terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

O BRASIL DO “NOVO RENAN”. E COM LULA LÁ.


Embora eu tenha tuitado e publicado no Face a notícia minutos após o acidente de helicóptero ocorrido no início da tarde de ontem ter resultado na morte de Ricardo Boechat, registro também aqui meu pesar pela perda de um dos maiores ícones (se não o maior) do jornalismo tupiniquim. Com quase 50 anos de carreira e uma coleção de prêmios no currículo, Boechat atuava como apresentador do Jornal da Band e âncora da BandNews FM e era tido pelos colegas como um grande sujeito. Lamento não o ter conhecido pessoalmente e, mais ainda, sua partida prematura. O carequinha era uma ilha de lucidez num oceano midiático que se divide basicamente em duas categorias: a dos que têm merda na cabeça e a dos que tomaram purgante.
E Lula lá...

Remover o entulho e se livrar de tralhas que drenam a energia boa e contaminam o ambiente é fundamental. Mas mesmo depois da reciclagem que os eleitores fizeram no Congresso, ainda há muita podridão encalacrada por lá. Um bom exemplo é o Cangaceiro das Alagoas, que mais uma vez se reelegeu senador — o que não chega a surpreender, visto que nesse mesmo estado o Caçador de Marajás de araque conseguiu a mesma proeza assim que seus direitos políticos, cassados juntamente com o mandato presidencial em dezembro de 1992, foram restabelecidos.

Renan Calheiros é um tipo de craca de difícil remoção. Ele ingressou na vida pública nos anos 1970; em 1989, já deputado federal, articulou articulou a eleição de Collor, mas rompeu com o governo e chegou a depor contra o marajá corrupto na CPI que investigou o esquema PC Farias. Em 2002, então promovido a senador da República, apostou em José Serra contra Lula, mas acabou apoiando a adesão do então PMDB ao governo petista, acumulando poder para se eleger presidente do Senado em 2005. Foi aliado do PT até a véspera do impeachment de Dilma, quando pulou para o barco de Michel Temer — com quem rompeu no ano seguinte para se aliar ao PT em prol de sua reeleição nas Alagoas, estado afinado com o lulismo. Abrilhanta seu currículo o fato de ter sido o primeiro presidente do Senado a se tornar réu no exercício do mandato, além de ser alvo de outros 11 inquéritos no STF — 8 dizem respeito à Lava-Jato, um à Zelotes, um a desvios em Belo Monte e outro sobre o caso Monica Veloso. Passada a campanha eleitoral, o camaleão alagoano reatou com Temer e se realinhou ao novo eixo de poder para se aproximar de Bolsonaro. Ao tentar reconquistar a presidência do Senado, porém, foi derrotado por Davi Alcolumbre numa eleição conturbada, eivada por tentativas de fraude e requintes de briga de cortiço.

Até duas semanas atrás, Renan Calheiros era tido como invencível por 10 entre 10 analistas políticos deste país, que pareciam não ver que o político vinha sendo mastigado e cuspido, dia sim, outro também, pelas redes sociais — as mesmas que calaram a pretensão do Congresso em “negociar pesado” na formação do ministério — os políticos, que iriam “dobrar o governo”, tiveram de engolir com casca e tudo o primeiro escalão que está aí, inclusive com uma dúzia de generais dentro —, e que anularam qualquer possibilidade de soltar Lula no tapetão, com jogadinhas de advogado “garantista”. Segundo mais de 100% dos doutores em ciência política deste país, a chance de qualquer outro senador a raposa alagoana era a mesma de alguém mudar os 90 graus do ângulo reto. A horrenda rejeição popular a seu nome era tratada, nos mesmos meios, como uma fantasia de amadores; “pressão de rua” não existe nesses casos, garantiam os entendidos. “Política de verdade”, em seu livro, não tem nada a ver com redes sociais, etc. Esse Bolsonaro, os vinte generais do seu primeiro escalão, o ministro Sergio Moro, etc., iriam aprender, enfim, que é impossível governar o Brasil sem “ceder aos políticos”, e o sinônimo de política no Brasil era Renan Calheiros. Só que deu zebra — mais uma vez ao contrário, aliás, como tem dado dia após dia.

O jornalista J.R. Guzzo, uma das poucas cabeças pensantes que restaram no elenco da revista Veja, escreveu recentemente em sua coluna que os ministros supremos deveriam começar a pensar nos seus próprios couros. Desde que acabou o regime militar, suas excelências se transformaram numa espécie de orixás que nenhuma força do mundo é capaz de tirar do emprego; dois presidentes da República já foram para o saco, mas os toffolis, e gilmares, lewandowskis e distinta companhia continuam agarrados ao osso, mais firmes que o Pico da Bandeira na Serra do Caparaó. Mas e daqui para frente, com esse temporal que está ficando cada vez mais bravo — vão continuar fora da lei?

Coisas que nunca aconteceram antes sempre podem acontecer uma primeira vez. As redes sociais, que estão construindo realidades brutalmente inéditas neste país, podem muito bem ir para cima de qualquer sultão do STF e cobrar o seu impeachment de um Congresso com pouca estamina para enfrentar o ronco da rua. Era impossível. Não é mais. A Receita Federal abriu um trabalho para identificar “focos de corrupção, lavagem de dinheiro, ocultação de patrimônio ou tráfico de influência” do ministro Gilmar Mendes e de sua mulher, Guiomar — o relatório, de maio de 2018, aponta uma variação patrimonial sem explicação de R$ 696.396 do ministro em 2015 e conclui que Guiomar “possui indícios de lavagem de dinheiro”. O jurista Modesto Carvalhosa vai protocolar novamente os pedidos de impeachment de Gilmar e Lewandowski, que vão se juntar ao novo pedido de impeachment de Toffoli. Pelo visto, a Operação Lava-Toga vai começar.

