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terça-feira, 24 de outubro de 2023

QUEM FOI QUE INVENTOU O BRASIL? FOI SEU CABRAL! FOI SEU CABRAL!

 
Nem a derrota foi capaz de restituir à família Bolsonaro o senso de ridículo — talvez porque não é possível recuperar algo que nunca se teve. Autoconvertido em cabo eleitoral do aloprado Javier Milei, Zero três defendeu a liberalização do comércio de armas na Argentina, talvez achando que estava na mesa de almoço da família ou discursava para um grupo de CACs, quando na verdade ele perorava para uma sociedade crivada de problemas como superinflação, recessão, déficit fiscal e social, que não se revolvem na bala. 
Os entrevistadores apresentaram o entrevistado ao ridículo: "Quão generosos são os argentinos, para receber este tipo de gente", disse um deles, enquanto outra lembrou que foi por isso que os brasileiros defenestraram do poder o pai do entrevistado. Resta saber se o deputado fritador de hambúrguer passou vergonha entre os portenhos por conta própria ou à expensas do contribuinte brasileiro. Se as despesas forem bancadas pela Câmara, o ridículo se converte num escárnio digno de ação por improbidade.


***

O título desta postagem remete a uma marchinha carnavalesca que fez muito sucesso durante o reinado de Momo de1934 (para relembrá-la, clique aqui). Lamartine Babo usou o verbo "inventar" de forma jocosa, mas a história do "descobrimento", como é contada nos livros didáticos, é tão fantasiosa quanto a "fábula da maçã" — que inspirou outra marchinha para o Carnaval de 1954. 
 
Consta que o f
idalgo, comandante militar, navegador e explorador português Pedro Álvares Cabral zarpou do porto de Lisboa em 9 de março de 1.500, que seu destino era a cidade indiana de Calicute, e que, em meio ao Mar Tenebroso (como o Oceano Atlântico era chamado pelos intrépidos navegantes de então), sua esquadra foi tirada da rota original 
— por uma borrasca, segundo alguns, ou por uma calmaria, segundo outros  e deu com os costados no que hoje é o litoral da Bahia.
 
A "Relação do Piloto Anônimo" — que, ao lado das cartas de Caminha e de Mestre João, é um dos três testemunhos diretos do descobrimento que sobreviveram ao tempo —, relata que a nau comandada por Vasco de Ataíde se perdeu em 23 de março, embora não houvesse vento forte nem contrário para que tal acontecesse. Mas o
utros mistérios cercam o desaparecimento da embarcação e, de certo modo, o "descobrimento" que ocorreria dali a um mês. A começar pelo identidade do capitão da nau tragada pelo mar. 

Cronistas como Fernão Lopes de Castanheda, Damião de GóisJoão de Barros e Gaspar Correia se dividem entre Luís Pires e Pero de Ataíde, e afirmam que a embarcação conseguiu retornar a Lisboa. Caminha, do alto da autoridade de escrivão oficial da armada, anotou que o capitão da São José era Vasco de Ataíde: "Na noite seguinte, segunda-feira, ao amanhecer, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com sua nau sem haver tempo forte ou contrário para que assim pudesse ser". O próprio D. Manuel, em carta escrita em 1502, confirma o escriba e assegura que não se teve mais notícias da embarcação.

Escrevendo mais de uma década depois dos acontecimentos, Castanheda, Góis, Barros e Correia foram unânimes em afirmar que o Brasil foi descoberto por acaso, agasalhando a tese do desvio de rota provocado pela tormenta... que simplesmente não ocorreu. Mas a questão que se destaca é: se não houve tempestade, o que teria causado o desaparecimento da embarcação? 


De acordo com o historiador naval e almirante brasileiro Max Justo Guedes, a incidência de cerrações e nevoeiros é comum na região do arquipélago de Cabo Verde, e que, ao tresmalhar-se da frota, a nau comandada por Ataíde se chocou contra os recifes de João Leitão, a 17 milhas ao sul da Ilha de Boa Vista. Mas as circunstâncias que envolveram o naufrágio reforçam a tese de que o descobrimento do Brasil não foi casual


O historiador português Jaime Cortesão — defensor da tese da intencionalidade — faz outra leitura do episódio: "Caminha, que em breve iria dedicar páginas e páginas inteiras à descrição do aborígine, menciona o naufrágio sem uma palavra de lástima", embora 150 homens tivessem engolidos pelo mar, contribuindo para a longa história trágico-marítima de Portugal.


ObservaçãoNo Brasil de hoje, "caraveladesigna qualquer embarcação a vela, mas somente três dos navios da frota de Cabral mereciam ser chamados como tal. Os outros dez era "naus" (incluindo uma "naveta" que transportava mantimentos extras). As caravelas propriamente ditas eram embarcações menores  elas mediam 22 m de comprimento, tinham apenas dois mastros, um pequeno castelo à popa e velas triangulares ou quadradas — e transportavam até 80 tripulantes. Já as naus eram maiores (até 35 m), tinha vários conveses, três mastros, dois castelos e capacidade para transportar até 150 tripulantes. 
 
Continua...

sexta-feira, 31 de julho de 2020

A CULPA É DO CABRAL — FINAL


Sem Sergio Moro na Esplanada dos Ministérios, forçado a engolir o discurso em que condenava o toma-lá-dá-cá e vendo-se sem alternativa senão vender a alma ao Centrão para salvar o próprio rabo, Bolsonaro alinhou-se a parlamentares com culpa no cartório e magistrados garantistas de ocasião em prol da ressurreição da pouca vergonha que vigeu até 2014, quando político corrupto não era incomodado pela Justiça.

Alvo de investigações (a exemplo de seus três filhos com mandatos eletivos), o Messias que não faz milagres arquivou sob a letra "L" de lixo a cruzada contra a corrupção, juntamente com outras promessas feitas pelo candidato Bolsonaro que o presidente Bolsonaro resolveu não cumprir. Interessa-lhe mais é escudar-se de um possível (ainda que improvável) impeachment ou de uma (igualmente incerta, mas não descartada) denúncia no STF, donde a importância de cooptar os líderes do Centrão e manter o PGR motivado, usando como a cenoura que faz andar o muar a indicação do chefe do Ministério Público para a vaga de Celso de Mello no Supremo (mais uma promessa que só o tempo dirá se será cumprida).

Alguém deveria alertar o mandatário de que base programática não é base pragmática, articulação não é artimanha, coalizão não é conchavo, negociação não é negociata e, por último, mas não menos importante, promessa feita durante a campanha e não cumprida ao longo do mandato é estelionato eleitoral.

Quanto ao pedido de Caminha ao rei D. Manuel (assunto mencionado de passagem no post anterior), o exemplo do escriba e seu genro condenado vem à tona para comprovar que a corrupção, travestida de nepotismo, aportou na costa tupiniquim em abril de 1500. A semente da praga, jogada na terra onde em se plantando tudo dá, estaria no final da carta:

E desta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta terra vi. E se a um pouco me alonguei, Ela me perdoe. Porque o desejo que tinha de Vos tudo dizer, mo fez proceder assim pelo miúdo. E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro, o que Dela receberei em muita mercê.”

Segundo os historiadores, o escriba estava preocupado com sua filha única, Isabel de Caminha, cujo marido, um certo Jorge de Osório, preso por roubo, fora degredado para a ilha de São Tomé, na África.

Observação: À época, vigiam em Portugal as Ordenações Afonsinas, de 1446, que haviam separado o direito canônico do direito temporal. Os delitos sujeitos ao degredo variavam da sedução de moça virgem ou viúva honesta até a adulteração de moeda. Roubo, lesões corporais, má-fé em transações comerciais também podiam levar o acusado a uma estadia forçada no ultramar (dependendo da gravidade do crime, o degredo era perpétuo ou por prazo determinado). Só a condenação às galés ou a pena capital eram penas mais pesadas que o banimento para a África e, mais tarde, para o Brasil, já sob as Ordenações Manuelinas (1521) e Ordenações Filipinas (1603).

