Vale tudo quando se trata de prejudicar a Lava-Jato e seus protagonistas, até mesmo ignorar a Constituição, os códigos processuais, os bons princípios jurídicos, decisões anteriores das mesmas cortes superiores e a verdade dos fatos. Entre duas interpretações possíveis da lei, escolhe-se sempre aquela que favorece os corruptos e nega-se a própria letra da lei para proteger uma elite de intocáveis. Poucas coisas podem ser mais soviéticas do que isso.
Numa alusão aos casos do ex-ministro Geddel Vieira Lima — condenado por lavagem de dinheiro e organização criminosa depois que R$ 51 milhões foram encontrados num “bunker” em Salvador —, o presidente do STF salientou que as anulações de processos da Lava-Jato ocorreram por razões formais, e que situações de corrupção no Mensalão e no Petrolão não podem ser esquecidas, desmontando a falácia do PT e de seu eterno presidente de “honra”, segundo o qual não existe neste país vivalma mais honesta que ele.
Lula posa de inocente sem ter sido inocentado. Mal comparando, sua transmutação de condenado a “ex-corrupto” seria como a Justiça mandar soltar um ladrão preso pela Guarda Civil Metropolitana mediante o argumento de que a captura caberia à Polícia Militar. Tanto a decisão do então juiz Sergio Moro, no caso do tríplex — que foi objeto de mais de 400 recursos até transitar em julgado —, quanto a da juíza substituta Gabriela Hardt, no caso do sítio, foram confirmadas pelo TRF-4 e pelo STJ.
A palavra “inocente” não define a situação do pajé do PT, uma vez que as condenações foram anuladas por questões meramente formais e os processos deveriam ser reiniciados na Justiça Federal do DF. Todavia, o atraso de 5 anos na epifania que revelou ao ministro Fachin a “incompetência” da 13ª Vara Federal de Curitiba implicou a perda da pretensão punitiva estatal em razão do decurso do lapso temporal previsto em lei. Mas isso não significa que os crimes deixaram de existir ou que o réu foi inocentado.
Lula chegou a colecionar duas dezenas de ações criminais. Foi absolvido da acusação de corrupção passiva pelo favorecimento de empresas na edição da MP 471 de 2009 e inocentado (juntamente com Dilma e outros corréus) no processo do “Quadrilhão do PT”. Outra denúncia contra ele, “Frei” Chico e outros, envolvendo um suposto pagamento de mesada da Odebrecht ao irmão do petralha — que de frei nunca teve nada —, foi rejeitada por falta de provas.
Princípios básicos do direito e garantias constitucionais estão sendo ignorados para que o trabalho da Lava-Jato seja posto a perder e seus protagonistas sejam transformados de heróis em vilões da história. O movimento foi iniciado com narrativas vitimistas, avaliações desequilibradas e confusões sutilmente implantadas no seio da opinião pública por detratores da operação, que chegaram mesmo a recorrer ao crime puro e simples — falo da invasão de celulares das autoridades que conduziram força-tarefa em Curitiba.
Observação: Nunca é demais lembrar que o desmonte da mais bem-sucedida operação de combate à corrupção da história desta republiqueta de bananas contou com a participação ativa e decisiva de Bolsonaro, que, quando candidato, prometeu, entre outras falácias, pegar em lanças contra os corruptos (os motivos que o levaram a descumprir essa promessa já foram amplamente expostos em outras postagens).
O bons resultados da Lava-Jato não teriam sido possíveis sem as pessoas certas nos lugares certos, fazendo a coisa certa por anos a fio. Mas vivemos num país onde o poste que mija no cachorro, e a população — em sua maioria desinformada e, consequentemente, manipulável — valoriza a versão em detrimento dos fatos, a despeito do contraste entre a grandeza da realidade e a pequenez da narrativa.
Convenhamos que não é fácil jogar pelas regras quando o adversário não as respeita, e que é complicado combater o crime de colarinho branco sem cruzar a tênue linha que separa a legalidade da ilegalidade. Mas criminalizar o comportamento de procuradores e policiais federais que realizaram as investigações e dos juízes que julgaram os casos da operação é uma inversão de valores, uma “hermenêutica-tabajara” que os críticos da Lava-Jato usaram para redefinir critérios mediante os quais se decide o que é abusivo ou ilegal (haja vista o lamentável voto do todo-poderoso ministro Gilmar Mendes no julgamento da suspeição de Sergio Moro.
