Se há uma coisa que dignifica o Brasil é sua capacidade de
sobreviver a maus governantes e à mediocridade do eleitorado. Dizia-se antigamente
(quando o país ainda crescia) que seguíamos adiante não graças aos mandatários que
tínhamos, mas
apesar deles. Mais cedo ou mais tarde (torçamos
para que seja mais cedo), tanto a
pandemia quanto
Bolsonaro vão passar (não necessariamente nessa ordem). É possível até que esse presidente já "tivesse passado" se não insistíssemos em lhe dar palanque, levando
a sério as estultices que ele diz ou faz dia sim, noutro também.
Por outro lado, como ignorar um presidente que convoca um desfile de tanques defronte ao Congresso Nacional para pressionar os deputados a aprovarem a PEC do voto impresso? Se você prefere acreditar que tudo não passou de "mera coincidência", sinta-se à vontade, cara Velhinha de Taubaté. Tudo bem que a blindadociata acabou virando motivo de chacota e o retrocesso defendido pelo mandatário, sepultado não uma, mas duas vezes. Mas o assunto deu pano pra manga, e era exatamente isso que Bolsonaro queria. Por essas e outras, melhor seria impedi-lo de continuar dizendo e fazendo besteiras — por mais deselegante que seja calar um idiota, deixá-lo prosseguir é de uma crueldade a toda prova. Com o Brasil.
Observação: Vale lembrar que "idiota" significava originalmente
“homem privado”, isto é, metido com seus próprios afazeres. Etimologicamente,
a palavra não carrega juízo de valor, mas ao sentido de "leigo em questões do Estado" somou-se a
conotação de “pessoa simples, sem instrução, iletrada”, e, mais adiante,
de “pateta, parvo, tolo”. No século 19, o vocabulário psiquiátrico se
encarregou de agravar o peso da palavra transformando-a em sinônimo de
“retardo mental grave”. É interessante notar como aquela
acepção relativamente branda de idiota — hoje inteiramente obsoleta — persistiu
nas línguas que herdaram a palavra, ao lado do sentido moderno, durante a Idade
Média e mesmo além dela. Dois exemplos deixam isso claro. O Webster’s
registra que, em meados do século 15, o teólogo inglês John Capgrave
podia se referir aos apóstolos de Cristo como “doze idiotas” sem temer a
Inquisição. De modo semelhante, o filólogo brasileiro João Ribeiro conta
no livro “Curiosidades
verbais” que “[no século 16] havia nas aldeias portuguesas juízes
idiotas, simples juízes de paz e de quem não se exigia mais que os bons
costumes, a experiência, a probidade”.
O ideal seria não termos precisado apoiar Bolsonaro para evita um mal maior (que agora eu já nem sei se seria mesmo maior). Mas não
vivemos num mundo ideal, e a vida nem sempre é justa. Fato é que, para escantear
o patético bonifrate do presidiário de Curitiba, libertamos o ifrit do
"bolsonarismo boçal", e agora não sabemos como prendê-lo de volta na
garrafa.
A técnica do capitão continua a mesma que ele vem usando desde o início de
seu governo: sempre que surge um problema que transcende sua capacidade de
resolver (o que, convenhamos, tem se repetido diuturnamente), Bolsonaro aciona sua
usina de crises. Guardadas as devidas proporções, trata-se
da mesma estratégia usada por ilusionistas de palco, que se fazem
cercar de belas assistentes em trajes sumários para desviar a atenção da
plateia enquanto executam seus truques de prestidigitação.
Governar um país como o Brasil não é fácil. Sobretudo em
meio à maior pandemia sanitária de toda a história recente. Mas também havia problemas
quando Lula e Dilma se sentaram na poltrona mais cobiçada do
Palácio do Planalto.
Longe de mim negar que os 13 anos, 4 meses e 12 dias de gestão
lulopetista produziram danos que o país levará décadas para superar, mas isso é
outra conversa. Mas a questão que se coloca é a seguinte: se um retirante
nordestino pobre e analfabeto (como o próprio Lula se definiu mais de
uma vez), que se orgulha de nunca ter lido um livro na vida, conseguiu ser eleito Presidente em 2002 (depois de três tentativas malsucedidas, em 1989, 1994 e
1998), reeleger-se
em 2006 (a despeito do escândalo do mensalão,
que colocou na cadeia diversos
cardiais da seita petista) e eleger
um "poste" para sucedê-lo), presidir o Brasil está longe de ser uma tarefa que o escritor taubateano Monteiro Lobato — se ainda caminhasse entre os vivos e resolvesse atualizar sua obra — incluiria
numa nova edição de Os
Doze Trabalhos de Hércules.