Não se conhece a duração do castigo imposto a Jorge de Osório, nem quanto tempo cumpriu na ilha de São Tomé, ou mesmo se D. Manuel atendeu o pedido de Caminha (uma vez transitada em julgado, a sentença só podia ser comutada pelo monarca, que tinha poderes previstos em lei para conceder indulto aos apenados). Supondo que sim, o rei não precisou recorrer aos atos secretos atualmente em voga, já que as normas vigentes o autorizavam a fazê-lo abertamente. Bons tempos, aqueles.

O economista Rubem Novaes, que se demitiu da presidência do Banco do Brasil dias atrás, resume com a seguinte frase o ambiente político de Brasília: “Muita gente com rabo preso trocando proteção”. Segundo ele, a regra é "criar dificuldades para vender facilidades", e privilégios e compadrios campeiam soltos. 

O economista cita o presidente do PTB, Roberto Jefferson, como sendo hoje “o melhor cronista dos bastidores planaltinos”, e lembra que “não há nada mais permanente que um programa temporário de governo”. “Não podemos deixar que o esforço fiscal atual contamine o futuro; se o mercado perde a confiança na higidez das contas públicas, estamos fritos”, conclui.

Pois é.

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

NUNCA ANTES NA HISTÓRIA DESTE PAÍS...

 

Na cerimônia de posse de certo governador de São Paulo (não me lembro se Quércia ou Fleury), o fundador da construtora Camargo Corrêa foi saudado por um ex-governador: "Dr. Camargo, o senhor por aqui?" Sebastião Camargo respondeu: "Eu estou sempre por aqui, governador. Vocês é que mudam".

Governo probo, nunca houve no Brasil. Se o nepotismo é uma das muitas facetas da corrupção, então "essa senhora" desembarcou na Terra de Vera Cruz com Cabral (falo do Pedro Álvares, não do ex-governador do Rio). No epílogo da epístola em que deu conta do "descobrimento" a D. Manuel, o escriba Pero Vaz de Caminha anotou:

E desta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta terra vi. E se a um pouco me alonguei, Ela me perdoe. Porque o desejo que tinha de Vos tudo dizer, mo fez proceder assim pelo miúdo. E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro, o que Dela receberei em muita mercê.”

Observação: o escriba estava preocupado com sua filha única, Isabel de Caminha, cujo marido, um certo Jorge de Osório, preso por roubo, fora degredado para a ilha de São Tomé, na África.

Como reza a sabedoria popular, o que começa mal tende a ficar pior. 

No início do século XIX, a iminente invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas forçou a família real lusitana a vir de mala e cuia para o Rio de Janeiro. Com isso, o Brasil, que até 1815 foi mera colônia portuguesa, passou à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves. E assim permaneceu até o célebre “Grito da Independência” — o tal brado heroico retumbante ouvido pelas margens plácidas do Ipiranga, que Osório Duque Estrada poetizou na letra do Hino Nacional Brasileiro, o pintor Pedro Américo imortalizou em seu tão célebre quanto fantasioso quadro, e os livros didáticos transformaram numa obra de ficção.

Proclamação da República, também cantada em verso e prosa com pompa e circunstância, foi o primeiro dos muitos golpes de Estado que estavam por vir. Entre o apagar das luzes imperiais, em 1889, e a posse de Prudente de Morais, em 1894, somente militares ocuparam o assento mais cobiçado do palácio presidencial — daí esse período ser chamado de República da Espada

O Marechal Deodoro da Fonseca — a quem coube desfechar o golpe de misericórdia no regime monárquico e entrar para a história como o primeiro presidente do Brasil — governou interinamente por cerca de dois anos. Promulgada a Constituição de 1891 e realizada uma eleição indireta, o fardado derrotou o candidato civil Prudente de Morais por 129 votos a 97. Mas sua gestão, marcada pelo autoritarismo, foi encerrada prematuramente por um levante da Marinha que ficou conhecido como Revolta da Armada

Tão logo passou de vice a titular, o também marechal Floriano Peixoto demitiu todos os governadores que apoiaram seu antecessor (e que defendiam a realização de nova eleição, à luz do previsto no art. 42 da Carta Magna). Graças a sua postura ditatorial — que se tornaria moda entre os mandatários tupiniquins — o "Marechal de Ferro" teve de debelar sucessivas rebeliões — como a Revolução Federalista e a Segunda Revolta da Armada — para se manter no poder. 

Observação: Em abril de 1892, diante de protestos de opositores e divulgação de manifestos na capital federal, Peixoto decretou estado de sítio, prendeu e desterrou desafetos para a Amazônia. Quando Rui Barbosa ingressou com habeas corpus no Supremo Tribunal Federal em favor dos detidos, Peixoto ameaçou os magistrados: "Se os juízes concederem habeas corpus aos políticos, eu não sei quem amanhã lhes dará o habeas corpus de que, por sua vez, necessitarão". O Supremo negou o habeas corpus por dez votos a um. 

Em novembro de 1894, muito a contragosto, o marechal passou o bastão para o paulista Prudente de Morais — que obteve 90% dos votos na primeira eleição direta da nossa história. A exemplo do que faria o General Figueiredo quase um século depois, Peixoto se recusou a transmitir pessoalmente o cargo a seu sucessor.   

Ao longo de 131 anos de história republicana (completados em novembro do ano passado), 38 presidentes chegaram ao poder pela via do voto popular, eleição indireta, linha sucessória ou golpe de Estado (como até o passado é incerto neste país, esse número varia de 35 a 44). Destes, oito foram de alguma forma apeados antes do fim do mandato. Dos cinco eleitos pelo voto direto desde o fim da ditadura, Collor e Dilma foram expulsos de campo antes do final do jogo.

O caçador de marajás de festim — que inaugurou a lista dos chefes do Executivo Federal depostos por crime de responsabilidade — colecionou 29 pedidos de impeachment, mas nunca foi chamado de genocida. 

ItamarFHCLula e Temer foram agraciados, respectivamente, com 4, 27, 37 e 33 pedidos de impeachment, mas concluíram seus mandatos sem jamais serem chamados de genocidas. 

A gerentona de araque, que foi expelida da Presidência porque estava quebrando o país, foi alvo de 68 pedidos de impeachment, mas ninguém jamais a acusou de genocídio.

Falando em genocídio, o relatório final da CPI já está sendo escrito e deverá ser concluído no mês que vem. O texto-base já possui mais de mil páginas — e pode crescer, a depender dos fatos e dados a serem obtidos pela Comissão. O grosso do material está nos anexos, que incluem documentos e os principais pontos de destaque dos depoimentos.

O relator deve sugerir a continuidade da investigação pelo Ministério Público por meio de inquéritos específicos para cada assunto trazido em destaque. Vários dos capítulos já elaborados dizem respeito ao chamado "gabinete paralelo da saúde" e incluem a transcrição e links de vídeos, áudios, declarações e documentos que, segundo Renan Calheiros, comprovam a atuação do órgão extraoficial. Um dos tópicos do relatório trará a afirmação de que quem se opôs ao gabinete paralelo — como Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich — acabou deixando o Ministério.

Já o general e ex-ministro Eduardo Pazuello será apontado por não se opor à atuação de médicos do suposto gabinete na elaboração de políticas públicas e por "colocar em prática" as orientações extraoficiais. Segundo o senador Randolfe Rodrigues, o documento deve imputar o estrelado crimes como "charlatanismo, prevaricação, advocacia administrativa e por atuar contra a ordem sanitária". Os parlamentares ainda discutem se incluem na lista corrupção passiva.

Haverá um destaque no relatório também com relação ao aplicativo "TrateCov", que, segundo Pazuello teria sofrido um ataque hacker — fato desmentido por uma auditoria técnica do TCU. Na redação, o aplicativo está sendo tratado como uma das políticas falhas do Ministério da Saúde que teriam utilizado a capital do Amazonas como "experimento" para as teorias do gabinete paralelo. Nesse contexto, a minuta de um decreto presidencial que pretendia alterar a bula da cloroquina sem o aval da Anvisa também deverá ser anexada ao texto. Todos esses fatos, envolvendo principalmente o general Pazuello, aparecerão como aspectos que prejudicaram o país na aquisição de vacinas contra a doença.

