Pedágio, rachid, mensalinho, tanto faz; a
prática é a mesma e remonta às mais priscas eras da política tupiniquim. Em poucas
palavras, os políticos engordam os próprios salários garfando parte da
remuneração dos assessores parlamentares. E o número absurdo de vassalos que suas
majestades podem contratar a expensas do Erário (nosso dinheiro) assanha seu
apetite pantagruélico: na Câmara
Federal, cada gabinete pode ter entre 5 e 25 servidores comissionados,
com salários que variam de aproximadamente R$ 1 mil a R$ 15
mil; no Senado o número de funcionários
dobra e a remuneração vai de R$ 4
mil a R$ 17 mil.
O fato de ser corriqueiro não torna o pedágio lícito. O
problema é que as pessoas não veem nada de errado em devolver o dinheiro em
troca do emprego, e consequências legais — como o enquadramento do denunciante
em irregularidade, exoneração do cargo e devolução integral de todos os salários
do período trabalhado — dificultam a denúncia.
No caso envolvendo o clã dos Bolsonaro (detalhado na postagem
anterior), há indícios clássicos dessa prática infame, notadamente devido à
coincidência das datas dos depósitos com a do pagamento dos salários na ALERJ. Todavia, até que Fabrício conte sua versão dos fatos, continuarão
sobrando perguntas e faltando respostas. Segundo a revista digital Crusoé, ele deverá justificar a movimentação “atípica” em sua conta
alegando pequenos negócios que realizava, como venda de eletrônicos importados.
Mas a explicação terá de ser esmiuçada pelos promotores, e como o COAF não detalha as transações,
uma quebra de sigilo bancário será determinante para a apuração dos fatos.
O mesmo relatório do COAF
que colocou o Fabrício sob as luzes
da ribalta lista “transações atípicas” de 75 assessores de 20 deputados de
partidos como PT, PSC e PSOL, que somam R$ 207
milhões. Aliás, o deputado Lúcio
Vieira Lima, acusado juntamente com o irmão Geddel de ter mocozado R$ 51 milhões num bunker em Salvador, garfava 80% do salário de
seus assessores. No PT, uma
prática semelhante chegou a ser institucionalizada, com funcionários de
gabinete sendo obrigados a destinar parte de seus salários ao caixa do partido.
No Rio Grande do Sul, um deputado foi denunciado em 2015 por funcionários do
próprio gabinete, num esquema estimado em R$ 800 mil por ano; em Goiás, o MP estadual denunciou 30
funcionários de um deputado e dois vereadores que devolviam até 90% do salário
em troca de não precisarem trabalhar.
Reitero que quem foi
eleito tendo o combate à corrupção como principal mote de campanha não pode
agir como os corruptos que prometeu enquadrar. Mas não se pode perder de vista que não elegemos um santo
para presidente, e sim um capitão reformado que ingressou na vida pública
como vereador e foi deputado federal por 27 anos, durante os quais apresentou
172 projetos, relatou 73 deles, conseguiu aprovar apenas dois e respondeu a 7 processos por quebra do
decoro parlamentar — as ações por injúria, apologia ao estupro e racismo
repercutem até hoje. Tudo isso era público e notório, ou seja, nada veio à luz depois do segundo turno das eleições.
Não dá para voltar no tempo e mudar o que se fez no passado,
mas é possível não cometer os mesmos erros no futuro. Jair Bolsonaro chegou ao poder com a promessa
de acabar com as velhas práticas na política. Os bolsomínions votaram nele porque aprovam suas propostas e admiram sua postura combativa, beligerante. Mas milhões de eleitores o fizeram para impedir
a volta do PT ao poder, depois que ficou definido, no
primeiro turno, que o embate final seria travado entre os dois extremos do
espectro político.
Por enquanto, o pedágio é uma suspeita a ser esclarecida. Mas é preocupante,
sobretudo pela influência de Fabrício junto
ao clã Bolsonaro: além do cargo
que ocupou nos últimos dez anos, o assessor-motorista emplacou as duas filhas e
a mulher em cargos comissionados, com salários entre R$ 9,8 mil e R$ 12 mil.
Uma das filhas conciliava a
profissão de personal trainer com as atividades de gabinete, que preveem
jornada semanal de 40 horas. Isso leva a crer que o pedágio envolveria salários de funcionários fantasmas, que
sequer apareciam para trabalhar, mas cujos salários engordavam o caixa
administrado por Fabrício Queiroz.
Na visão do General Mourão, seria “burrice ao cubo” um assessor fazer
caixinha de gabinete usando transferências bancárias. Eduardo Bolsonaro diz que não é “a pessoa errada”
para responder perguntas sobre o episódio. Deltan Dallagnol, procurador da Lava-Jato e alvo de elogios públicos de Jair Bolsonaro, cobra agilidade nas
investigações, e Flávio, que
até então se colocava como a voz do novo governo no Senado, quase que sumiu de cena. Nas
redes sociais, ele postou que “não fez
nada de errado e que é o maior interessado em que tudo se esclareça”.
Onyx Lorenzoni, futuro ministro da Casa
Civil, disse que o COAF deveria
ter agido 13 anos atrás, no mensalão — o que faz sentido, mas não anula o
imbróglio envolvendo o clã Bolsonaro. O próprio presidente eleito se antecipou ao risco
que o episódio ainda pode representar à sua imagem; numa live no Facebook, ele declarou: “Se algo estiver errado, que seja comigo,
com meu filho, com o Queiroz, que paguemos aí a conta deste erro, porque nós
não podemos comungar com erro de ninguém”.
O PT, matreiro
como o Tinhoso, decidiu não fustigar Bolsonaro em razão das
movimentações suspeitas do ex-motorista, preferindo esperar o caso crescer para
tentar acertar, mais do que o presidente eleio, seu ministro da Justiça, Sergio
Moro. Ainda assim, o partido entrou com três representações na PGR contra o clã, duas pedindo que se investigue Flávio, o ex-motorista, e a futura
primeira-dama, e uma para apurar se houve o vazamento da operação Furna da Onça — origem do levantamento
do COAF que resultou nesse rebosteio.
Foi mais um gesto político do que uma ação visando a resultados
práticos e imediatos. No Congresso, metade dos atuais deputados não foi reeleita, de modo que um pedido de abertura de uma CPI, a esta altura do campeonato, seria perda de tempo. Em janeiro, porém, a história muda. Resta saber o que mais vai surgir até lá.
Ainda há muito a dizer, mas este texto já está bem mais
extenso do que eu gostaria, e a paciência do leitor (como também a minha) tem
limites. Volto ao assunto numa próxima oportunidade, quando novos fatos
vierem a lume.