Para os que gazeteavam nas aulas de História, relembro que a renúncia de Jânio Quadros e a aversão dos militares ao vice João Goulart levaram ao golpe de Estado que prefaciou a ditadura que Bolsonaro sempre negou e seu vice classificou de ditamole. A vacância da Presidência foi declarada em 1º de abril de 1964, mas a História marca o evento no dia anterior, para evitar associações jocosas com o "dia da mentira".
Quando a Marcha da Família com Deus pela Liberdade escancarou o apoio civil ao golpe, o Congresso, ameaçado de fechamento, chancelou a derrubada de Jango e a "eleição" de Castello Branco, então chefe do Estado-Maior das Forças Armadas. Quem apoiou o golpe acreditando que a democracia seria restabelecida com eleições diretas no ano seguinte deu com os burros n'água: a ditadura se estendeu até 1985, com outros quatro generais se revezando no poder, num jogo de cartas marcadas onde o partido de oposição (MDB) era meramente figurativo.
Os milicos não retornaram para a caserna graças ao espírito democrático de Geisel e Figueiredo, mas devido às manifestações populares pelas Diretas Já. Todavia, embora Ulysses Guimarães, Mário Covas, Leonel Brizola e Ciro Gomes figurassem na lista dos 22 postulantes ao Planalto, o eleitorado brasileiro, sempre inclinado a fazer as piores escolhas, escalou para o embate final um caçador de marajás demagogo e populista e um ex-metalúrgico populista e demagogo. E o resto é história recente: a vitória de Collor e o "nós contra eles" de Lula pavimentaram o caminho para a polarização que, 29 anos depois, dividiria o país em sectários do lulopetismo corrupto e devotos do bolsonarismo boçal.
Se dependesse de Bolsonaro — o filhote da ditadura que, segundo ele, deveria ter torturado e matado muito mais gente —, a democracia jamais teria sido restabelecida. Agora, estimulado pela vitória de seu ídolo — um criminoso condenado, já indiciado por tentar melar a eleição anterior e às voltas com inéditas pendências judiciais — o capetão declarou que "quase tudo o que acontece lá acontece aqui", que "partiremos para uma revolução em 2026" e que "podemos ter uma bancada enorme de senadores e deputados de outros partidos do nosso lado".
A torcida de Lula pela vitória de Kamala Harris foi desnecessária, pois ninguém ignorava sua aversão por Trump, e inútil, já que o poder o petista como cabo eleitoral tornou-se discutível até no Brasil. Compelido pelo fato consumado a parabenizar o eleito, disse o Sun Tzu de Atibaia que "o mundo precisa de diálogo e trabalho conjunto", esquecendo-se de lembrar (ou lembrando-se de esquecer) que Trump retornará ao poder com maioria no Congresso e uma Suprema Corte de viés conservador, e que sua coleção de processos judiciais já foi encostada no arquivo. Alguém deveria lembrar ao petista que Trump converterá a Casa Branca numa sucursal do inferno, e que o governo brasileiro terá que dialogar com o capeta, pois ignorar os fatos não faz a realidade desaparecer.
Como para comprovar o ditado "quem sai aos seus não degenera", Zero Um declarou que a "via crucis" que Trump enfrentou nos EUA é "muito parecida com a que seu pai está atravessando aqui", e que, "se descondenaram o Lula depois de tudo o que ele fez", não há motivo para a inelegibilidade de Bolsonaro não ser revertida. E Zero Três foi além: "Eu não vejo eles [o governo norte-americano] mandando recado para o TSE ou algo assim, mas o STF... um ou dois juízes que ficam mais à vontade para adotar suas políticas... eles vão ficar com o pé atrás."
"Há dois anos querendo me incriminar como golpista, vai à merda, porra...", disse Bolsonaro, referindo-se ao ministro Alexandre de Moraes, talvez com o intuito de manter na ponta dos cascos a récua de muares descerebrados que lhe babam os ovos. Mas a porca torce o rabo quando ele insinua que Trump gostaria de vê-lo anistiado. Cabe a Moraes autorizar ou não o mentor intelectual e principal beneficiário do 8 de Janeiro comparecer à posse de sua musa inspiradora, mas dois pedidos de devolução do passaporte já foram recusados, e tudo indica que desta vez não será diferente, com ou sem a ameaça de retenção do visto feita por um grupelho de congressistas trumpistas ao ministro do STF.
Pode-se gostar ou não de Trump, mas não se pode negar que ele é um fenômeno político. Já Bolsonaro não passa de uma imitação grosseira. O peruquento se manteve à tona por quatro anos, e agora está de volta, ao passo que o clone mal-ajambrado entrou para a História como o único presidente brasileiro que tentou a reeleição e foi barrado nas urnas — e, de quebra, corre o risco de acabar na prisão.
Se tiverem juízo, a PGR e o STF se apressarão em demonstrar que suas palmeiras não fornecem sombra para delinquente nem seus sabiás cantam mais afinados que os melros-azuis na terra do Tio Sam. As eleições foram usadas como pretexto para retardar seu indiciamento, mas agora não há motivo para que ele não se torne réu, seja julgado e sentenciado. Ao contrário do que disse o embaixador americano nos anos 1960, o que pode ser bom para os EUA pode não ser necessariamente bom para o Brasil.