Com encerramento programado para setembro, a CPI convive com um paradoxo. Tomada pelo relatório final, a investigação parlamentar terá a aparência de uma iniciativa de sucesso. Considerando-se as consequências a serem produzidas pelas conclusões do documento, resultará em frustração. As pessoas que acompanharam os depoimentos pela televisão terão a impressão de que desperdiçaram seu tempo quando as conclusões da Comissão morrerem no arquivo de Augusto Aras — que, como Procurador-Geral da República, é responsável pela análise dos crimes comuns atribuídos a Bolsonaro — e no gavetão do deputado Arthur Lira — a quem, como presidente da Câmara, cabe lidar com a acusação da prática de crimes de responsabilidade, que, em tese, levariam ao impeachment.

Dois espetáculos não cabem ao mesmo tempo num só palco. Ou numa única conjuntura política. Dividido entre um e outro, o público tende a se dispersar. Antes do recesso parlamentar de julho, estava em cartaz a novela da CPI do Genocídio. Ao farejar o cheiro de queimado, Bolsonaro aproveitou o retiro dos senadores para intensificar as críticas às urnas eletrônicas e os insultos a ministros do STF, impondo a mudança do cartaz neste mês de agosto. Ao voltar do recesso, o G7, como ficou conhecido o grupo majoritário que controla os rumos da CPI, percebeu que a pior coisa do sucesso é ter que continuar fazendo sucesso.

Às voltas com um déficit de atenção da plateia, os senadores começaram a planejar o fechamento das cortinas. Enxugam a pauta de depoimentos. Esperam encerrar as oitivas em três semanas. Para evitar marolas, cancelaram a acareação que seria feita nesta semana entre o ministro Onyx Lorenzoni e o deputado Luís Miranda e relutam em aprovar novas convocações. No papel, a Comissão poderia funcionar até o início de novembro, mas tudo indica que o relatório final será entregue em meados de setembro.

Pretende-se indiciar Bolsonaro e outros investigados por transformar em política pública o tratamento da Covid com remédios ineficazes, apostar na imunização coletiva pelo contágio, negligenciar o colapso hospitalar de Manaus, retardar a compra de vacinas da Pfizer e do Butantan, firmar contrato irregular para a compra da vacina indiana Covaxin, abrir as portas do Ministério da Saúde para picaretas que ofereciam vacinas inexistentes (ou seja, a Comissão pretende acusá-lo de crimes comuns e crimes de responsabilidade).

O presidente continua cagando e andando para a CPI. Considera-se invulnerável. Para os crimes comuns, conta com a blindagem do procurador-geral. Para os crimes de responsabilidade, tem a proteção do deputado-réu que preside a Câmara e já mandou para o gavetão 133 pedidos de impeachment. Mantida a blindagem, Bolsonaro poderá repetir que não teve nada a ver com o caos sanitário.

Não há nada que a cúpula da CPI possa fazer para dissolver a cumplicidade de Lira com Bolsonaro. Mas, com honrosas exceções, é espantosa a inércia dos senadores em relação ao procurador-geral. A recondução de Aras ao cargo está pendente de votação no Senado. Em vez de articular a reprovação do dito-cujo, parte dos integrantes da Comissão se reuniram, na última terça-feira, com o procurador que Bolsonaro escolheu para lavar a sua louça por mais dois anos.

Renan Calheiros tornou-se a personificação do paradoxo vivido pela CPI. Há dois anos, quando o Senado aprovou a nomeação de Aras para comandar a PGR, o ora relator da Comissão não conseguiu conter o entusiasmo. Naquela época, o senador alagoano estava ao lado do primogênito do capitão, outro entusiasta da escolha de Aras. Freguês de caderneta da Lava-Jato, o Cangaceiro das Alagoas queria acertar as contas com a força-tarefa de Curitiba; denunciado pelo MP-RJ por peculato e lavagem de dinheiro, Flávio "Rachadinha" Bolsonaro estava à procura de blindagem.

A PGR — e, por extensão, o Ministério Público Federal — vive um apagão mental. Já se sabia que Aras trata Bolsonaro como um ser inviolável e imune (eufemismos para intocável e impune). Descobre-se agora que, para livrar o presidente-suserano de incômodos judiciais, o procurador-vassalo e sua equipe decidiram enquadrá-lo na categoria dos seres inimputáveis.

Bolsonaro obteve da PGR um salvo-conduto para delinquir. Pode tudo, inclusive arrancar máscara da cara de criancinha. PT e PSOL pediram no STF a abertura de inquéritos para apurar o desrespeito a leis estaduais e federal em aglomerações promovidas pelo mandatário durante passeios de moto com seus devotos no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Norte. A subprocuradora-geral Lindôra Araújo (braço direito de Aras), a quem coube formular a manifestação da PGR, sustentou que Bolsonaro não infringiu medidas sanitárias nem colocou a vida de ninguém em risco.

Numa evidência de que a PGR opera em "modo Talibã", a subprocuradora aderiu ao negacionismo científico para dispensar Bolsonaro do mais comezinho cuidado sanitário. Anotou que, "em relação ao uso de máscara de proteção, inexistem trabalhos científicos com alto grau de confiabilidade em torno do nível de efetividade da medida de prevenção". 

No Rio Grande do Norte, Bolsonaro pediu a uma menina para retirar a máscara e arrancou o apetrecho da face de um menino. Para Lindôra, o presidente não teve a intenção de "constranger aquelas crianças". Segundo ela, "os infantes também não demonstraram, com atitudes ou gestos, terem ficado constrangidos, humilhados ou envergonhados na presença do presidente". Na avaliação da doutora, o presidente apenas interagiu com as crianças "de forma descontraída."

Como se sabe, Bolsonaro fez uma opção preferencial por exercer o cargo de presidente à margem da lei. Transgride até leis que sancionou. Como há males que vêm para pior, Aras e sua equipe promovem uma junção da ilegalidade com a impunidade.

Em seus deslocamentos eleitorais, Bolsonaro promove aglomerações proibidas por Estados e municípios. Ignora os poderes conferidos a governadores e prefeitos pela Constituição e reafirmados pelo STF. Por onde passa, discursa contra medidas sanitárias restritivas. Finge ignorar o fato de que sancionou em fevereiro do ano passado a "lei da pandemia", que prevê a adoção de providências excepcionais, como o isolamento e a quarentena. Em julho de 2020, Bolsonaro assinou a lei 14.019, que torna obrigatório o uso de máscaras de proteção individual em espaços públicos e privados. Em suma: além de cagar e andar para sua própria decisão, o capitão constrange o ministro Marcelo Queiroga com a cobrança de estudos para flexibilizar o uso da máscara. Agora, recebe salvo-conduto da Procuradoria para descumprir até a lei que avalizou.

Nos passeios de moto, Bolsonaro não percorre apenas o asfalto, mas o Código Penal, cujo artigo 268 estabelece pena de detenção de um mês a um ano para quem "infringir determinação do poder público destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa". No artigo 132, o diploma legal retrocitado sujeita a uma pena de detenção de três meses a um ano as pessoas que expõem a vida ou a saúde de terceiros a perigo direto e iminente.

Nesse contexto, não parece razoável que um país inteiro tenha que passar vergonha para que um procurador-geral e sua equipe ofereçam blindagem a um presidente da República que se converteu num infrator serial. Não resta aos relatores dos dois processos no STFRosa Weber e Ricardo Lewandowski — senão ignorar a manifestação de Lindôra e ordenar a abertura dos inquéritos.

