“Da campanha presidencial de 2018 sobrará, como dado mais
revelante e toque de surrealismo, que o duelo decisivo se travou entre uma cela
de prisioneiro e um quarto de hospital, cujos ocupantes compartilham a bizarria
de ao mesmo tempo terem dominado o centro da trama e permanecido desaparecidos
da vista pública.”
Assim
Roberto Pompeu
de Toledo inicia sua coluna na edição nº 2602 da revista
Veja. Antes de conferir o restante do texto (magistral, como de costume), leia o que escreveu
J.R. Guzzo em sua coluna desta semana:
As eleições para eleger o novo presidente colocam o eleitor
brasileiro numa situação que nunca aconteceu antes. Eleições, normalmente, são
uma das ferramentas mais importantes da democracia — mas, na eleição deste fim
de semana, um dos lados tem como objetivo, caso vença o pleito, acabar com o
regime democrático no Brasil.
É uma droga de democracia, como todo mundo está cansado de
saber, mas, por pior que seja, ainda é menos ruim que uma droga de ditadura — e
é justamente isso que o consórcio formado pelo ex-presidente Lula, o PT e sua vizinhança quer fazer no país. Não falam assim, é claro.
Mas os atos concretos que prometem praticar depois de assumir o governo vão
deformar de tal maneira o poder público, os direitos individuais e a máquina do
Estado que o resultado prático vai ser a construção de um regime de força no
Brasil.
Não se trata apenas, como já aconteceu tantas outras vezes,
de eleger um presidente ruim. O problema, agora, é que um dos possíveis
finalistas, pelo que dizem há meses as “pesquisas de opinião”, tem um projeto
público de ditadura para o país.
Acabar com o Poder Judiciário, por exemplo, anulando o seu
tribunal mais elevado e interferindo nas decisões dos juízes e desembargadores —
isso é ou não é uma providência básica que toda ditadura, sem exceção, julga
indispensável tomar? Sim, é. Então: o candidato a presidente do PT promete que se for eleito vai criar
um negócio chamado “controle social na administração da Justiça”. Isso quer
dizer que as sentenças dos magistrados estarão sujeitas, no mundo real, a
comitês externos ao Poder Judiciário, com membros nomeados pelo governo.
Promete-se, também, “repensar” os conselhos nacionais da
Justiça e do Ministério Público. Todo mundo sabe muito bem o que significa
“repensar” alguma coisa neste país — é virar a mesa. No caso, querem criar
“ouvidorias”, compostas por pessoas que representem a “sociedade”, para vigiar
juízes e MP. Querem, também, criar algum sistema de cotas para a escolha de
juízes, de forma a “favorecer o ingresso e ascensão” de “todos os segmentos da
população” nas carreiras do Judiciário, sobretudo as “vítimas históricas de
desigualdades”. A coisa vai por aí afora, de mal a pior, mas o ex-deputado José Dirceu achou uma boa ideia acrescentar
um plus a mais: segundo disse, deveriam ser tirados “todos os poderes
do Supremo Tribunal Federal”. Segundo o pensador-chefe do PT, o “Judiciário não é um poder da República”. Quem manda, diz
ele, é o povo, através do voto. Além do mais, afirmou, o que interessa é “tomar
o poder”. Eleição é outra coisa.
O futuro governo Lula
também promete criar oficialmente a censura à imprensa no Brasil. (Isso mesmo,
governo Lula: o ex-presidente está
na cadeia, condenado como ladrão em primeira e segunda instâncias, mas toda a
estratégia do PT é provar que quem
vai mandar de verdade no país é ele, e não seu preposto nas eleições.) Como
acontece em relação à democracia, não se utiliza a palavra “censura”, assim
abertamente; o que anunciam é o “controle social dos meios de comunicação”. É
exatamente a mesma coisa. Esse “controle” não vai ser exercido pelo Espírito
Santo. Quem vai “controlar” são pessoas de carne e osso nomeadas pelo governo,
e “controlar” significa decidir o que a mídia pode ou não pode publicar. Isso é
censura — e o resto é conversa, sobretudo os desmentidos de que haverá censura.
A partir daí, só fica pior. Falam em “fortalecer” a prodigiosa TV Brasil, que
eles mesmos inventaram, consegue gastar 1 bilhão de reais por ano de dinheiro público
e até hoje tem audiência próxima ao zero. Falam em dar concessões de tevês e de
rádios para sindicatos, “coletivos” e “movimentos sociais” — e mais do mesmo.
O projeto do PT
inclui também uma “Assembleia Constituinte” paralela ao Congresso, como se fez
na Venezuela, para criar um novo regime político e social no país. O que será
isso? Nada fica dito em português claro, mas nem é preciso — basta ouvir o que
dizem todos os dias as lideranças do partido. Propõe-se orientação “política”
para o ensino básico, a parceria com governos criminosos, como os da Venezuela
e Nicarágua, e com ditaduras africanas, e um governo dos “povos do campo, das
águas e das florestas”, seja lá isso o que for. Mais que tudo, a candidatura do
PT quer a volta dos governos Lula-Dilma — que acabam de ser acusados
pelo ex-ministro Antonio Palocci de
gastar 800 milhões de reais em dinheiro basicamente sujo para se manter no
poder na última campanha presidencial. Francamente, não é preciso mais nada.