Continuamos vivendo no Brasil, mas o país em que vivemos é cada vez menos o mesmo. O Brasil dos renans, dos “profissionais” da política e das “realidades de Brasília” está sumindo aos olhos de todo mundo; não existe mais como existia seis meses atrás, e menos ainda como há um, dois ou cinco anos. Não é isso que dizem para você, tanto que, vale reforçar, há pouco mais de uma semana a vitória de Renan para a presidência do Senado era dada como uma verdade científica. No mundo dos fatos, que é o único que conta, revelou-se uma raposa cega, surda e aleijada, com prazo de validade vencido e incapaz de notar que estava desfilando nua no meio da rua. Em vez de olhar para a realidade, ela preferiu acreditar nos especialistas, e acabou virando estopa.

É sempre mais fácil dizer o resultado do jogo depois que o juiz deu o último apito, claro. Mas no caso de Renan daria pelo menos para desconfiar, com trinta minutos corridos do segundo tempo e 3 a 0 no placar para o outro time, que a coisa tinha se complicado horrivelmente. Encantados em medir o tamanho do problema que iriam criar para o governo, Renan e os profissionais que sempre veem tudo, menos o que está acontecendo, não perceberam o tamanho descomunal da resistência ao seu nome. Esse erro de avaliação pode ser fatal hoje em dia: o político brasileiro padrão está gostando cada vez menos de ficar do lado contrário ao da opinião pública, tal como ela se manifesta na internet ou na rua. Está sendo assim desde o impeachment de Dilma, a partir de quando a palavra “rejeição” se tornou a preocupação número 1 de quem pretende sobreviver na política. O desfecho das eleições de outubro, com o massacre geral das candidaturas que caíram em desgraça na boca do povo, está aí para provar.

Diante de tudo isso, Renan nem deveria ter lançado sua candidatura. Tendo lançado, deveria tê-la retirado. Não tendo retirado, deveria ao menos deduzir que a maioria dos senadores lhe dera um aviso sério de que sua candidatura estava liquidada, na prática, quando decidiram que a eleição deveria ser feita com voto aberto. Mas não. A raposa agonizante resolveu pedir proteção ao Supremo e conseguiu, de fato, preservar o voto secreto — acreditava, junto com os ases da observação política nacional, que, podendo esconder seus votos, os senadores que não queriam votar nele passariam a querer. Não adiantou nada, é óbvio. Se os eleitores têm vergonha de votar em você, não há mais nada a fazer nos dias atuais: peça para sair, porque a sua candidatura foi para o saco. Mas a vida real anulou em dois minutos a decisão do STF. Os adversários anunciaram que iriam declarar em voz alta em quem votariam e, com isso, forçaram todos a fazer o mesmo. Fim do jogo. Renan acabou tendo uma soma de cinco votos, derrotado por um senador principiante do Amapá do qual ninguém jamais tinha ouvido falar.

O que interessa, uma vez terminada essa comédia, não são os finíssimos cálculos de engenharia política em torno da eleição, as desculpas miseráveis dos autores das previsões erradas ou os habituais atos de delinquência praticados nessas ocasiões, como o delito de furto cometido pela senadora dilmo-renanzista Katia Abreu, que achava que roubando um documento da mesa iria “virar o jogo” para Renan. O que interessa é que o Renan Calheiros que podia tudo não existe mais. Acabou-se para ele o conforto de ignorar dez anos de acusações de peculato, uso de notas frias, corrupção passiva, criação de boiadas mágicas e por aí afora, em uma dúzia de processos no STF — o melhor que pode lhe acontecer, agora, é não ir para a cadeia.

Sumiu do mapa, em suma, o Renan todo-poderoso de Fernando Henrique, de Lula e de Dilma. Continua aí, claro, e os mesmos que previam sua vitória profetizam agora que ele será um “problemaço” para o governo — revoltado com a derrota, vai se vingar melando “as reformas”. Mas é apenas outra ilusão. Renan nunca mais vai presidir coisa nenhuma. Não manda em nada. Não tem a caneta de presidente do Senado e, portanto, não pode distribuir verbas, empregos e outros negócios em troca de poder. Sem caneta, vira um eunuco político — e isso faz diferença, sim, para o país.

A derrocada de Renan Calheiros oferece mais uma oportunidade para entender outra realidade deste Brasil que está mudando — a agonia, morte e enterro, como força política, da esquerda nacional e do seu líder nos últimos trinta anos. É uma realidade normalmente ignorada, mas ignorar que 2 mais 2 são 4 não faz nenhuma diferença; a soma continua sendo 4. Nada combina tão bem essas duas decadências quanto a mais recente quimera cultivada pelo Complexo Lula-PT-PSOL-MST-etc. Acredite se quiser, eles achavam que Renan, hoje seu principal amigo de fé, irmão e camarada, iria formar ao redor de si um fortíssimo “polo de poder alternativo” no Brasil, e que esse prodígio seria capaz de enfrentar o “governo fascista” e dar, afinal, os músculos políticos de que a “resistência” tanto precisa.

Como Lula e seu sistema de apoio puderam acabar dando nisso? Resposta: pela obsessão por tomar decisões erradas, escolher companhias ruinosas, de Marcelo Odebrecht a Sérgio Cabral, e recusar-se a admitir o mínimo erro. Por culpa unicamente de suas decisões, e não de “golpes” imaginários, das “elites” ou da CIA, Lula virou uma espécie de rosca sem fim. Ele e o “campo progressista” se meteram num enrosco esquisito: quanto mais perdem, mais esforço fazem para perder de novo. Seu lema, hoje, parece ser: “Derrota ou morte”. Ficaram com as duas.