Vivo, Darwin diria que a atuação da PGR não é apenas uma prova de que o ser humano parou de evoluir. Trata-se de uma evidência de que ele já faz o caminho de volta. No momento, o melhor lugar para se proteger de Bolsonaro é uma caverna nas montanhas do Afeganistão. Aliás, se o homem de Neandertal desconfiasse que o resultado da evolução seria bolsonaros, talvez não tivesse saído da caverna. Teria optado por uma versão pré-histórica do isolamento social.

Com Josias de Souza

segunda-feira, 17 de maio de 2021

A FARSA NACIONAL


De acordo com a epístola enviada por Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel em abril de 1500, a primeira porção da Terra Brasilis avistada pela trupe de Cabral foi o Monte Pascoal: “(...) Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! A saber, primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal (monte da Páscoa) e à terra A Terra de Vera Cruz!”, anotou o escriba ao descrever o “descobrimento do Brasil”.

O detalhe é que àquela altura o espanhol Vicente Yáñez Pinzón já havia aportado na costa de (hoje) Pernambuco (em 26 de janeiro de 1500), e sete anos antes o rei português D. João II ameaçara declarar guerra à Espanha se o papa Alexandre VI não revisasse os limites estabelecidos pela Bula Inter Coetera — o que originou o Tratado de Tordesilhas, firmado em junho de 1494.

Tanto a expedição de Pinzón quanto o insurgimento do monarca são indícios claros do que ficou comprovado documentalmente séculos depois: Portugal já sabia da existência de terras na porção sul do “novo continente” descoberto por Cristóvão Colombo. Demais disso, uma expedição secreta comandada por Duarte Pacheco Pereira aportou na costa brasileira em 1498, à altura do que hoje corresponde ao litoral do Maranhão — antes, portanto, de Pinzón. Mas o rei de Portugal determinou que a descoberta fosse mantida em segredo até que uma nova missão (a de Cabral) “tomasse posse oficialmente” daquelas terras.

O Brasil foi batizado como tal por conta da abundância da madeira Caesalpinia Echinata, conhecida popularmente como pau-brasil — da qual se extraía uma resina cor-de-brasa, que era muito usada para tingir tecidos. Antes de ganhar esse epíteto, o país foi batizado de Pindorama (pelos nativos); de Ilha de Vera Cruz (em 1500); de Terra Nova e Terra dos Papagaios (em 1501); de Terra de Vera Cruz e Terra de Santa Cruz (em 1503); de Terra Santa Cruz do Brasil e Terra do Brasil (em 1505), e de Brasil, em 1527.

Alcunhado de Gigante Adormecido e País do Futuro (que nunca chega), entre outros epítetos, o Brasil, seja como colônia, reino unido, império ou república, nunca deixou de ser uma banânia que aspirava a ingressar na seleta confraria das nações do assim chamado “primeiro mundo”. Segundo uma velha (e filosófica) anedota, o Senhor das Esferas estava criando o mundo quando um anjo apontou para a porção que mais adiante corresponderia ao Brasil e disse: “Esta terra será um verdadeiro paraíso para a humanidade; o clima é agradável, há lindas florestas e praias, grandes e belos rios, e nada de desertos, geleiras, terremotos, vulcões ou furacões. Por que tanto protecionismo, Senhor? E Deus respondeu: Ah, meu caro anjo, espera só pra ver o povinho filho da puta que eu vou colocar aí.”

Como dito linhas acima, a farsa começou com o “descobrimento” e seguiu pela denominação dos nativos. Os portugueses chamaram os silvícolas de “índios” porque, ao aportar no novo continente, o genovês Cristóvão Colombo supôs ter chegado às “Índias Orientais” — daí as Américas ficarem conhecidas na Europa como “Índias Ocidentais”.

Observação: O expressão “descobrimento da América” não é aceita universalmente pelos historiadores. Primeiro, porque a expedição espanhola capitaneada por Colombo não tinha por objetivo chegar a terras desconhecidas, mas sim ao continente asiático. Segundo, porque os primeiros europeus a chegar à América foram os Vikings, no século X (ainda que, diferentemente dos espanhóis e portugueses, eles não tiveram sucesso na tentativa de se estabelecerem no novo continente). Demais disso, a América não precisava dos europeus — ou da chegada deles — para existir. Ela já existia em si muito antes disso e era habitada por milhões de habitantes que formavam diferentes sociedades, algumas delas com alto grau de sofisticação.

Ainda sobre o descobrimento e a farsa nacional, os compêndios de História registram que a esquadra de Cabral zarpou de Lisboa com destino a Calicute, mas uma tormenta (ou uma calmaria, dependendo de quem conta o conto) a desviou da rota e voilà: foi “descoberto” o Brasil. A “Relação do Piloto Anônimo” — que, ao lado das cartas de Caminha e de Mestre João, é um dos três testemunhos diretos do descobrimento do Brasil que sobreviveram ao tempo —, relata o naufrágio da nau comandada por Vasco de Ataíde, mas a epístola do escriba oficial da esquadra registra que a viagem até a costa brasileira transcorreu na mais completa normalidade, “sem haver tempo forte ou contrário para que assim pudesse ser”.

A região do suposto naufrágio era conhecida como “calmas equatoriais” — já que os ventos deixavam de soprar por dias, ou semanas, e as embarcações ficavam ao sabor das correntes marinhas. Em seu admirável estudo sobre a viagem de Cabral, o contra-almirante Max Justo Guedes anotou que durante a tal calmaria a frota cabrália teria sido empurrada cerca de 90 milhas para oeste pela Corrente Equatorial Sul, mas esse deslocamento seria insignificante e não poderia ter causado o “descobrimento casual do Brasil”. Também como dito linhas acima, a chegada da expedição portuguesa ao litoral baiano não se deveu nem a tormentas, nem a calmarias. Portugal soube de sua existência anos antes desse suposto “descobrimento” e, tecnicamente, já tinha posse das terras quando Cabral nelas desembarcou.

A farsa segue pela independência, que os livros didáticos transformaram numa obra de ficção. O famoso “Grito do Ipiranga”, dado por D. Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon, às margens do riacho do Ipiranga, só aconteceu porque o príncipe regente foi acometido de poderosa caganeira e fez alto para esvaziar os intestinos atrás de uma moita.

Enquanto o nobre executava essa gratificante tarefa, acercou-se da comitiva um mensageiro portando três cartas. A primeira, assinada por D. João VI, ordenava ao nobre rebento que regressasse imediatamente a Portugal e se submetesse ao Rei e às Cortes; a segunda, de José Bonifácio, aconselhava-o a romper com Portugal; a terceira, da Imperatriz Leopoldina, dileta consorte do príncipe (noves fora Domitila de Castro Canto e Mello, mais conhecida como Marquesa de Santos), transmitia ao marido o seguinte recado: “O pomo está maduro; colhe-o já, antes que apodreça”. Impelido pelas circunstâncias, D. Pedro, que já estava mesmo fazendo merda, aproveitou o ensejo para romper os laços de união política com Portugal e declarar a independência do Brasil.

Proclamação da República, também cantada em verso e prosa com pompa e circunstância, foi o primeiro dos muitos golpes de Estado que estavam por vir. Dito com outras palavras, a Primeira República começou com um golpe militar e seu primeiro mandatário — marechal Manuel Deodoro da Fonseca — foi eleito indiretamente e, dois anos depois, “convidado por seus irmãos de farda” a deixar o cargo. 

Ao longo de 131 anos de história republicana (completados em novembro do ano passado), 38 presidentes chegaram ao poder pela via do voto popular, eleição indireta, linha sucessória ou golpe de Estado (como até o passado é incerto neste país, esse número varia entre 35 e 44). Destes, oito foram de alguma forma apeados do cargo antes do fim do mandato.

Dos cinco presidentes eleitos pelo voto direto desde o fim da ditadura militar — Collor, Fernando Henrique, Lula, Dilma e Bolsonaro —, o primeiro e a penúltima foram expulsos de campo antes do final do jogo. O caçador de marajás de festim — que inaugurou a lista dos chefes do Executivo Federal depostos devido a crimes de responsabilidade — colecionou 29 pedidos de impeachment. Mas nunca foi chamado de genocidaItamarFHCLula e Temer foram agraciados, respectivamente, com 4, 27, 37 e 33 pedidos de impeachment, mas concluíram seus mandatos e jamais foram chamados de genocidas. A gerentona de araque foi penabundada porque estava quebrando o país. Madame foi alvo de 68 pedidos de impeachment, mas ninguém jamais a acusou de genocídio.