Inconformados com determinadas estratégias adotadas pelos procuradores da Lava-Jato — a primeira operação a usar amplamente a delação premiada — ou com alguma atitude dos magistrados que julgaram os réus, ministros “garantistas” impuseram a ideia de que aquilo que eles criticam é realmente “imoral”, “abusivo”, “excessivo” ou “ilegal” — como a proximidade entre os integrantes da força-tarefa e a imprensa, que chamou a atenção por seu ineditismo, mas se manteve nos limites daquilo que se permite aos responsáveis pela investigação.
A Lava-Jato, antevendo os movimentos que ocorreriam para desmontá-la — como ocorreu na Itália com a Operação Mãos Limpas —, manteve a sociedade informada sobre cada passo da operação e o funcionamento do enorme esquema de corrupção, e buscou acordos de cooperação com inúmeros organismos públicos e da sociedade civil, nacionais e internacionais. Mesmo assim, a opinião torta e tendenciosa dos advogados dos acusados (chicaneiros estrelados movidos a honorários astronômicos) foi aceita universalmente, inclusive por veículos de comunicação sérios e comprometidos com a luta contra a corrupção, que acabaram engrossando o coro dos que sempre quiseram sepultar a força-tarefa de Curitiba.
Não há como imputar aos policiais federais, procuradores e juízes nada além de episódios pontuais em que as escolhas feitas, mesmo quando consideradas inadequadas a posteriori, se deram dentro da margem de discricionariedade permitida a investigadores e julgadores. Vale lembrar que o então juiz Moro absolveu um quinto dos réus e negou centenas de recursos do MPF, o que afasta a tese de um conluio entre ele os procuradores. Mas vale tudo na campanha contra a Lava-Jato, inclusive transformar acertos em “erros”, “abusos” e “excessos” para desfechar o golpe de misericórdia sobre procedimentos e reputações. Dessarte, umas poucas decisões controvertidas num universo de dezenas de milhares serviram para estigmatizar uma operação que deveria ser julgada pelo conjunto da obra e pelos resultados obtidos.
O “desmonte moral” da Lava-Jato, potencializado pelo circo midiático da “Vaza- Jato” (detalhes nos capítulos anteriores), converteu criminosos em santos e investigadores e juízes em réus. A invasão de celulares do juiz e dos procuradores produziu um material — esse, sim, midiático — cuja autenticidade nenhuma perícia foi capaz de atestar, e mesmo obtidos ilegalmente serviram como “provas” em processos e recursos na Justiça.
Ciente desse “detalhe”, o hoje decano do STF fez questão de salientar que os diálogos “nem seriam necessários” para caracterizar a suspeição de Moro, mas, em flagrante contradição, discorreu longamente sobre eles em seu voto. E mesmo que o conteúdo divulgado pelo site panfletário fosse autêntico, o que ele mostra não vai além de uma interação entre juiz e partes que foi considerada normal até mesmo por ministros da corte (como disse o ex-decano Marco Aurélio Mello em entrevista ao jornal O Globo)
Para produzir os resultados que produziu, policiais federais, procuradores e juízes dedicaram até sete anos de suas vidas à difícil tarefa de desvendar um complexo esquema de corrupção, valendo-se das armas que a lei lhes facultava, fazendo escolhas difíceis quando havia margem para interpretações e linhas de atuação diversas, e toureando poderosos que se empenhavam em dificultar ao máximo esse trabalho. Justamente por terem funcionado, por terem rompido o ciclo clássico da impunidade e obtido resultados incomensuravelmente benéficos para o país, que essas escolhas e estratégias foram postas sob fogo cerrado no palco da opinião pública e nos tribunais, como se fossem mais escandalosas que o próprio esquema desvendado.
O legado da Lava-Jato foi injustamente vilipendiado. Defendê-lo é crucial para que o Brasil siga sonhando com o fim da impunidade daqueles que insistem em sangrar o país em nome do próprio bem-estar ou de projetos de poder que fraudam a jovem democracia brasileira.
Com Gazeta do Povo