No Ensaio sobre a cegueira, o Nobel de literatura lusitano José Saramago anotou que “a cegueira é um problema particular entre as pessoas e os olhos com que nasceram”. E com efeito. As eleições se aproximam, Bolsonaro sobe o tom, mas nem o Congresso, nem o TSE, nem o STF parecem ver o golpe como uma possibilidade real.
O Supremo — que o ex-ministro Sepúlveda Pertence definiu como uma arquipélago de 11 ilhas independentes e em constante conflito — é rápido no gatilho quando lhe convém. A depender do acusado e da toga sob a qual o processo está, a decisão pode sair em duas horas, dois anos ou duas décadas.
Observação: Há no STF uma dezena de ações protocolados entre 1969 e 1987 — anteriores, portanto, à atual Constituição e ao ingresso do atual decano, que representa, juntamente com a PEC da Reeleição, a verdadeira herança maldita do governo FHC.
Depois que uma epifania revelou ao ministro Fachin — com seis anos de atraso — a incompetência da 13ª Vara Federal do Paraná para julgar os crimes do ex-presidiário Lula, o plenário do Supremo chancelou por 7 votos a 4 a decisão da 2ª Turma sobre a parcialidade do ex-juiz Sergio Moro. Mas não se viu essa mesma presteza por ocasião dos discursos golpistas de Bolsonaro no último Sete de Setembro.
O ministro Luiz Fux, presidente das togas, deu um "puxão de orelha" no mandatário de fancaria. O senador Rodrigo Pacheco, presidente do Congresso, fez um pronunciamento ainda mais morno e insípido. Dias depois, Bolsonaro leu uma patética cartinha de desculpas, redigida pelo igualmente patético Vampiro do Jaburu, e a paz voltou a reinar em Brasília das Maravilhas.
A suprema pusilanimidade vai cobrar seu preço. Resta saber se ainda dá tempo de evitar que o sociopata e seus acólitos transformem a eleição numa batalha campal. O atual presidente da TSE (aquele da epifania) afirmou há alguns dias que “o Brasil não consente mais com “aventuras autoritárias”. Cerca de um mês antes, o ministro Barroso disse que as Forças Armadas estão sendo orientadas a atacar o processo eleitoral, e que existe uma tentativa de levar a corporação ao “varejo da política”.
Por ordem de Bolsonaro o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, que deixou o comando do Exército para assumir o Ministério da Defesa, divulgou uma nota chamando Barroso de “irresponsável”. Se levarmos em conta que o próprio Bolsonaro já chamou Barroso de “filho da puta”, o general até que foi gentil.
Em entrevista ao Roda Viva do último dia 16, Rodrigo Pacheco afirmou que há “uma linha amarela pintada no chão que nenhum dos candidatos pode atravessar”, e que “o resultado das urnas será respeitado por todos, inclusive pelas Forças Armadas”. Segundo ele, os militares não devem ter compromisso político eleitoral. Resta saber se ele combinou com Bolsonaro, seus ministros fardados e os comandantes das FFAA.
Segundo a Folha, alguns presidentes de partidos e pré-candidatos à sucessão presidencial disseram ver os ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral e a ministros das cortes superiores como um comportamento golpista que precisa ser levado a sério. Procurados pela reportagem, os presidentes da Câmara, do Senado e do STF não se manifestaram. Líderes do PP e do PL (partidos que encabeçam o Centrão) e outros pré-candidatos se abstiveram de opinar. Entre as 13 entidades questionadas pela Folha, só duas responderam.
Bolsonaro flerta com o golpismo desde a campanha de 2018. Já deixou claro que não aceitará outro resultado que não seja a sua vitória em outubro. Fux e o Pacheco se fingem de paisagem. A coalizão Pacto pela Democracia lançou o manifesto “Em defesa das eleições” para cobrar a mobilização de instituições em defesa do processo eleitoral. O documento foi entregue aos presidentes do STF e do TSE, mas não se sabe ao certo o que suas excelências fizeram com ele.