Por essas e outras, fosse esta banânia um país que se desse ao respeito, o mandatário de turno já teria sido despejado e internado. Antes mesmo de completar um ano no cargo, o capitão já abria larga dianteira em relação a seus antecessores. Em fevereiro passado, o réu que sucedeu a Rodrigo Maia na presidência da Câmara herdou uma pilha com cerca de 60 pedidos de abertura de processo de impeachment contra Bolsonaro. Hoje, são quase 120

Embora vivesse às turras com o chefe do Executivo, Maia não deu andamento a nenhum dos pedidos de impedimento do desafeto. “Houve erros, mas não crimes de responsabilidade”, disse o ex-presidente da Câmara, que agora corre o risco de ser contraditado pela CPI da Covid. E Arthur Lira segue na mesma linha: pressionado, o deputado centrista cearense disse candidamente que todos os pedidos que ele analisou são “inúteis”. Quando se põe a raposa para tomar conta do galinheiro, ela encarrega as outras raposas de investigar o sumiço das galinhas.

Em março de 2020, quando o Brasil contabilizava 6 mil mortes pela “gripezinha”, o jornal norte-americano The Washington Post concedeu a Bolsonaro o título de pior líder mundial no combate à pandemia. Hoje, são 435 mil os cadáveres produzidos pela doença — dois terços das quais se deveram a ações e omissões de um mandatário negacionista e genocida

O supremo togado Gilmar Mendes, o deputado federal Kin Kataguiri, o abutre vermelho Lula, seu bonifrate Fernando Haddad e o youtuber Felipe Neto são alguns exemplos de autoridades e influencers que já classificaram Bolsonaro de genocida. Em mensagem enviada a um grupo de ministros do STF, o então decano da Corte Celso de Mello comparou o presidente a Hitler, e uma coalizão que representa mais de um milhão de trabalhadores da saúde no Brasil, apoiada por entidades internacionais, denunciou-o ao Tribunal Penal Internacional, em Haia, por crimes contra a humanidade e genocídio. Semanas atrás, Miguel Urbán Crespo, integrante do Parlamento Europeu, disse durante um discurso em plenário que a “necropolítica” do presidente brasileiro no combate à pandemia constitui um crime de lesa-humanidade, e que Bolsonaro não é só um perigo para o Brasil, mas para o mundo inteiro.

A despeito de tudo isso, as pesquisas de intenção de voto indicam que o circo da sucessão terá como protagonistas (de novo) os dois extremos do espectro político-ideológico. A diferença é que desta vez o extremista de esquerda poderá dispensar o “poste” e disputar o pleito pessoalmente, uma vez que o STF lavou sua ficha imunda — criando a bizarra figura do “ex-corrupto”.

Falando em “postes”, elegê-los tornou-se uma especialidade de Lula. Certa vez, depois de um jantar regado a “Romanée-Conti” — um dos vinhos da Borgonha mais caros do mundo, que chega a custar US$ 25 mil a garrafa —, o então presidente, entre baforadas da cigarrilha cubana acesa pelo diligente Delúbio Soares, assim se dirigiu a seus asseclas:  Sabem, ‘cumpanhêros’, hoje, sem falsa modéstia, eu elejo até um poste para governar o Brasil.”

E elegeu mesmo. Só que antes de empalar a nação com Dilma Rousseff, a gerentona de araque, Lula havia designado José Dirceu — egresso da DGI (órgão cubano de espionagem financiado pela KGB) —, que lhe fazia as vezes de ministro-chefe da Casa Civil. Mas a canoa virou quando o ex-guerrilheiro de festim foi denunciado pelo deputado Roberto Jefferson como operador-mor do Mensalão.  

Outro “poste” que o Parteiro do Brasil Maravilha tentou conduzir à Presidência foi o “cumpanhêro” médico ribeirão-pretano Antonio Palocci — coordenador de sua equipe de transição e ministro da Fazenda em seu ímprobo governo. Mas o barco afundou quando veio a lume o imbróglio envolvendo o caseiro Francenildo Costa, testemunha de acusação contra Palocci no “Escândalo da República de Ribeirão Preto” (cujo cenário era uma mansão de Brasília onde rolavam negociatas do governo e encontros com prostitutas, agendados pela cafetina Jeany Mary Corner).

Assim, o único poste que deu certo afora Fernando Haddad — este somente na disputa pela prefeitura de São Paulo e apenas em 2012, já que foi derrotado por João Doria quando tentou se reeleger em 2016, e por Jair Bolsonaro na disputa pela Presidência em 2018 — foi a prosaica figura que, antes de se aventurar na política, faliu duas lojinhas de R$ 1,99 em Porto Alegre (RS); que sem saber atirar virou modelo de guerrilheira; que sem ter sido vereadora virou secretária municipal; que sem passar pela Assembleia Legislativa virou secretária de Estado; que sem estagiar no Congresso virou ministra; que sem ter inaugurado nada de relevante fez pose de gerente de país; que sem saber juntar sujeito e predicado virou estrela de palanque; que sem ter tido um único voto na vida até 2010 foi eleita presidente desta banânia e levou o país à insolvência, a inflação à casa dos 2 dígitos e o desemprego à das dezenas de milhão.

Depois de um dos maiores estelionatos eleitorais da nossa história (atrás apenas do que seria promovido pelo então candidato à Presidência em 2018), a presidanta arroganta e pedanta foi reeleita, mas acabou afastada do cargo 1 ano e 5 meses depois e devidamente penabundada dali a pouco mais de 3 meses. No parecer do então PGR Rodrigo Janot, o impeachment desse “poste” também encampava, no “conjunto da obra”, os crimes de corrupção ativa e passiva, obstrução da justiça e organização criminosa.

Concluída esta (não tão) breve introdução, passo a tratar do cenário (lamentável) que se descortina à luz das recentes (e prematuras) pesquisas de intenção de voto, que, sem exceção, apontam para o embate (de novo) entre o nhô ruim e o nhô pior — ou por outra, entre o antilulopetismo e o antibolsonarismo. A se confirmar essa perspectiva desalentadora, o eleitor consciente (e isso exclui as torcidas organizadas de ambos os contendores) será novamente forçado a optar pelo “menos pior”. Mas é preciso ter em mente que, quando se escolhe o menor de dois males, ainda assim o que se escolhe é um mal.

Quem vaticina que o embate entre Lula e Bolsonaro é inevitável não está fazendo análise política, está contribuindo para criar uma profecia autorrealizável. Se aqueles que não querem que essa polarização se repita virem-na como inevitável, assim será. Portanto, não é hora de crer em vaticínios e inevitabilidades, mas sim de criar alternativas.

Para concluir (por hora, pois voltar a este tema será inevitável), cumpre salientar que os números do DataFolha apontam que 41% dos entrevistados responderam que votarão em Lula (uma vantagem de 18% em relação a Bolsonaro). Num eventual segundo turno, o petista atrairia os eleitores de Doria, Ciro e Huck (note que o apresentador global ainda não confirmou a candidatura) e o capitão sem partido ficaria com a maior fatia dos eleitores de Moro (o ex-juiz já afirmou que não participará da disputa). Nesse cenário, Lula venceria Bolsonaro por 55% a 32%.

Realizada na mesma semana, a enquete do Paraná Pesquisas aponta 32,7% das intenções de voto em Bolsonaro e 29,3% em Lula — no segundo turno, o capetão venceria o petralha por 42,5% a 39,8%. Os números do Atlas Político também favorecem Bolsonaro no primeiro turno(37% a 33,2%) mas dão a vitória a Lula no segundo (45,7% a 41%). O XP/Ipespe aponta empate no primeiro turno (ambos com 29%) e vitória de Lula no segundo (42% a 40%). O PoderData indica empate no primeiro turno (ambos com 32%) e vitória do petralha no segundo (50% a 35%).