Observação: A título de curiosidade, o esquema do mensalão só
veio a público graças às revelações bombásticas do então deputado Roberto
Jefferson (que foi preso
preventivamente há pouco mais de duas semanas e denunciado
pela PGR por incitação ao crime no último dia 30).
Durante a ditadura militar tal poste em curto-circuito permanente atendeu por Wanda,
Lúcia e Maria. Lula levou-a à vitrine eleitoral travestida
de "gerentona", mas ela não passava de uma incompetente de
quatro costados. Basta lembrar que levou à falência, em apenas 17 meses, duas
lojinhas de R$ 1,99 que havia montado em Porto Alegre.
Só no Brasil um
prodígio dessa catadura consegue, sem saber atirar, virar modelo de
guerrilheira; sem ter sido vereadora, virar secretária municipal; sem passar
pela Assembleia Legislativa, virar secretária de Estado; sem estagiar no
Congresso, virar ministra; sem ter inaugurado nada de relevante, fazer posse de
gerente de país; sem saber juntar sujeito e predicado, virar estrela de
palanque; e sem ter tido um único voto na vida, virar presidanta da República
(vale ressaltar que foi preciso expeli-la do cargo antes que ela acabasse de demolir
a economia, mas isso também é outra conversa).
Voltando a Bolsonaro: O TSE cortou a fonte de recursos do
gabinete do ódio e o ministro Alexandre de Moraes mandou prender Roberto
Jefferson (que se tornou bolsonarista desde criancinha e virou carne e unha
com o mandatário de turno). Chegou-se a falar até na possibilidade de prisão de
Zero Dois — o pitbull da família, na definição de Zero Rachadinha Um.
O próprio presidente é investigado em sete inquéritos, e a CPI do Genocídio deve arrolá-lo em mais meia dúzia de crimes.
Há inflação alta, perspectiva de queda
no crescimento e falta dinheiro para o necessário saco de bondades eleitoreiras.
Paulo Guedes, mais perdido que cego em tiroteio, ora recorre (sem grande
esperança) a expedientes estapafúrdios — como aumento de impostos, PEC do
calote e até a venda de um tesouro cultural. Uma das perguntas que se colocam (pois há diversas) é: como alguém que é responsável um descalabro dessa magnitude ainda aspira à reeleição? Responda quem souber.
Em sua coluna na revista Veja, o jornalista Ricardo
Rangel anotou que é hora de deixar Jair Bolsonaro ir embora. A meu
ver, já passou da hora. A popularidade do governo despencou. A rejeição ao presidente cresceu. A vantagem de Lula, o ex-corrupto, tem aumentado dia
após dia. Entidades civis, empresários, economistas já elaboraram manifestos em
repúdio ao governo. Rodrigo Pacheco (que pode vir a ser pré-candidato à
Presidência) passou de apoiador do despirocado a defensor da
democracia. Senadores denunciaram o Passador-de-Pano-Geral da República (de quem um terço dos subprocuradores-gerais cobraram uma ação efetiva) pelo crime de omissão. Mais da metade dos ministros do STF demonstra irritação com a omissão do vassalo do capitão, mas, mesmo assim, o morubixaba da aldeia conseguiu reconduzi-lo ao comando do MPF com o aval de 55 senadores, 10 votos contrários e uma abstenção.
Para as Forças Armadas, Bolsonaro é fonte permanente de
constrangimento e irritação, seja por destratar Mourão, seja por proibir
a punição de Pazuello, humilhar o comandante do Exército, usar tanques
para intimidar o Congresso e compactuar com um esquema de corrupção na Saúde
que inclui uma dúzia de coronéis.
Assim como o
escorpião da fábula, nosso indômito capitão é incapaz de agir contra a
própria natureza. Sua reação à perda de apoio é mais agressividade — o que
afasta ainda mais os apoiadores, alimenta as ações do Judiciário e torna
mais difícil para seus aliados (ou cúmplices) defendê-lo. Ele parece mergulhado
em areia movediça: quanto mais se afunda, mais se debate, e quanto mais se
debate, mais se afunda. Mas também o país está na areia movediça, pois Bolsonaro
nos impede de respirar. Collor e Dilma caíram por muito menos,
mas o presidente da vez conta com a omissão deliberada de Augusto Aras
(sempre ele!), o apoio escancarado de Arthur Lira (e do Centrão)
e a aparente sustentação dos generais (não todos, é verdade).
Aqueles que
sustentam o presidente porque receberam e recebem dele inúmeras vantagens,
precisam entender que o país não aguenta mais catorze meses sob um presidente
que todo dia esgarça o tecido institucional. É hora de ter espírito público,
sair da frente e deixar a institucionalidade seguir seu curso.
