Naquele fim de mundo, socorro médico era uma miragem, e numa época em que se usavam sanguessugas para tratar enfermidades, adiar a decisão era assinar o próprio atestado de óbito.
Até pouco tempo atrás, o câncer era uma sentença de morte inapelável. Hoje, o diagnostico precoce aumenta exponencialmente as chances de cura. Costuma-se dizer que reconhecer a existência do problema é meio caminho andado, mas a solução só virá a reboque das medidas cabíveis. E essa lógica se aplica também ao contexto político.
Em 2018, ao preferir a certeza do erro à possibilidade do acerto, a maioria irracional do eleitorado obrigou a minoria pensante a apoiar o "menos pior". Como a alternativa ao bonifrate do então presidiário mais famoso do Brasil era Jair Bolsonaro, o jeito foi tapar o nariz e votar no nhô-ruim para evitar a volta do nhô-pior. Claro que se podia esperar grandes coisas de um mau militar que trocou a caserna pela política para continuar pendurado no erário como parlamentar medíocre, mas tampouco se podia prever que o mandrião flibusteiro se tornaria o pior mandatário desde Tome de Souza.
Não faltaram pedidos de impeachment (foram mais de 140) nem evidencias de crimes comuns que justificassem a abertura de inquéritos do STF. Mas Rodrigo Maia viu erros, mas não crimes nas 60 petições que arquivou, Arthur Lira reputou inúteis as demais e o antiprocurador-geral jogou na privada o relatório CPI da Covid e o que mais ameaçou a permanência do napoleão de hospício na Presidência. Em suma, o carcinoma foi diagnosticado, mas nem o Legislativo nem o Judiciário se dignaram de extirpá-lo antes que ele evoluísse para metástase.
Bolsonaro sempre foi inimigo visceral das liberdades democráticas — tanto nos 15 anos de caserna quanto nos 28 de deputância —, mas seus arroubos antidemocráticos não eram levados a sério, nem mesmo quando ele defendia abertamente a censura e o fechamento do STF e do Congresso. A exemplo do escorpião da fábula, esse filhote da ditadura jamais foi capaz de agir contra a própria natureza. As "mudanças de comportamento" que ele encenou quando as circunstâncias o exigiram eram tão fictícias quanto a criação do mundo descrita no Gênesis.
Segundo Charles Baudelaire, "o maior trunfo do diabo é nos convencer de que ele não existe". Tudo que Bolsonaro queria era se perpetuar no poder a qualquer custo. Se tivesse contido seu furor uterino e governado o país dentro das "quatro linhas" que ele tanto evocava, talvez Lula estivesse gozando férias compulsórias em Curitiba e ele, Bolsonaro, conquistado um segundo mandato de maneira legítima.
Seu inconformismo com o resultado das urnas ficou claro no silêncio conivente diante das manifestações de correligionários que pregavam a retomada do poder. Em vez de ordenar o desmonte dos acampamentos de radicalizados ansiosos por uma inexequível virada da maré, o aspirante a tiranete acalentou a ilusão dos que agora clamam por uma inconcebível anistia por se verem na contingência de ver o sol nascer quadrado. Mestre em tirar castanha com a mão do gato, emendou à autoclausura a fuga para Miami. Homiziado na cueca do Pateta, assistiu de camarote aos desdobramentos dos ataques terrorista de 8 de janeiro — ápice da trama golpista que vinha sendo costurada nos bastidores havia meses.
Escorado no princípio da causalidade, o Conselheiro Acácio (personagem do romance O Primo Basílio, de Eça de Queiroz) ensinou que as consequências sempre vêm depois. Por tudo que fez, o falso messias que prometeu salvar o Brasil do lulopetismo corrupto se tornou um caso clássico de emenda pior que o soneto. Em abril, seus pernoites na embaixada da Hungria levaram apoiadores a temer sua prisão preventiva; quando Moraes não a decretou, o temor deu lugar à galhofa: "Xandão amarelou, virou xandinho [...] encarcerar Mauro Cid é uma coisa, e outra bem diferente é prender Bolsonaro sem uma sentença [...] o barulho seria grande no Congresso e nas ruas diante dessa covardia injustificável", mugiram os devotos do rebotalho da ditadura.