Cenários variados de disputa, datas não coincidentes de apuração e defasagem de dados oficiais — problema realçado com o adiamento do Censo — ajudam a explicar resultados divergentes de pesquisas, diz o Valor Econômico. Mas a questão é que a amplitude dessas divergências vai bem além das margens de erro, como ficou explícito depois que o Datafolha deu conta de que Lula precisaria tirar só três pontos dos rivais para vencer já no primeiro turno, que Bolsonaro vem bem, com 23%, e outros seis concorrentes têm desempenho de um dígito.

Como se viu, o panorama é diverso segundo dados do Ipespe, contratado pela XP, e do PoderData, vinculado ao site Poder360 — ambos mostram Lula e Bolsonaro numericamente empatados. As entrevistas do Ipespe foram concluídas cinco dias antes do Datafolha. Já o período de coleta do PoderData coincide quase que inteiramente com o do Datafolha. Há ainda a pesquisa Atlas, iniciada após o Ipespe e concluída antes do Datafolha, que mostra Bolsonaro líder.

Nos quadros de segundo turno os números também são divergentes. E uma curiosidade: o PoderData, que tem resultados distantes do Datafolha no primeiro turno, mostra dados mais próximos do Datafolha no segundo. No Ipespe os resultados apontam empate técnico. O Atlas traz Lula com 45,7%, quase cinco pontos acima de Bolsonaro, e tanto o Datafolha quanto o PoderData mostram Lula com ampla vantagem.

Responsável pelo Ipespe, o cientista político Antônio Lavareda divulgou uma nota em que lista “fatores básicos que teoricamente seriam capazes de explicar as diferenças”. Entre eles, momentos distintos de apuração e diferenças nos total de entrevistados, mas Lavareda enfatiza mais o método de abordagem de entrevistados — presencial ou por telefone — e as variáveis de controle — recursos para verificar a consistência das informações coletadas.

Mauro Paulino, diretor do DataFolha, defende o método presencial em casos eleitorais. Para ele, o uso de um cartão circular com os nomes dos candidatos distribuídos em fatias idênticas é a única forma de não privilegiar um nome no instante da pergunta, o que contaminaria o estudo. “Para outras pesquisas, achamos perfeitamente possível o uso do telefone. Para eleitoral, não. Por telefone, o entrevistador necessariamente terá que citar um nome antes”, diz ele.

Lavareda destaca o que entende ser desvantagens da pesquisa presencial: “Na pandemia, em que se recomenda distanciamento social, é plausível que muito mais pessoas temam ser abordadas nas ruas”. Ele lembra ainda que não se usa mais esse método na Europa e nos EUA e que o acesso do eleitorado brasileiro ao celular é universal.

A ideia segundo a qual um certo perfil não seria alcançado na rua, pois muitos estão isolados ou em home office, é rechaçada por Paulino. “Só 6% estão totalmente confinados. Mas mesmo essa pessoa que não sai de casa acaba sendo representada quando entrevistamos outros com perfis parecidos, como quem só sai para ir à padaria.”

Outro ponto de divergência está na chamada variável de controle. Andrei Roman, diretor do Atlas, entende ser fundamental usar a declaração de voto do eleitor em 2018 como informação para “calibrar” a pesquisa. Isso é feito comparando o resultado apurado com o dado preciso da urna. Lavareda também é defensor desse recurso. Paulino discorda. “As pessoas esquecem em quem votou ou, conforme a conjuntura, preferem esconder qual foi o voto. Quem usa isso como controle está fazendo coisa errada”, diz.

Durma-se com um barulho desses.

sábado, 2 de janeiro de 2021

O QUE COMEÇA MAL...


Finais de ano e retrospectivas são indissociáveis. Porém, se o réveillon é, tradicionalmente, um renovar-se de esperanças, as retrospectivas têm demonstrado que o buraco é bem mais embaixo.

O ano de 2020 é mais um dos que já se foram tarde e não deixaram saudades. Mas haja otimismo para achar que tudo será azul com bolinhas cor-de-rosa em 2021. 

Bom seria se Bolsonaro e o Sars-CoV-2 tivessem sido soterrados pelos últimos grãozinhos da ampulheta, à meia-noite de anteontem. Mas parece que ambos continuam fazendo vítimas, cada qual à sua maneira.

A maior potência do mundo livre lidera o ranking da Covid, com quase 20 milhões infectados e mais de 300 mil mortos. Mas lá eles têm Donald Trump, que até recentemente jogava no time do vírus. 

Em números absolutos, o Brasil ocupa o terceiro lugar (depois da Índia), com quase 8 milhões de casos e 190 mil mortes. E aqui temos Bolsonaro, eleito graças a uma ironia do destino e, segundo ele próprio, alguém que não nasceu para presidente, mas que jamais desceu do palanque, só tem olhos para a reeleição e continua jogando no time adversário.

Nesta republiqueta de almanaque, abençoada por Deus e bonita por natureza, o futuro é duvidoso e o passado, incerto — tanto que até a autoria dessa frase ora é atribuída ao ex-ministro Pedro Malan, ora ao ex-presidente do Banco Central Gustavo Loyola

O Brasil seria um grande país se não fosse o povo medonho que, sabe-se lá se por carma, sina, praga de madrinha ou obra do Criador, elege seus representantes a pior das escórias, uma gentalha que se candidata para roubar e rouba para se reeleger. 

Ao contrário do que se costuma pensar, Lula não inventou a corrupção, embora tenha sido o grande responsável por sua institucionalização. 

Observação: O picareta ainda não percebeu que seu tempo passou, sua luz apagou, seu povo sumiu. O eterno encantador de burros morreu e não sabe, e é justamente aí que mora o problema: enquanto não se der conta disso, esse egun mal despachado continuará a nos assombrar. Mas isso é outra conversa.

A corrupção aportou em terra brasilis em 1.500, travestida de nepotismo. A semente da praga, jogada no solo “onde se plantando, tudo dá”, está no final da carta de Caminha ao rei D. Manuel

Preocupado com sua única filha, cujo marido, preso por roubo, fora degredado para a ilha de São Tomé, o escriba pediu a sua majestade que comutasse a sentença. 

Não se sabe ao certo se o pedido foi atendido, mas, supondo que sim, o monarca não teve de recorrer aos atos secretos atualmente em voga, já que as normas vigentes à época autorizavam-no a fazê-lo abertamente. Bons tempos.

A rigor, a "farsa nacional" começou com o descobrimento. De acordo com os livros de história (pelo menos os da minha época de estudante), a esquadra de Cabral zarpou de Lisboa com destino a Calicute, na Índia, mas uma tormenta (ou uma calmaria, dependendo de quem conta o conto) a teria desviado da rota e voilà: foi descoberto o Brasil. 

A "Relação do Piloto Anônimo” — que, ao lado das cartas de Caminha e de Mestre João, é um dos três testemunhos diretos do descobrimento do Brasil que sobreviveram ao tempo —, relata o naufrágio da nau comandada por Vasco de Ataíde, mas epístola do escriba anota que a viagem até a (hoje) costa da Bahia decorreu na mais completa normalidade, "sem haver tempo forte ou contrário para que assim pudesse ser".

A região do suposto naufrágio era conhecida como "calmas equatoriais", porque os ventos deixavam de soprar por dias, ou semanas, e as embarcações ficavam ao sabor das correntes marinhas. Em seu admirável estudo sobre a viagem de Cabral, o contra-almirante Max Justo Guedes calculou que, durante a tal calmaria, a frota cabrália foi empurrada cerca de 90 milhas para oeste pela Corrente Equatorial Sul. No entanto, amotou o marítimo, esse deslocamento seria insignificante e não poderia ter causado o “descobrimento casual” do Brasil. 

