de “tanta ansiedade, tanta angústia” , além de mandar para o Amapá as doses do imunizante destinado a Manaus. Mas Bolsonaro que não pode ser chamado de genocida  manteve o subordinado incompetente no cargo. Quando viu que não era mais possível evitar sua substituição, desconvidou a cardiologista Ludhmilla Hajjar (indicada pelo réu que ora preside a Câmara Federal) e nomeou Marcelo Queiroga (que tem tudo para ser outro Pazuello) porque a médica disse à GloboNews que defendia medidas de isolamento social e prioridade à negociação de vacinas. Mesmo assim, Bolsonaro não pode ser chamado de genocida.

Bolsonaro se negou a comprar vacinas em agosto. Fez campanha contra a vacinação. Recusou-se a se vacinar. Pressionou a Anvisa para negar registro à Coronavac. Tentou impedir o Butantan de fornecer o imunizante diretamente para os estados. Simulou falta de ar, debochando dos doentes, e entrou com uma ação no STF para impedir governadores de tomar medidas que salvarão vidas. Mas não pode ser chamado de genocida.

Talvez seja o caso de entendermos de uma vez por todas que somos de fato (des)governados por um verdadeiro genocida, que não relutou em transformar todo o país num grupo a ser perseguido, exterminado, aniquilado com requintes de crueldade. Sem mimimi. Por outro lado, a despeito de tudo o que foi dito até aqui, quem chamar o presidente de genocida corre o risco de ser processado por crime contra a honra

Bolsonaro, como se sabe, é um homem honrado. Mas se fosse preciso escolher um único adjetivo para definir seu comportamento, não sobra nada além de… Genocida.