Inelegível até 2030, proibido de deixar o país e alvo de três inquéritos que tramitam no STF — todos sob a relatoria de Moraes —, Bolsonaro segue livre, leve e solto. Mas não há nada como o tempo para passar: no último dia 19, a Operação Contragolpe prendeu quatro militares de alta patente e indiciou Braga Netto, Mauro Cid, o próprio Bolsonaro e outros 34 envolvidos na "suposta" tentativa de golpe. "Suposta" porque o que tem rabo de jacaré, couro de jacaré, boca de jacaré e dentes de jacaré sempre pode ser um coelhinho inofensivo.
À luz da lógica e das trajetórias de alguns personagens, é difícil desconectar a trama posta em marcha logo após o resultado das eleições das atitudes e ligações do candidato derrotado, cujo vice na chapa anfitriou pelos menos uma reunião com os pretensos executores da eliminação Lula, Alckmin e Moraes — segundo informações do ex-ajudante de ordens ora delator e de um caminhão de provas reunidas pela PF num relatório de 884 páginas.
O direito ao delírio é livre, mas os deveres da realidade recomendam observar o andar da carruagem e incluir no radar uma mudança de planos. Na política, a fidelidade vai ao velório, mas assiste ao enterro no limite da beira da cova. Quem vive de votos sabe que eleições livres dependem de democracia plena, e que, em nome da própria sobrevivência, não convém associar-se a empreitadas liberticidas. Não tão depressa que pareça traição, mas nem tão devagar que denote conivência, a tendência é que o ferido seja deixado pelo caminho no ritmo do agravamento de sua situação.
O indiciamento de Bolsonaro por golpismo recebeu defesa morna de aliados — "para fingir que se importam", nas palavras de um de seus asseclas. No Xwitter, 23 dos 93 deputados federais do PL criticaram a PF nas 24 horas seguintes ao caso — alguns de forma genérica, sem sequer uma menção ao ex-presidente. No Instagram, outros 43 parlamentares da sigla também o apoiaram, mas sem grande ênfase. Um congressista do PL avalia que metade do grupo bolsonarista da sigla — estimado em dois terços dos parlamentares — está disposta a romper com o ex-presidente se surgir uma liderança forte para enfrentar o PT em 2026.
Segundo a Folha, a revelação do plano de assassinatos impactou mais o Congresso do que a divulgação dos 37 indiciados por golpismo. Boa parte dos nomes da lista já era esperada, mas não as evidências da trama para executar um presidente eleito, seu vice e um ministro da Suprema Corte. Avalia-se que a mera cogitação de usar aparato estatal para cometer assassinatos políticos é algo inimaginável, só encontrando paralelo nos anos de chumbo.
Os 55 áudios aos quais o Fantástico teve acesso deram fornecem detalhes das ações golpistas e confirmam o protagonismo do general Mario Fernandes. que tinha um roteiro para deputados bolsonaristas usarem durante a CPMI do 8 de Janeiro. O documento de três páginas descreve estratégias para criar uma narrativa em relação aos movimentos do envolvidos.
Em uma live no perfil do ex-ministro do Turismo, Bolsonaro ironizou as investigações. O general Braga Netto, igualmente denunciado por envolvimento no plano de execuções, afirmou que nunca se tratou de golpe, muito menos de assassinar alguém.
A esta altura, impõe-se uma reflexão: foi para isso que lutamos tanto pelas "Diretas Já"? É fato que, pior que nossos políticos, só mesmo um eleitorado que repete os erros a cada eleição, esperando um resultado diferente.
Ao contrário do sertanejo que optou por amputar a própria mão para não perder a vida, Bolsonaro escolheu cavar mais fundo em busca do caminho que o eternizaria no poder, mas que, pavimentado por uma fieira de crimes que não para de crescer, deverá levá-lo a ver o sol nascer quadrado. E quanto antes isso acontecer, tanto melhor.