A bem da verdade, a chegada da expedição portuguesa à "Ilha de Santa Cruz" não se deveu nem a tormentas, nem a calmarias. Portugal tinha conhecimento da existência do que viria a ser o Brasil quase uma década antes desse suposto “descobrimento” e, tecnicamente, já tinha posse das terras quando Cabral nelas desembarcou.

A Independência do Brasil, da forma como os autores dos livros didáticos a relatam, é outra obra de ficção. O famoso “Grito do Ipiranga”, dado pelo então príncipe regente Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon às margens do córrego do Ipiranga, só aconteceu porque o sua alteza, acometido de poderosa caganeira, fizera alto para esvaziar os intestinos atrás de uma moita. Enquanto o nobre executava essa gratificante tarefa, acercou-se da comitiva um mensageiro portando três cartas:

A primeira, assinada por seu pai, D. João VI, ordenava ao nobre rebento que regressasse imediatamente a Portugal e se submetesse ao Rei e às Cortes. 

A segunda, de José Bonifácio, aconselhava-o a romper com Portugal. 

A terceira, da Imperatriz Leopoldina, dileta consorte do príncipe (noves fora Domitila de Castro Canto e Mello, mais conhecida como Marquesa de Santos), transmitia ao marido o seguinte recado: “O pomo está maduro; colhe-o já, antes que apodreça”.

Impelido pelas circunstâncias, Pedrão, que já estava mesmo fazendo merda, aproveitou o embalo para romper os laços de união política com Portugal e declarar a independência do Brasil.

A Proclamação da República foi o primeiro de muitos golpes de Estado que estavam por vir. Dito com outras palavras, a Primeira República tupiniquim começou com um golpe militar, e o primeiro presidente, também militar, eleito indiretamente, foi “convidado” por seus irmãos de farda a deixar o cargo

Ao longo de 131 anos de história republicana (completados em novembro último), 38 presidentes chegaram ao poder pela via do voto popular, eleição indireta, linha sucessória ou golpe de Estado (como até o passado é duvidoso em nosso país, esse número pode variar de 35 a 44). Oito deles, a começar por Deodoro da Fonseca, foram de alguma maneira apeados do cargo. 

Como o que começa mal tende a piorar, o atual inquilino do Palácio do Planalto pode ter o mesmo destino de Dilma, a inolvidável gerentona de festim, e de Collor, o caçador de marajás de araque. E, cá entre nós, já está mais que na hora.

Continua.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Consumismo

Costumo dizer que vivemos num país de terceiro mundo com preços de primeiro e salários de quinto. Seja como for e a despeito do (des)governo que temos e dos governantes que elegemos, a economia caminha e o povo sobrevive, alguns melhor que outros por conta dos imensos contrastes verificados nesta nação de dimensões continentais.
Passando ao que interessa, os comerciantes estão em festa: neste ano, ao que tudo indica, haverá um crescimento substancial nas vendas em relação ao Natal passado. Aliás, todos gostamos de dar e de ganhar presentes (não necessariamente nessa ordem), embora poucos possam presentear condignamente seus parentes e amigos (aspecto que consagra aquele velho chavão: "não repare; é só uma lembrancinha").

Por outro lado, é certo que muita gente aproveita o embalo para se auto-presentear - seja com o tão sonhado carro novo, seja com um PC ou laptop de topo de linha, uma TV de tela gigante ou outro mimo que tal. E não há nada de errado nisso, antes pelo contrário, ainda que comprar por impulso talvez seja o caminho mais curto para o arrependimento (e para o endividamento, visto que nossa combalida classe média geralmente depende do crediário para realizar seus "sonhos", e a linha que separa o sonho do pesadelo pode ser mais fina do que parece).
Gosto muito de uma frase que li certa vez, e que costumo repetir nos meus escritos sempre que cabível: os pioneiros são reconhecidos pela flecha espetada no peito. Em tempos atuais, quando a tecnologia caminha a passos de gigante, somos constantemente levados pela mídia a adquirir novidades nem sempre úteis, mas quase sempre caras - principalmente enquanto novidades.
Gadgets como câmeras e filmadoras digitais, tocadores de MP3, chaveirinhos de memória, TVs gigantes, PCs e notebooks de última geração, por exemplo, são produtos que encabeçam a lista dos sonhos de consumo de muita gente.
Mas essas bugigangas, que num primeiro momento custam os olhos da cara, desatualizam-se rapidamente, caem de preço com a mesma rapidez e costumam não alcançam bom valor de revenda quando precisamos ou desejamos substituí-las por modelos mais recentes. Isso sem falar que é comum adquirirmos badulaques de utilidade questionável devido à nossa inegável cupidez por "status".
Ainda me lembro do surgimento da TV em cores, no início dos anos '70, quando eu passava férias numa cidadezinha do interior paulista onde o sinal era péssimo, exigindo a instalação de antenas no alto de torres altíssimas. Mesmo assim, os "poderosos" da região enfeitavam a sala de visitas de suas fazendas com enormes (para a época) TVs de 26 polegadas que custavam tanto quanto um carro popular, embora apenas mostrassem chuviscos coloridos ao invés da tradicional granulação acinzentada exibida pelos aparelhos convencionais.
Outro exemplo remete à telefonia celular: quantos não se dispuseram a desembolsar pequenas fortunas para ter um trambolho pesado como um paralepípido pendurado no cinto (e depois reclamavam de problemas de coluna!) que raramente permitia mais que alguns segundos de comunicação (a um custo elevado, até porque pagava-se também pelas chamadas recebidas) antes que a instabilidade do sinal derrubasse a ligação.

E o mesmo vale para os carros importados da "era Collor", para o vídeocassete, para os computadores pessoais (que num primeiro momento apenas substituíam as máquinas de escrever e de calcular - e olhe lá!), para o DVD Player, enfim... Hoje, a bola da vez é a TVs de alta definição, mas isso é assunto para a postagem de amanhã.
Abraços e até lá.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

RESTAURE-SE O IMPÉRIO DA MORALIDADE OU LOCUPLETEMO-NOS TODOS! — CONTINUAÇÃO


Em setembro do ano passado, Jair Bolsonaro chamou o ministro Alexandre de Moraes de “canalha” e avisou que não iria cumprir suas decisões. Intimado por Moraes a depor, Bolsonaro não deu as caras. Se a única resposta à desobediência for o processo por crime de responsabilidade, como previu o ministro Luiz Fux há quatro meses, o Supremo flerta com a desmoralização. Há no gavetão de pendências do réu que preside a Câmara mais de 140 pedidos de impeachment. Remunerado por um orçamento secreto que recebeu o aval da própria Corte, o Centrão, em vez de derrubar o mandatário de fancaria, prefere controlar o cofre.

Mas tem mais: Segundo apurou a CPI do Genocídio, o capitão deu de ombros para a denúncia feita pelo deputado Luís Miranda e seu irmão, Luís Ricardo, que flagrou a tentativa de pagamento antecipado de US$ 45 milhões pela vacina indiana Covaxin. Diante do escândalo, o ministro Onyx Lorenzoni e o coronel Elcio Franco, número 2 da gestão do general Eduardo Pazuello na Saúde, acusaram os irmãos Miranda de usar uma nota fiscal falsa. Quando se soube que o documento era autêntico, alegou-se, que Bolsonaro avisara Pazuello sobre os malfeitos às vésperas da saída do general do ministério da Saúde. Não convenceu. Informou-se na sequência que o ministro demissionário encarregara seu segundo de tomar providências. Com a velocidade de um raio, Franco constatou que não havia irregularidades na compra das vacinas que custariam R$ 1,6 bilhão ao governo. Posteriormente, alegando “irregularidades insanáveis”, o ministro Marcelo Queiroga anunciou a anulação do contrato. 