Em meio a esse cenário dramático, o queridinho do eleitorado (segundo todas as pesquisas), que "se casou eleitoreiramente" com o picolé de chuchu, contraiu núpcias com a socióloga Rosângela Silva, a Janja. Em se confirmando a vitória do petralha, o casamento representará uma bizarra transição da cadeia para o Palácio do Planalto.
Janja e Lula começaram o relacionamento no fim de 2017. No período em que o hoje "ex-corrupto" ficou hospedado na Superintendência da PF de Curitiba, a namorada foi arroz de festa na vigília. Hoje, ela é figura central da campanha. Aparece nas viagens, nos comícios, nos encontros fechados e nos discursos do candidato. Tornou-se parte do marketing eleitoral de Lula, que contrapõe o amor de um candidato apaixonado ao ódio que o PT e seus sectários nutrem por Bolsonaro .
É falsa a percepção de que Lula fez uma pausa em sua campanha antecipada para se casar, tanto que inseriu suas núpcias no discurso e na coreografia da campanha. O movimento, que vinha sendo insinuado há semanas. tornou-se explícito no ato de lançamento da chapa Lula-Alckmin (outro casamento pra lá de bizarro, que, agora, deveria render ao petralha uma ação por bigamia).
Ao discursar, o palanque ambulante declarou que “um cara que tem 76 anos e está apaixonado, que está querendo casar (sic), só pode fazer o bem para esse país”. Com essa retórica de conto de fadas, o molusco usa o casamento para contrapor a atmosfera de amor em que está envolto ao discurso de ódio do adversário.
Com objetivo de ser uma cerimônia íntima e pessoal, sem pinta de grande evento político, foi recomendado aos convidados que não ficassem falando no assunto — nem o local foi divulgado previamente. Mas comenta-se que mais de R$ 100 mil foram gastos só com bebidas. O espumante escolhido pelos noivos foi o Cave Geisse Brut, que custa em média R$ 130 a garrafa (podendo chegar a R$ 800, conforme a safra).
A julgar por seu comportamento, Janja não será uma primeira-dama decorativa. Ela opina, participa da rotina de Lula de uma maneira que os petistas que privam da intimidade do pajé do PT não estavam acostumados a ver. O casal deve passar a lua de mel em São Paulo, e a agenda externa deverá retomar na semana que vem, com viagem para o Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
Observando-se a movimentação, tem-se a impressão de que, se Lula realmente for eleito, muita gente sentirá saudades da discrição da ex-primeira-dama Marisa Letícia — sobre cuja sepultura o viúvo sapateou, usando como palanque o esquife da falecida.
Voltando ao que eu dizia no início deste post sobre a cegueira generalizada diante de um possível autogolpe de Bolsonaro, conta-se que o padre da única igreja de uma bucólica cidadezinha do interior era muito devoto e fervoroso. Um dia, a cidade foi inundada por um temporal diluviano.
O prelado continuou no altar, rezando fervorosamente. Quando a água lhe chegou à cintura, um homem com uma canoa lhe ofereceu ajuda. “Não precisa, meu filho; Deus há de me ajudar”, disse o religioso. O homem se foi na canoa e o padre continuou a rezar.
Com a água no beiço, o pároco se recusou a embarcar na lancha da Defesa Civil, afirmando novamente que Deus o salvaria. Minutos depois, já do alto torre, enjeitou a ajuda dos bombeiros, que tentaram resgatá-lo de helicóptero. Quando chegou ao Céu, o batina reclamou a Deus:
— Confiei tanto no Senhor! Por que me abandonou quando eu tanto precisava de Sua ajuda?
E Deus respondeu:
— Mandei uma canoa e você não subiu; mandei uma lancha e você recusou; mandei um helicóptero e você não embarcou. Queria que eu fizesse o quê?”