Voltando ao texto de Pompeu:
O roteiro tem um tanto de drama e outro de comédia. De
seguro, pode-se avançar que, vença Jair
Bolsonaro, o enfermo de São Paulo, vença Fernando Haddad, preposto e alter ego do prisioneiro de Curitiba,
conforme indicam as pesquisas, no dia seguinte o Brasil não terá sossego. Quis
a desditosa trama que a disputa se estreitasse entre representantes de tribos
irredutíveis. Para uma ou para a outra, a luta continuará.
Estamos, Deus nos acuda, diante de dois projetos de salvação
da pátria. Bolsonaro é o
"mito", para os seguidores. Lula,
depois da prisão, virou um pouco mais que humano. É o demiurgo que de sua cela
de prisioneiro, transubstanciada em caverna de anacoreta, ou santuário de
oráculo, transmite a mensagem divina.
Como sói acontecer quando a disputa é entre duas partes
irredutíveis, a democracia treme nas bases. Da parte de Bolsonaro a ameaça é explícita, e vem embalada para os dois casos —
o de derrota e o de vitória. "O PT
descobriu o caminho para o poder: o voto eletrônico", disse ele, numa de
suas falas no hospital. Se vencido, denunciará o sistema eleitoral. Em caso de
vitória, os últimos ataques à democracia têm ficado por conta do candidato a
vice, general Hamilton Mourão, autor
da hipótese de "autogolpe" - aquele em que o presidente derruba as
instituições em proveito próprio. Getúlio
desferiu-o ao proclamar o Estado Novo, em 1937. Costa e Silva o repetiu em 1968, ao baixar o AI-5. Alberto Fujimori o perpetrou no Peru,
em 1992.
Estamos, Deus nos acuda, diante de dois projetos de salvação
da pátria
A ameaça do PT à
democracia não é explícita, nem vem de seu candidato. Haddad é um intelectual com visão aberta e afeito ao diálogo. Mesmo
Lula tem credenciais de democrata;
governou em parceria com diferentes correntes e não se deixou levar pela
tentação do terceiro mandato. A questão é o resíduo bolchevista que habita o
núcleo duro do PT. Entre suas
crenças permanece, herdada dos antigos partidos comunistas, a de que é detentor
da chave da história. Ora, quem detém a chave da história não entra em eleição
para cumprir mandato; entra para fazer a história andar, tarefa de sua
exclusiva competência. Acresce que o duplo castigo do impeachment e da prisão
aguçou no PT a sede de vingança.
A campanha impôs encargos opostos aos dois candidatos. Ao
tosco Bolsonaro, impôs mostrar-se
mais preparado do que é. Ele foi parcialmente salvo pelo recolhimento que o
poupou dos debates e entrevistas. Ao preparado Haddad, impôs mostrar-se o tosco intérprete do impedido Lula. A ignorância de Bolsonaro teve seu espelho nos gravames
que sufocam a inteligência de Haddad.
"Il peggio non è
mai morto", o pior nunca está morto, dizem os italianos. Quem se
aflige com a campanha, imagine o dia seguinte à vitória de um e outro
candidato. Não será fácil para Haddad
desfazer-se da máscara de Lula, tão
afivelada lhe ficou no rosto. Haverá visitas comemorativas à cela em Curitiba e
consultas para a formação do ministério. O candidato foi apenas o bastante
procurador do verdadeiro vencedor, essa é a realidade dos fatos. Haddad enfrentará o desafio de
recuperar a identidade em meio a um frenesi de atenções ao prisioneiro e
pressões por sua libertação. De quebra, terá a amarrar-lhe os passos a bola de
ferro da militância e da estrutura do PT.
Enquanto Haddad
terá amparo de mais, Bolsonaro o terá
de menos. Nem com o Posto Ipiranga, como ele chama o economista Paulo Guedes, é certo que poderá
contar. "Em todas as nossas conversas, ameaçou abandonar o barco",
escreveu a jornalista Malu Gaspar,
no revelador perfil de Guedes que
publicou na revista Piauí. Numa
dessas ocasiões, o economista disse que vê-lo abandonar a campanha é "o
sonho de todos" que querem a desgraça de Bolsonaro, mas que "esse prazer" não lhes dará. E
acrescentou: "Só depois que ele for eleito". Tradução: no dia
seguinte, o candidato poderá encontrar o Posto Ipiranga fechado.
Nas poucas horas que faltam para a eleição, ainda haverá
chance para um candidato de centro? O problema do centro é sua invencível falta
de charme. E o colunista nem está se referindo a Alckmin. É o centro mesmo, em si.