Sem alarde, a CPI da Pandemia avança na investigação sobre a divulgação de fake news. Até agora, oito pessoas próximas a Bolsonaro tiveram sigilos telefônico e telemático quebrados. Na sessão de ontem, a servidora Célia Silva Oliveira admitiu que o contrato para a compra da vacina indiana Covaxin ficou um mês sem fiscal, e que ela só foi encarregada do contrato em 22 de março, dois dias após os irmãos Miranda terem denunciado as irregularidades no processo ao presidente. E mais um bocado de meias-verdades e inverdades chapadas, empresas ligadas à Precisa e à Global que vendem “de parafuso a foguete para órgãos públicos” e providenciais acessos de amnésia — a depoente da vez dizia não se lembrar do próprio padrinho político! Está programada para hoje a oitiva de Roberto Ferreira Dias, ex-diretor do departamento de Logística em Saúde da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde; amanhã será a vez da ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunizações, Francieli Fantinato. A Comissão solicitou também o auxílio de um delegado da PF que atuou na CPMI das Fake News e pediu à PGR que um procurador seja destacado “com urgência” para auxiliar nas investigações.
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Não vem ao caso discutir a implicância de Rodrigo
Janot com o Michel Temer ou a sujeição deste ao patético papel de pato-manco
para driblar as “flechadas” daquele. Mas é oportuno relembrar que o PGR era simpatizante do
petismo e o vampiro do Jaburu foi o
articulador do impeachment da dita-cuja caracará. Dito de outro modo, Dilma
era uma incompetente de quatro-costados, Temer, um grande oportunista e Janot,
um maluco que afirmou
publicamente que entrou armado no STF para “atirar
na cara de Gilmar Mendes e se suicidar em seguida”, mas “uma
intervenção divina” o impediu de apertar o gatilho. Cada qual dá à
própria imprestabilidade o nome que bem entende, naturalmente. Mas isso não
muda o fato de que essa “confissão” foi uma estratégia de marketing para
promover o livro — Nada
Menos que Tudo.
O alvo da ira de Janot descartou recorrer
a alguma medida judicial, até porque o Código Penal e a jurisprudência dos
tribunais não criminalizam a fase preparatória de um ilícito. Se o simples
desejo de matar fosse passível de punição e a justiça brasileira cumprisse
seu papel, nem um pool de empreiteiras trabalhando 24/7 daria conta da demanda
por celas. Em última análise, a mirabolante revelação do ex-procurador não daria
sequer um filme do tipo “DESEJO DE MATAR NO STF” — até porque seria
preciso deixar claro quem era o mocinho e quem era o bandido no enredo.
Manifestações de rua e panelaços perderam força com a
queda da nefelibata da mandioca, mas ressuscitaram para assombrar o Capitão-Grinch.
Esqueça as motociatas. São manifestações engrossadas com promessas de isentar
motos, scooters e congêneres do pagamento de pedágio. Digno de nota é a
recorrência dos protestos contra o governo, que, inclusive, vêm se avolumando.
Se esse cenário é um prenúncio de impeachment, só o tempo dirá. Mas o clamor
popular foi determinante na deposição de Collor e Dilma.
Domingo passado, um dia depois das penúltimas
manifestações pró-impeachment e dois após ter sido indiciado por
corrupção passiva e lavagem de dinheiro, Renan Calheiros acusou Jair
Bolsonaro de ter desdenhado da pandemia, criado um governo paralelo, sabotado
os imunizantes, alastrado o vírus e entregado vidas a charlatães e lobistas de
cloroquina (como o próprio presidente e sua ilustre filharada).
Segundo a PF, o senador teria ocultado e
dissimulado a origem de R$ 1 milhão, em 2012, pago pelo Grupo
Odebrecht em troca de apoio político para a aprovação de projeto de lei em
benefício da empreiteira. Em nota, o acusado afirmou que a PF não tem
competência para indiciá-lo, que a investigação está aberta desde março de 2017
e que estranha o fato de o inquérito ter andado no momento em que a CPI
“mostra
todas as digitais do governo na vacina da corrupção”.
Cá entre nós e a torcida do Flamengo, esse pedido de
indiciamento é um movimento de retaliação da PF (que agiu a mando do
chefe do Executivo) à atuação do relator da CPI do Genocídio. Não morro
de amores por Renan e tampouco tenho procuração para defende-lo, mas é
impossível negar que, nesse caso específico, assiste razão ao senador. Mas isso
não faz dele o obelisco da probidade. Basta lembrar que ele e o então
presidente o STF (petista no úrtimo) costuraram um acordão para fatiar
o processo de impeachment de Dilma, evitando que ela fosse inabilitada
politicamente (em desconformidade com a Lei
do Impeachment, segundo a qual o réu perde o mandato e
fica inelegível por 8 anos).
Em dezembro de 2016, o Cangaceiro das Alagoas se tornou
réu por peculato e foi
afastado da presidência do Senado, já que réus não podem ocupar cargos
que os coloquem na linha
sucessória presidencial (não me perguntem como Arthur Lira é presidente
da Câmara). Por alguma razão, a decisão de afastar Renan paralisou os
trabalhos na Casa. Era como se nada ali funcionasse sem a presença da
quintessência da velha política de cabresto nordestina. Para piorar, apoiado
pela mesa diretora, senador se
recusou a acatar a decisão, como se sua deposição fosse uma opção, não
uma determinação emanada da cúpula do Judiciário.