Resta saber até onde a instabilidade poderá nos levar. Dado
seu viés nitidamente parlamentarista, a Constituição de 1988 buscou impedir
que apenas uma força prevalecesse — de forma isolada — sobre as demais. Para tanto, limitou o
poder do chefe do Executivo e impôs uma realidade multipolar de atores e de
tendências. Daí por que Lula e Bolsonaro só conseguiram alguma
governabilidade depois que fizeram alianças com forças políticas de outros
campos ideológicos.
O molusco empreendeu uma caminhada ao centro ainda na
campanha eleitoral de 2002, e consolidou-a com as ações permeadas pelo escândalo
do mensalão, em 2005. Bolsonaro, que anunciou o fim do toma-lá-dá-cá,
rendeu-se às coalizões em 2020 para assegurar alguma proteção política no final
de sua gestão e conquistar a tão ambicionada (e cada vez menos provável)
reeleição.
Pelo andar da carruagem, Bolsonaro chegará a outubro
de 2022 (caso o imprevisto não tenha voto decisivo na assembleia dos
acontecimentos) como um zero à esquerda. Para quem gosta (e acredita) em
pesquisas, as mais recentes dão conta de que Lula passaria para o
segundo turno com 40% dos votos, deixando o capitão no chinelo (24%). Numa
hipotético embate final entre ambos, o petralha venceria por 51% a
32%. Por outro lado, nunca é demais lembrar o que disse Magalhães
Pinto: "Política é como as nuvens no céu; a gente olha e elas estão de um jeito,
olha de novo e elas já mudaram."
Considerando o conjunto da obra, a derrota do mandatário de turno será motivo de celebração. O detalhe — e o diabo mora nos detalhes — é
que, em se mantendo as atuais condições de temperatura e pressão, o pior presidente que este país já teve desde a redemocratização será derrotado pelo
ex-presidente corrupto, condenado a mais de 25 anos de cadeia, que teve a
ficha-suja lavada a toque de caixa e os direitos políticos restituídos num
passe de mágica. E mole ou quer mais?
Noves fora os bolsonaristas de raiz, ninguém mais vê graça nas ameaças e impropérios que o mandatário de fancaria regurgita
cada vez que acha uma caixa de sabão para lhe servir de
palanque. No último sábado, durante o 1°
Encontro Fraternal de Líderes Evangélicos de Goiás, Bolsonaro brindou os
"reverendos" com a seguinte pérola: "Eu tenho três
alternativas para o meu futuro: estar preso, estar morto ou a vitória. Pode ter
certeza de que a primeira alternativa não existe. Estou fazendo a coisa certa e
não devo nada a ninguém. Sempre onde o povo esteve, eu estive" (esqueceu-se
o petulante delirante de mencionar uma quarta alternativa, que é justamente a
mais provável: sua derrota).
Ao final da peroração, o "mito" levou a audiência ao
Nirvana repetindo um bordão que já está ficando cansativo de ouvir, mas vá lá: "Deus me colocou aqui, e somente Deus me tira daqui". Na
humilde opinião deste obscuro articulista, o Senhor das Esferas não teve nada
com isso. Talvez o Diabo (falo
daquele com chifres e rabo, não o de nove dedos), mas isso também já é
outra conversa.
Quanto maiores as probabilidades de Bolsonaro ser defenestrado ou não conseguir se reeleger, maior e mais barulhento ficará o repertório de
blasfêmias contra o estado democrático de direito, pois Bolsonaro precisa manter desperta sua tropa miliciana e estimular o assalto à democracia. Quando mais não seja porque esse é o único recurso que lhe resta (governar, na acepção da palavra, está fora de cogitação).
Mas, cá entre nós, alguém acha que o Messias aceitará
placidamente a derrota? Que "acreditará" no resultado das urnas e na
lisura do processo eleitoral? Não é bem essa a impressão que se tem ao vê-lo e ouvi-lo desancar a democracia, afrontar a Constituição, tripudiar das
instituições e dizer que está cagando para a CPI. O presidente exsuda
autogolpe por todos os poros, e a coisa pode piorar no feriado da
Independência, durante as manifestações a favor e contrárias ao desastre que ele qualifica de "seu governo".
A pergunta que não quer calar é: Por que ninguém ainda puxou
o freio desse trem fantasma? Estão esperando o quê? Que a composição
descarrile? Que seja preciso atirar na cabeça do maquinista despirocado para
evitar que sejamos todos atropelados por sua récua de apoiadores destrambelhados?
Responda quem souber.