Agora a cereja do bolo: O delegado federal William Marinho chegou à inusitada conclusão de que presidente da República não comete crime de prevaricação quando ignora uma denúncia de corrupção que lhe chega ao conhecimento, podendo ser acusado, no máximo, de descumprir um "dever cívico". No final de um processo com mais de 2 mil páginas, o policial — que dispensou até o depoimento de Bolsonaro — anotou que “não faz parte do "dever funcional do presidente comunicar eventuais irregularidades de que tenha tido conhecimento a órgãos de investigação como a Polícia Federal”. Em prevalecendo essa posição, ficará entendido que todo funcionário público tem o dever de agir quando souber de irregularidades, sob pena de prevaricar. Mas o presidente, servidor número um do país, pode ignorar os malfeitos ao redor. Não será acusado senão de desatenção com o seu "dever cívico". 

Não é que o crime não compensa. A questão é que, quando compensa, é chamado de descuido cívico.

***

Segundo o Gênesis (do grego Γένεσις, que significa "origem", "criação", "princípio"), “no princípio era o Caos, e do Caos Deus criou o Céu e a Terra (...). Em apenas 6 dias, o Senhor das Esferas transformou o Caos em ordem, criou a luz e separou-a em duas (uma, grande, para governar o dia, e outra, menor, para governar a noite); criou as águas e dividiu-as em duas (e juntou as da porção inferior num só lugar, para que ali emergisse parte seca); cobriu a terra de plantas, povoou-a com todo tipo de seres vivos e, no sexto dia, a cereja do bolo: “Agora vamos fazer os seres humanos, que serão como nós, que se parecerão conosco. Eles terão poder sobre os peixes, sobre as aves, sobre os animais domésticos e selvagens e sobre os animais que se arrastam pelo chão”. Após concluir Sua obra e ver que tudo era bom (?!), o Criador abençoou e santificou o sétimo dia, e nele descansou.

Do Gênesis bíblico à teoria do Big Bang, diversos povos construíram versões próprias da origem do universo. Na maioria delas, o Caos é tido como uma matéria sem forma definida, mas nenhuma delas menciona que foram os políticos que criaram tanto o caos quanto a corrupção

Não sei como eram as coisas por aqui antes da chegada de Cabral e sua trupe, mas sei que o primeiro registro de corrupção em solo tupiniquim foi anotado por Pero Vaz de Caminha no último parágrafo de sua “Carta de achamento do Brasil”, quando o escriba rogou ao rei de Portugal que intercedesse pelo marido de sua única filha.

Também não sei qual foi a duração do castigo imposto ao genro de Caminha, ou mesmo se D. Manuel atendeu seu pedido (uma vez transitada em julgado, a sentença só podia ser comutada pelo monarca, que tinha poderes previstos em lei para conceder indulto aos apenados). Mas sei que a epístola foi subscrita em 1º de maio de 1.500, de modo que essa é a data em que a praga da corrupção foi semeada na terra em que “em se plantando tudo dá”. E como deu!

Mem de Sá, governador-geral do Brasil entre 1558 e 1572, foi acusado de enriquecimento ilícito, e o governador da capitania do Rio de Janeiro, de cobrar propina dos mercadores de escravos que saíam da África rumo ao Rio da Prata e lá paravam para abastecer. O contrabando foi, de longe, a prática ilícita que mais lucro deu às “elites”, e El-Rei fazia vistas grossas, já que a corrupção tinha efeito benéfico para Portugal. Talvez os hábitos nacionais fossem outros se o Brasil tivesse sido “descoberto” pelos ingleses ou se a colonização do nordeste pelos holandeses tivesse prosperado.

Embora seja um problema mundial, a corrupção teve maior destaque no Brasil-colônia, onde as “elites” se especializaram em passar a perna nos portugueses — que só apareciam para cobrar impostos e barrar a iniciativa privada. Como o que menos presta costuma ser o que mais dura, os políticos de hoje continuam praticando os mesmos atos espúrios que seus antepassados praticavam no século XVI.

A corrupção continua firme e forte porque está profundamente enraizada na sociedade. Em setembro do ano passado, referindo-se à economia mundial, Bolsonaro nos ensinou que “não há nada tão ruim que não possa piorar”. Seu governo (ou desgoverno, melhor dizendo) é a prova provada de que ele está coberto de razão. Até porque os estratagemas usados pela elite colonial persistem até hoje nas práticas ilícitas daqueles que se dizem representantes do povo — haja vista o mensalão petista e o “orçamento secreto” da atual gestão, como já foi detalhado em outras oportunidades.

Até 2019, apenas duas ações penais da Lava-Jato haviam sido julgadas no Supremo. Numa delas — que investigou a presidente do PTGleisi Hoffmann, e seu ex-marido, Paulo Bernardo —, os réus foram absolvidos. Por 3 votos a 2, prevaleceu o entendimento de que os elementos eram “apenas indiciais”, sem comprovação efetiva.

Quando condenaram o primeiro parlamentar no âmbito da Lava-Jato — o deputado federal Nelson Meurer —, os supremos togados declararam a extinção de punibilidade de Cristiano Augusto Meurer, filho do dito-cujo, por prescrição. Entenderam os eminentes ministros que a única conduta que geraria a sanção penal seria de junho de 2008, e que o Estado já não teria mais o direito de puni-la.

Segundo matéria publicada na revista Exame em março de 2019, quando a Lava-Jato colocou o ex-presidente Temer atrás das grades, o único ex-mandatário da “Nova República” que não corria risco iminente de ir parar na cadeira era Fernando Henrique (em que pese o escândalo da compra de votos pela aprovação da PEC da Reeleição).

Naquela época (bons tempos, aqueles), Lula estava cumprindo pena em Curitiba, Sarney era alvo de duas denúncias no âmbito da Lava-JatoCollor respondia a sete inquéritos no STF (e havia se tornado réu num deles em 2017); Dilma era ré por corrupção e lavagem de dinheiro; e o vampiro do Jaburu, tetra réu (duas vezes no Rio, uma em São Paulo e outra no DF). E deu no que deu.     

Depois que o Legislativo deixou de ser confiável — dado o número significativo de deputados e senadores que, mesmo enrolados na Justiça, continuavam (e continuam) transitando livremente pelos corredores do Congresso —, o Judiciário se tornou o último bastião dos brasileiros de bem. Mas alegria de pobre dura pouco, diz o ditado, e também deu no que deu.

Cooptado pela “maritaca de Diamantino”, o STF formou maioria para exumar e ressuscitar uma jurisprudência que vigeu durante míseros 7 anos ao longo das últimas 8 décadas. Em novembro de 2019, graças ao voto de Minerva do então presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, ficou decidido que condenados em segunda instância que deveriam permanecer em liberdade até o trânsito em julgado de suas sentenças.

Com quatro instâncias e um formidável cardápio de recursos, apelos, embargos e toda sorte de chicanas criadas sob medida para impedir que corruptos poderosos vejam o sol nascer quadrado, o trânsito em julgado da condenação de corruptos de alto coturno só se dá (e quando se dá) no Dia de São Nunca. Para piorar, na improvável hipótese de um caso fugir à regra, sempre haverá um magistrado de bom coração  pronto a conceder de ofício um alvará de soltura “por razões humanitárias” (como Dias Toffoli concedeu a Paulo Maluf)

Nossas leis são criadas pelo Congresso Nacional, que é formado pela Câmara Federal (composta por 513 deputados) e pelo Senado da República (composto por 81 senadores). Em 2017, nada menos que 238 parlamentares eram investigados ou respondiam a processos no STF. E quando são as raposas que tomam conta do galinheiro e investigam eventuais sumiços de galinhas.... Deu pra entender ou quer que eu desenhe?

A corrupção é um problema endêmico, mas o fato de sermos obrigados a conviver com essa dura realidade não significa que devamos aceitá-la passivamente. Lula não aceitava. Tanto que fundou o PT para implementar “uma maneira diferente de fazer política”. Faltou combinar com a quadrilha do Mensalão. Quando a roubalheira veio à público, o guerrilheiro de araque José Dirceu, então braço direito do picareta dos picaretas, disse em entrevista ao Roda-Viva: “Este é um governo que não rouba, não deixa roubar e combate a corrupção“. 

Pausa para as gargalhadas (ou para as lágrimas, a critério do freguês).