Em fevereiro de 2019, Renan disputou a
presidência do Senado pela quinta vez, mas foi
derrotado por Davi Alcolumbre. Teve de tudo nessa
eleição. De 48 horas de chicanas legislativas ao “furto” da pasta de direção da
Mesa pela senadora Kátia Abreu; de reuniões que vararam a madrugada a
uma decisão questionável do STF (proferida às 03h45 em favor do voto
secreto, contrariando uma decisão do plenário). Ao cabo da primeira votação, foram computados 82 votos (o que é no mínimo
estranho, considerando que o plenário da Casa e composto por 81 senadores). Aos
olhos dos otimistas de sempre, a derrota acachapante de Renan sepultaria
a velha política clientelista, fisiologista e oportunista, mas tudo continuou como
dantes no Quartel de Abrantes.
Na política não há amigos nem inimigos. O desafeto de
hoje pode ser o aliado de amanhã, e vice-versa. No mundo real, o fato de você e
eu termos um inimigo em comum não nos torna amigos, mas seria burrice não unirmos
forças em prol da nossa causa. Pouco importa a cor do gato, desde que ele
cace o rato. Na relatoria da CPI, o senador alagoano superou minhas
expectativas. Mutatis mutandis, o mesmo vale para o senador Omar Aziz,
presidente da Comissão, que governou o Amazonas de 2010 a 2014 e foi alvo da Operação
Vértex. Segundo sua assessoria, não foi produzida
prova alguma nem apresentado indício de ligação do senador com qualquer
atividade delituosa”. O advogado de Aziz confirmou à CNN que
seu cliente está com o passaporte retido e alguns bens bloqueados, mas afirmou
que o juiz que decretou essas medidas era incompetente para julgar o caso.
Aliados do governo põem em dúvida a imparcialidade de Aziz
como condutor da CPI. Faz parte do jogo, como se costuma dizer. O diabo
é que brasileiros estão morrendo feito moscas enquanto maus parlamentares usam a
Comissão como palanque, depoentes mentem ou recorrem a chicanas para permanecer
calados, a tropa de choque do Planalto tenta relativizar a culpa do chefe pelas
520 milhões de mortes e o senador Rodrigo Pacheco, eleito presidente da
Casa com o apoio do Planalto, empurra
com a barriga a decisão sobre a prorrogação dos trabalhos da CPI.
O Brasil já teve 38 presidentes em 121 anos de história
republicana, mas nenhum deles — nem mesmo Dilma, a inefável — foi chamado
de genocida ou “eleito” pior
líder mundial no enfrentamento à Covid. Como governante, Bolsonaro
não passa de um inquilino do Palácio do Planalto que jamais desceu do palanque
e usa a máquina pública em prol de um projeto de poder eminentemente pessoal. Dos
poucos ministros que valiam dois mirréis de mel coado, a maioria já desembarcou
— uns por iniciativa própria, outros penabundados pelo chefe, por ciúme ou para
acomodar apaniguados do Centrão. E dá-lhe “gabinete
do ódio”.
“Envenenado” pelos filhos — seguidores atávicos do ex-astrólogo Olavo de Carvalho —, Bolsonaro demitiu (ou fez com que se demitissem) ministros do quilate de Gustavo Bebianno, Floriano Peixoto, Santos Cruz, Henrique Mandetta, Sergio Moro e Nelson Teich, rompeu com apoiadores de primeira hora (entre os quais Joice Hasselmann, Alexandre Frota e Janaína Paschoal) e, numa clara disputa por poder dinheiro do fundo partidário, desligou-se da oitava legenda que percorreu em seus 30 anos na política.
Expelido
da secretaria-geral da Presidência em fevereiro de 2019, Bebianno — o amigo
de fé, irmão, camarada e articulador da campanha passou
de aliado a desafeto após ter sido demitido por Zero Dois, chamou
de psicopata o presidente que ajudou a eleger e disse à Jovem
Pan que “a
democracia estava em risco devido à postura de Bolsonaro”. Bebianno
tencionava disputar
a prefeitura do Rio de Janeiro em 2020, mas foi fulminado por um
infarto agudo em março de 2019, quando estava escrevendo o livro “Uma
Eleição Improvável”, que desnuda os bastidores da campanha do capitão. De
certo modo Bebianno representava para Bolsonaro o que PC
Farias representou para Collor e Antonio Palocci para Lula.
Ignorar as fronteiras que separa o país do governante é uma
característica típica de líderes autoritários e demagogos que se escondem atrás
de apelos nacionalistas em busca de proteção. Bolsonaro não só deformou o
aparato estatal como vem usando a máquina pública para atingir desafetos e
alimentar picuinhas. Para proteger-se e blindar
sua enrolada prole, não se furta a vilipendiar instituições de Estado, afrontar
os demais Poderes e vituperar impropérios contra a imprensa diuturnamente. Para
ele, a Constituição é como papel higiênico: só tem utilidade nas horas de
necessidade. Sua “falta de absolutamente” se evidenciou ainda mais com a
pandemia. Uma gestão adequada, dizem os especialistas, poderia ter evitado
centenas de milhares de óbitos. Mas “e daí?” “Não sou coveiro”,
tripudia o presidente.
Nada com um dia após o outro. Bolsonaro entrará para a história como o presidente que reuniu todos os defeitos de seus antecessores sem deles tomar emprestada uma única virtude, além de ter sido o grande responsável pela maior produção de cadáveres de todos os tempos. Que o Diabo se apiede de sua alma.